sábado, 17 de maio de 2014

Gilda de Mello e Souza - Pioneira - Livro resgata entrevistas, cartas e ensaios


Livro resgata entrevistas, cartas e ensaios de Gilda de Mello e Souza
- Por José Tadeu Arantes


Organizado por Walnice Nogueira Galvão, que pesquisou os escritos deixados pela amiga, A palavra afiada recupera textos dispersos e até desconhecidos da grande estudiosa da estética e ensaísta. Correspondência mantida com Mário de Andrade na juventude é destaque na obra
Agência FAPESP – Precioso! Difícil não usar o ponto de exclamação quando se tem à frente A palavra afiada, livro que reúne entrevistas, depoimentos, artigos variados e cartas de Gilda de Mello e Souza (1919-2005), ensaísta, crítica de arte e fundadora da cadeira de Estética no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP).

Fruto de anos de dedicação e trabalho criterioso de Walnice Nogueira Galvão, professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o livro, agora publicado, reúne textos que estavam dispersos e até mesmo ignorados.

“Em 2006, uma das três filhas de Gilda e Antonio Candido de Mello e Souza, a Ana Luisa Escorel, dona da editora Ouro sobre Azul, no Rio de Janeiro, me procurou. Ela vem reeditando, ao longo dos anos, toda a obra do pai e da mãe, além de outras coisas. Como eu havia sido muito amiga de Gilda e feito uma longa entrevista com ela para uma revista da faculdade – entrevista que a própria Gilda considerava a melhor que havia dado na vida –, a Ana Luisa me perguntou se eu não gostaria de reunir e editar as várias entrevistas concedidas pela mãe. Eu, que era muito fã dessas entrevistas, disse imediatamente que sim”, relatou Galvão à Agência FAPESP.

“Aos poucos, procurando aqui e ali, fui juntando várias entrevistas. Como eu digo na introdução, a Gilda não guardava as coisas direito, não era narcisista ao ponto de organizar arquivos sobre tudo o que fazia. Ao contrário, assim que acabava de fazer algo, ela perdia o interesse, e já se voltava para o próximo projeto. Assim, algumas dessas entrevistas foram encontradas em lugares absolutamente inesperados. À medida que trabalhava, fui achando muitas outras coisas também: uma série de pequenos artigos e alguns grandes, que ninguém sabia que existiam; e dez cartas dela ao Mário de Andrade, que são um verdadeiro tesouro. Então, eu procurei a Ana Luisa e o Antonio Candido, relatando tudo o que estava conseguindo e pedindo a aprovação deles para fazer um livro em três partes: as entrevistas; os textos esparsos; e as cartas a Mário de Andrade. Eles concordaram, e isso foi ótimo, porque o livro ficou muito mais rico do que havíamos imaginado inicialmente”, prosseguiu Galvão.

Com lançamento agendado para 23 de abril, no Centro Universitário Maria Antonia, em São Paulo, A palavra afiada vem acrescentar-se a outras obras publicadas de Gilda, como A moda no século XIX (1952), O tupi e o alaúde (1979), Exercícios de leitura (1980), O espírito das roupas (1987) e A ideia e o figurado (2005).

Uma trajetória pioneira

Nascida em São Paulo, em 24 de março de 1919, no seio de uma família tradicional, mas criada no interior do estado, em uma fazenda em Araraquara, Gilda de Mello e Souza, cujo sobrenome de solteira era Moraes Rocha, foi uma pioneira em vários sentidos. Uma das primeiras mulheres a estudar na USP, foi aluna de alguns dos famosos professores da chamada “Missão Francesa” – Roger Bastide, Claude Lévi-Strauss e Jean Maugüé –, bacharelando-se em Filosofia em 1940.

Uma das primeiras a conciliar os compromissos familiares com a carreira intelectual, iniciou-se no magistério como assistente de Bastide, na cadeira de Sociologia I, em 1942. Convidada por João Cruz Costa (1904-1978) a transferir-se para o Departamento de Filosofia em 1954, fundou a cadeira de Estética, na qual ensinou até se aposentar, em 1973.

Sua tese de doutorado, orientada por Bastide e apresentada em 1950, foi recebida com estranhamento e velado desdém no meio acadêmico, pois tratava de um tema – a moda – considerado fútil nos marcos estreitos do pensamento dominante na época. Somente um quarto de século mais tarde o assunto receberia o devido reconhecimento intelectual, quando Roland Barthes publicou Système de la mode (Sistema da Moda), em 1976.

“Na tese, a autora procede a uma exegese das roupas femininas, em contraste com a vestimenta masculina, lendo-as como organizações de signos com base em funções sociais e psicológicas. E, sobretudo, como mostra, servindo a dois propósitos: enfatizar a oposição entre os sexos e simbolizar as barreiras de classe”, escreveu Galvão no prefácio de A palavra afiada.

Entre 1969 e 1972, em um dos períodos mais sombrios da história política brasileira, Gilda, movida por um sentimento de dever, assumiu a chefia do Departamento de Filosofia da USP, duramente atingido pela perseguição ditatorial após o golpe militar de 1964, e, mais ainda, depois da promulgação do Ato Institucional número 5, em dezembro de 1968. “Ante um departamento acéfalo e repentinamente desorganizado pelas cassações que o mutilaram, Gilda, mesmo que a contragosto, acabaria por se encarregar da chefia, de 1969 a 1972. Em sua gestão, enfrentou e venceu não poucas nem pequenas batalhas”, afirmou Galvão no prefácio.

A onipresença de Mário de Andrade

Em seu período de estudos na então chamada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, Gilda participou de um pequeno círculo de jovens brilhantes, que viria a fundar a revista Clima em 1941 e exerceria mais tarde enorme influência na vida intelectual do país. Eram seus companheiros de grupo e amigos inseparáveis Antonio Candido de Mello e Souza, Decio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes, Ruy Coelho e Lourival Gomes Machado, entre outros. As características sociais, psicológicas e culturais desse grupo são saborosamente descritas por Gilda na entrevista que concedeu a Walnice, sem dúvida um dos pontos mais altos de A palavra afiada.

Com Antonio Candido, ela se casou em 1943. Desse casamento, que perdurou por mais de seis décadas, até a morte de Gilda, em 25 de dezembro de 2005, nasceram suas três filhas: Ana Luisa Escorel, designer e editora de livros, Laura de Mello e Souza e Marina de Mello e Souza, ambas historiadoras e professoras do Departamento de História da USP.

Mas a grande presença – praticamente a onipresença – de A palavra afiada é a de Mário de Andrade. O autor de Pauliceia Desvairada (1922), Amar, Verbo Intransitivo (1927), Macunaíma (1928), e tantas obras definidoras ou redefinidoras da cultura brasileira, era primo do pai de Gilda. Ele frequentava pontualmente a fazenda de Araraquara em suas férias. E, quando ela veio estudar em São Paulo, hospedou-se na casa dele, que morava com a mãe, tia-avó e madrinha de Gilda, e com outros parentes.

Esse homem, muitos anos mais velho, e que, na época, já era uma celebridade nacional, tornou-se uma espécie de mentor intelectual da jovenzinha. Mas a relação que ela estabeleceu com ele, da qual as dez cartas publicadas em A palavra afiada dão testemunho exemplar, não foi a da discípula deslumbrada e intimidada pelo mestre incontestável. Ao contrário. Foi uma relação cheia de claros e escuros, de nuanças, de meios-tons. A maneira como ela, ainda tão nova, escreve a ele é algo de notável, tanto pela cumplicidade e pela aguda auto-observação, quanto, principalmente, pelo estilo.
Também notável, porém pelo valor testemunhal e pelo humor, é o texto “Mário de Andrade em família”, incluído no livro e resultante de uma palestra proferida por ela no Centro Cultural São Paulo em 1992, por ocasião do 70º aniversário da Semana de Arte Moderna, de 1922.

“A presença do Mário de Andrade no livro é realmente impressionante. Mais impressionante do que eu própria me dava conta”, comentou Galvão. “As cartas cobrem apenas um pequeno período, de 1938 a 1942. Mas foi um período decisivo, quando ela estava escolhendo o que ia estudar, se ia ter ou não uma carreira, o que ia fazer da vida. E o Mário de Andrade teve uma influência incalculável nessa etapa. De certa maneira, ele forneceu as balizas que a guiaram pelo resto da existência – pelo menos do ponto de vista intelectual. E o fez dando-lhe a maior liberdade de escolha. Ele tinha uma frase, que o Marcos Moraes, especialista na correspondência dele, até colocou como título de um livro: ‘orgulho de jamais aconselhar’. Era um mestre no sentido de amparar, com mãos muito cuidadosas, o talento do discípulo, mas para que o discípulo pudesse voar com suas próprias asas.”

Erudição, sutileza e elegância

As qualidades que mais impressionam em A palavra afiada são a erudição de Gilda, a sutileza de suas análises e a elegância de sua expressão. Esses atributos são especialmente relevantes quando se considera que muitos desses textos eram cartas, portanto não destinados à publicação, ou entrevistas, gênero no qual o improviso e as indecisões da expressão oral deixam marcas praticamente inevitáveis. Mas, como enfatizou Galvão, Gilda era uma artista da palavra, tanto escrita quanto falada.

“Ela era extremamente erudita, tanto pela abrangência quanto pela profundidade de suas leituras. Destacava-se também pela sensibilidade e agudeza no estudo das obras de arte. A experiência proporcionada pelo contato direto com a obra de arte era uma das coisas que mais valorizava”, lembrou Galvão. “Houve até um episódio famoso, quando ela foi a Sansepolcro, uma cidadezinha da Toscana, para ver o único quadro de Piero della Francesca (pintor do século XV) que ainda não conhecia, já que havia visto todos os outros. Ela foi de trem a esse vilarejo perdido no norte da Itália e, depois, deu um curso magistral na faculdade sobre a descoberta do espaço no Renascimento.”

Outra entrevista publicada no livro, esta concedida a Carlos Augusto Calil em 1992, sobre o filme Violência e Paixão, de Luchino Visconti, também pode ser assistida no Youtube, o que oferece ao interessado a possibilidade de observar não apenas a agudeza com que Gilda foi capaz de analisar e interpretar esse filme de mestre, mas também a elegância com que se expressava.

“Gilda de Mello e Souza foi uma pensadora sutil e excepcional escritora. A palavra afiada traz textos e entrevistas que até agora não estavam disponíveis, resgatados com gosto e discernimento por Walnice Nogueira Galvão, e chancelados pela leitura de Antonio Candido de Mello e Souza”, afirmou Celso Lafer, presidente da FAPESP. “Todos os que tiveram o privilégio de conviver com ela, eu inclusive, terão nesse novo livro uma renovada oportunidade de ver os seus talentos.”

“Sua tese, O espírito das roupas, é fantástica. E o livro O tupi e o alaúde, que resenhei, é uma grande interpretação da alma de Mário de Andrade, com quem ela teve uma convivência profunda”, acrescentou Lafer.

Ter sido discípula de Mário de Andrade e esposa de Antonio Candido foi, certamente, um extraordinário privilégio. Mas, por outro lado, estabeleceu para ela dois termos de comparação dificílimos – exatamente nas áreas em que procurou atuar, a literatura e as artes. “Penso que ela deve ter lutado muito para se expressar, para se afirmar, tendo diante de si parâmetros desse porte”, refletiu Galvão. “Outras mulheres, mais fracas, teriam desistido. Ela não. E conseguiu conciliar uma brilhante carreira intelectual com uma vida familiar extremamente harmoniosa. Foi uma existência muito completa. E bela.”

A palavra afiada
Organizadora: Walnice Nogueira Galvão
Lançamento: 23/04/2014
Preço: R$ 48,00
Páginas: 264

Mais informações:
www.ourosobreazul.com.br/editora_catalogo_detalhe.asp?idl=51 

Extraído de http://agencia.fapesp.br/18962

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

David Harvey: O marxista que quer reinventar as cidades


David Harvey: O marxista que quer reinventar as cidades


30/11/2013 16:13

David Harvey provoca, em longa entrevista: é hora de adaptar ambiente urbano ao tipo de gente que queremos ser
Entrevista a Vince Emanuele | Tradução: Sônia Scala Padalino – Outras Palavras

Se vivemos em cidades que nos infernizam e aprisionam, qual a causa de sua desumanidade? E, mais importante: que caminhos permitirão transformá-las? As respostas, para esta questão crucial, raramente coincidem. Às vezes, são genéricas demais e paralisam: núcleos urbanos insuportáveis seriam consequência necessária de um sistema que coloca o lucro acima dos seres humanos. Só o fim do capitalismo abriria espaço para novas cidades. Em outros casos, as respostas são muito pouco ambiciosas. Diante de adversários poderosíssimos – o poder econômico e uma política institucional cada vez mais impermeável às aspirações sociais – deveríamos nos concentrar em humanizar espaços restritos. Uma bairro, uma praça, uma horta comunitária.

Acaba de percorrer três cidades brasileiras – Rio, Florianópolis e São Paulo – David Harvey, um pensador que busca, há décadas, soluções para este impasse. Geógrafo, Harvey é também marxista. Para ele, portanto, o degradação das cidades está associada ao capitalismo.

Mas este britânico de 77 anos não se satisfaz com conclusões fáceis. Seu desafio intelectual tem sido, desde que se dedicou ao estudo da urbanização, localizar os mecanismos precisos por meio dos quais as relações capitalistas deterioram a cidade. Harvey sabe que identificar tais mecanismos ajudará a revertê-los; ao passo que repetir chavões poderá, no máximo, satisfazer egos.

Sua investigação o tem levado a conclusões importantes. Por trás de movimentos aparentemente contraditórios – em certos momentos, o centro das metrópoles esvazia-se, para se supervalorizar e aburguesar, no período seguinte –, há necessidades específicas relacionadas à acumulação de capital. Nos EUA, por exemplo, os centros foram abandonados a partir da década de 1950 (morar em Manhattan era baratíssimo...), quando esgotou-se o esforço de guerra e o sistema precisou realocar recursos na indústria automobilística, abertura de estradas e construção imobiliária intensa nos subúrbios. Trinta anos depois, uma nova supremacia (a dos mercados financeiros) estimulou uma volta às Velhas Cidades. Na primeira fase, agrediu-se a natureza. Na segunda, expulsaram-se os pobres...

Em certos momentos, prossegue Harvey, torna-se possível romper esta lógica. Para o geógrafo, a Comuna de Paris (1871) não foi apenas uma tentativa de expropriar a burguesia, mas a busca de “uma nova vida cotidiana, em reação ao desenvolvimento especulativo e consumista da classe alta”. Mas não é preciso esperar por estas rupturas, para começar a reinventar a cidade.

Harvey sabe que “o replanejamento é algo de longo prazo”. Por isso, valoriza também processos aparentemente menos radicais. Por exemplo, a invenção dos Orçamentos Participativos, que foram mantidos em Porto Alegre por cerca de dez anos, na virada do século. O decisivo é negar a lógica que reduz a cidade a um mero território de valorização capitalista e começar a fazer perguntas: “Como deve ser nossa relação com a natureza? Que tipo de urbanização queremos”?

Em sua passagem pelo Brasil, David Harvey fez palestras e lançou a primeira versão em português de uma obra antiga: “Os limites do capital”, publicado em 1982. A entrevista a seguir foi feita há alguns meses, por uma rádio alternativa dos EUA (“Veterans’ Unplugged”) e debate uma obra mais recente: “Rebel Cities” (2012), ainda sem tradução em português (embora tenha inspirado a coletânea brasileira “Cidades Rebeldes”, sobre os protestos de junho). É abordando este tipo de mobilização, aliás, que o geógrafo encerra sua conversa. “O conselho que dou a todos é ir para as ruas o mais possível, enfrentar a desigualdade social e a degradação ambiental. (...) Gostaria que as pessoas se tornassem ativas, avançassem. Esse momento é crucial. O grande capital não cedeu em nada até agora. Precisamos produzir um impulso enorme se quisermos ver algo diferente em nossa sociedade”.

No prefácio de Cidades Rebeldes, você descreve sua experiência em Paris nos anos 1970: “Edifícios gigantescos, ruas, construções da administração pública desprovidas de alma; mercantilização monopolizada das ruas que ameaçavam anular a velha Paris... O que era velho não podia durar”. Além disso, em 1967, Henri Lefèbvre escreveu seu ensaio fundamental, O direito à cidade [publicado em português pela Saraiva]. Pode nos falar sobre o período?

O mundo inteiro considera os anos 1960, como um período de crise urbana. Nos Estados Unidos, por exemplo, muitas cidades importantes se incendiaram. Houve revoltas e revoluções em Los Angeles, Detroit e, depois do assassinato de Martin Luther King em 1968, aproximadamente 120 cidades daquele país viveram inquietações sociais e ações rebeldes mais ou menos maciças. Ocorre que as cidades estavam modernizando-se, com base no automóvel e nas zonas residenciais. A Velha Cidade, aquilo que fora o centro político, econômico e cultural durantes os anos 40 e 50, estava desaparecendo.

Essa era a tendência em todo o mundo capitalista avançado, não apenas nos EUA. Havia sérios problemas na Grã-Bretanha e na França, onde um antigo modo de vida estava sendo desmantelado – um modo de vida do qual, acredito, ninguém devia ter saudades. Esse velho modo de vida foi descartado e substituído por um novo, baseado na comercialização, propriedade, especulação imobiliária, construção de estradas, automóveis, suburbanização. Com todas essas mudanças, houve um aumento da desigualdade e das tensões sociais.

A depender do lugar em que estivéssemos, a desigualdade ou era de classe, ou se concentrava em minorias específicas. Nos EUA, é claro que a comunidade afro-americana tinha as menores oportunidades de trabalho e menos recursos. Se olharmos para trás, veremos que havia programas governamentais na Grã-Bretanha, França e Estados Unidos para tentar enfrentar a “crise urbana”, sempre do mesmo modo. É fascinante estudar essa questão, mas traumático vivê-la como experiência. A crise dos anos 60 foi crucial, e acredito que Lefèbvre tenha compreendido isso muito bem. Ele acreditava que os moradores deviam ter voz ativa nas decisões sobre como as áreas deviam ser, o tipo de urbanização que devia ser adotado. Ao mesmo tempo, os que resistiam queriam inverter a maré da especulação imobiliária que começava a absorver as áreas urbanas em todos os países capitalistas industrializados.

Você escreveu, no primeiro capítulo: “A questão de que tipo de cidade queremos não pode ser separada da questão de que tipo de pessoas queremos ser, quais relações sociais procuramos, que relação temos com a natureza, que estilo de vida desejamos e quais valores estéticos temos”. Mais à frente, você cita a Comuna de Paris como evento histórico que deve ser analisado, pois talvez nos ajude a conceituar o que é o “direito à cidade”. Existem outros exemplos históricos, além deste, sobre os quais podemos refletir? Que desafios temos pela frente, especialmente no contexto neoliberal?

Penso que a ideia de que a cidade que queremos construir deva refletir nossos desejos e exigências pessoais é muito importante. Quem vive num lugar como Nova York precisa se deslocar pela cidade, precisa se relacionar com os outros de um modo bem específico. Como todos sabem, os nova-iorquinos tendem a ser frios e ríspidos. Isso não significa que não se ajudem uns aos outros, mas, para enfrentar a rotina cotidiana e a enorme quantidade de pessoas nas ruas e no metrô, você precisa negociar com a cidade de certa maneira. Da mesma forma, viver em zonas residenciais privadas leva a outros modos de pensar como deveria ser a vida cotidiana. Estas coisas evoluem para posições políticas diferentes, que quase sempre implicam a manutenção de certas urbanizações privadas e exclusivas, à custa do que se passa na periferia. Essas posições sociais e políticas são fruto do tipo de contexto que criamos.

Para mim, esse é um conceito muito importante: as respostas revolucionárias ao ambiente urbano têm muitos precedentes históricos. Por exemplo, em Paris, em 1871, as pessoas queriam um tipo diferente de urbanização; queriam que um tipo diferente de gente vivesse ali. Era uma reação ao desenvolvimento especulativo e consumista da classe alta. A revolta que exigia um tipo diferente de relações sociais, de gênero e de classe.

Poderíamos citar muitos outros exemplos, como a greve geral de Seattle, em 1919. O povo assumiu o controle da cidade e criou estruturas comunitárias. Em Buenos Aires, em 2001, aconteceu a mesma coisa. Em El Alto, na Bolívia, em 2003, houve outro tipo de revolta. Na França, vimos as áreas suburbanas dissolverem-se em tumultos e movimentos revolucionários ao longo dos últimos vinte anos. Ora, os movimentos revolucionários nas áreas urbanas desenvolvem-se lentamente. Não é possível mudar a cidade inteira em uma noite. Para mim, portanto, o replanejamento de uma cidade é um projeto de longo prazo.

O que vemos, porém, é uma transformação do estilo de urbanização no período neoliberal. A resposta a muitos dos protestos de que falamos foi replanejar as cidades segundo os princípios neoliberais de autossuficiência, e traduzir a responsabilidade pessoal, a concorrência e a fragmentação da cidade em urbanizações privadas e espaços privilegiados. Por sorte, as pessoas são obrigadas a pensar em algum tipo de transformação revolucionária em determinados momentos – como em Buenos Aires, em 2001. Eclodiram movimentos que levaram à ocupação de fábricas e à realização de assembleias. Eles foram capazes de ditar o modo em que se devia organizar a cidade e começaram a fazer sérias perguntas: quem queremos ser? Como deve ser nossa relação com a natureza? Que tipo de urbanização queremos?

Pode explicar melhor alguns destes termos? Por exemplo, é possível ver a suburbanização como resultado de “um modo de absorver o excedente de produtos e resolver o problema da absorção da excedência de capital”? Em outras palavras, por que nossas cidades foram esvaziadas desse modo específico?

Este também é um processo longo, infinito. Voltemos aos anos 30 e à Grande Depressão. Como conseguimos sair dela? Um dos grande problemas, reconhecidos por todos, era não haver um mercado forte. A capacidade produtiva estava lá, mas não havia como absorver o fluxo dos produtos. Havia, portanto, um capital excedente que não tinha para onde ir. Fizeram-se tentativas frenéticas para encontrar um modo de gastar o capital em excesso. Houve coisas como o programa de obras de Roosevelt para a construção de autoestradas, que tentavam absorver especialmente o excedente de capital e de mão de obra existentes.

Mas só se encontrou uma solução real com a chegada da II Guerra Mundial. Todo o excedente foi, então, imediatamente absorvido pelo esforço bélico – na produção de armas, munições e todo o resto. A guerra pareceu, de início, resolver o problema da Grande Depressão. Mas a essa altura, surgiu a pergunta sobre o pós-guerra: o que iria acontecer quando ela acabasse? O que iria acontecer com todo o capital excedente?

Aqui começa a suburbanização dos Estados Unidos. A construção de zonas residenciais – naquele momento tratava-se da construção de zonas ricas – absorveu o excedente de capital. Inicialmente, construíram o sistema de autoestradas e todos passaram a precisar de um automóvel, pois a casa de periferia tornou-se uma espécie de “castelo” para a classe trabalhadora. Tudo isso aconteceu deixando de lado as comunidades empobrecidas dos centros urbanos. Foi esse o modelo de urbanização dos anos 1950 e 60.

No período posterior aos anos 70 acontece o inverso: o centro da cidade torna-se extremamente rico. De lugar com preços baixos nos anos 70, Manhattan passou a ser um vasto complexo privado para gente muito rica e poderosa. Nesse meio tempo, as comunidades empobrecidas – minorias, em geral – foram expulsas para a periferia. As pessoas fugiram de Nova York para as pequenas cidades do norte do estado ou para a Pensilvânia.

O modelo geral de urbanização está relacionado com a questão de onde se encontram as oportunidades rentáveis para investir o capital. Como sabemos, as oportunidades rentáveis foram poucas nos últimos 15 anos mais ou menos. Durante esse tempo, rios de dinheiro entraram no mercado imobiliário para a construção de casas. Depois vimos o que aconteceu na primavera de 2008, quando a bolha imobiliária explodiu. Por isso, precisamos considerar a urbanização como produto da busca de meios para absorver a produtividade e a produção crescentes de uma sociedade capitalista muito dinâmica, que precisa crescer numa taxa 3% para sobreviver.

Agora, você cita o crescimento explosivo do PIB na Turquia e em várias partes da Ásia. Cita também um paradoxo da China: houve um processo enorme de urbanização nos últimos vinte anos, mas os mesmos projetos industriais que produzem lucros enormes deslocaram milhões e destruíram o ambiente natural. Cidades inteiras estão completamente vazias, já que apenas uma pequena porcentagem da população pode se permitir luxo e conforto. Pode falar destes fenômenos e contradições?

Bem, a China está agindo do mesmo modo que os Estados Unidos, quando lançaram a suburbanização após a segunda guerra. Acho que quando os chineses precisaram decidir o que fazer – principalmente dentro de uma recessão econômica global e diante dos lucros muito lentos de 2007-08 –, resolveram enfrentar as dificuldades econômicas por meio da urbanização e dos programas de infraestrutura: trens de alta velocidade, autoestradas, arranha-céus, etc. Esse foi o meio de absorver o excedente de capital. É claro que todos os que forneceram matérias-primas à China deram-se muito bem: a demanda chinesa foi muito alta. Ela absorve metade do fornecimento mundial de aço.

A aparência do mundo muda muito conforme o lugar em que estamos. Acabo de ir a Istambul (Turquia), e vi guindastes de construção civil por toda a parte. O país cresce 7% ao ano e é hoje muito dinâmico. Quando se está lá, não é possível imaginar que o resto do mundo esteja em crise. Depois, com um voo de duas horas e meia, cheguei a Atenas (Grécia), e nem preciso dizer o que está acontecendo por lá. É como entrar numa zona de calamidade pública, onde tudo está parado. As lojas estão fechadas, não há construções em lugar nenhum da cidade. A distância entre as duas cidades é de menos de mil quilômetros, mas são dois lugares completamente diferentes. É isso que podemos esperar da economia global de hoje: alguns lugares em pleno boom e outros que vão à falência. As crises econômicas têm sempre um desenvolvimento geográfico desigual. É fascinante contar essa história.

No capítulo 2, “As raízes urbanas da crise”, você aborda a relação entre crise econômica nos Estados Unidos, casa própria e direitos de propriedade individual que são componentes ideológicos importantes do “sonho americano”. Mas logo avisa que esses “valores culturais” adquirem certa importância quando são subvencionados por políticas públicas. Que políticas são essas?

Bem, nos anos 1930, menos de 40% dos americanos tinha casa própria – ou seja, 60% da população pagava aluguel, principalmente pessoas empobrecidas ou de classe média. Essas populações estavam inquietas. Por isso, nos anos 40 e 50 ganhou força a ideia de que era possível estabilizá-las e torná-las favoráveis ao capitalismo dando-lhes a oportunidade de adquirir casa própria. As instituições de poupança e crédito receberam muito apoio. Era lá que as pessoas depositavam suas economias, e estas eram usadas para promover a casa própria das populações de baixa renda. Aconteceu a mesma coisa na Grã Bretanha com a “Building Society”.

Essa tendência teve início, aliás, já por volta de 1890, quando a classe empresarial pensava em como tornar as populações de renda mais baixa estáveis e menos irrequietas. Havia uma frase maravilhosa: “os proprietários de casas não fazem greve”. Lembre-se que as pessoas precisavam contrair dívidas para se tornar proprietárias. E aí está o mecanismo de controle. Esse sistema, porém, foi muito fraco nos anos 20, até que nos anos 30 o governo dos Estados Unidos e as classes empresariais decidiram reforçá-lo. Criaram-se os empréstimos de trinta anos. Mas para que funcionassem era preciso ter, de algum modo, uma garantia. Isso levou à criação de instituições públicas que garantissem as hipotecas.

Ao mesmo tempo, os bancos precisavam encontrar um modo de repassar os empréstimos a terceiros e foi assim que criaram essa organização chamada Fannie Mae. Foi isso que aconteceu naquele período: órgãos públicos usados para favorecer e garantir a propriedade das casas, em particular para as classes média e baixa, o que as desencorajava na hora de fazer greves ou de sair da linha. Estavam endividadas. Estas instituições deslancharam realmente depois da II Guerra Mundial. Houve muita propaganda sobre o “sonho americano” e sobre o que significava ser americano. Permitia-se deduzir, dos impostos, os juros pagos sobre o empréstimo. O Estado subvencionava a propriedade da casa; as instituições públicas promoviam-na.

Já no governo Clinton, em 1995, promoveu-se a casa própria para as minorias. O desenrolar da “crise de subprime” esteve estreitamente ligado ao que o setor privado fazia e também ao que as políticas de governo garantiam. Este é um aspecto crucial da vida americana: 60% da população pagava aluguel, nos anos 1930; mas, entre 2007/08, atingiu-se um pico em que 70% passou a ter casa própria. Isso cria naturalmente um tipo diferente de atmosfera política, na qual a defesa dos direitos e dos valores da propriedade passa a ter grande importância. Surgem os movimentos de bairro com os quais os proprietários tentam manter certas pessoas fora de suas áreas, pois dão-se conta de que poderiam desvalorizar as propriedades. As habitações tornam-se uma forma de poupança para as famílias de classe média e da classe trabalhadora. As pessoas têm acesso a essas poupanças por meio do refinanciamento de suas casas. A casa própria é apresentada, agora, como se fosse o sonho de toda uma vida para os que vivem nos Estados Unidos. Mas, sem dúvida, esse sonho sempre existiu, pelo fato de que, ao conseguir um pouco de terra, pode-se cultivar alguma coisa, conseguir uma vida melhor, etc. Isso fazia parte do sonho dos migrantes. Mas foi transformado na casa própria suburbana, o que não significa ter vacas e frangos no quintal, mas sim estar cercado pelos símbolos do consumismo.

Mais adiante, no mesmo capítulo, você menciona o fato de que devemos ir além de Marx, mas usando suas percepções mais proféticas. De que modo podemos “ir além de Marx”?

Marx é importante porque compreendia profundamente como funciona a acumulação de capital. Percebia que essa máquina de crescimento perpétuo contém muitas contradições internas. Uma das contradições fundamentais das quais fala é entre o “valor de uso” e o “valor de troca”. Vemos com clareza de que modo ela age na situação da casa. Qual é o valor de uso de uma casa? Bem, é uma forma de refúgio, um lugar de privacidade, é onde se pode criar uma família. Podemos citar muitos outros valores de uso.

Mas ela tem também um valor de troca. Lembre-se que quando alguém aluga uma casa, aluga-a com base apenas no que lhe é útil. Mas quando alguém compra uma casa, considera-a como um tipo de poupança e, depois de certo tempo, usa-a como forma de especulação. Como consequência, os preços das casas aumentam. Nesse contexto, o valor de troca passa a dominar o valor de uso. A relação entre o valor de troca e o valor de uso escapa ao controle. Assim, quando o mercado imobiliário explode, repentinamente cinco milhões de pessoas perdem as casas e o valor de uso desaparece. Marx fala dessa importante contradição. Precisamos fazer a seguinte pergunta: o que devemos fazer com a habitação? O que devemos fazer com a saúde? O que estamos fazendo com a educação? Não deveríamos promover o valor de uso da instrução? E por que as necessidades vitais devem ser supridas por meio do sistema do valor de troca? É óbvio que devemos rejeitar o sistema do valor de troca, refém da especulação e dos lucros excessivos. É realmente impressionante quanto somos capazes de comprar produtos e serviços. Essa é uma das contradições que Marx descreveu muito bem.

No capítulo “A criação dos bens comuns urbanos”, de Cidades Rebeldes,você tenta elaborar um novo conceito sobre o que o “comum” pode representar neste século. Além disso, faz referências ao trabalho de Toni Negri e Michael Hardt em todo o livro. Como vocês todos afirmam, precisamos definir o modo em que transferiremos, promoveremos e usaremos o “comum”. Mas como conceituá-lo?

Bem, muitos dos textos sobre os bens comuns abordam a questão em escala microscópica. Não digo que seja um erro ter, por exemplo, uma horta comunitária no bairro, mas acho que precisamos nos preocupar e falar sobre os bens comuns em grande escala, como o habitat de uma bio-região. Como gerir os recursos hídricos em nível nacional? Sem falar do nível global. Os recursos hídricos deveriam ser considerados de propriedade comum, mas há, às vezes, exigências conflitantes em relação à água: urbanização, agricultura industrial e toda a manutenção dos habitats naturais.

Recentemente, Christian Parenti escreveu um artigo chamado “Por que as mudanças climáticas o farão adorar o intervencionismo do governo”, que trata de modo muito sério a organização social e as consequências políticas e econômicas das mudanças climáticas. Parenti aborda concretamente a questão de como usar o aparelho do Estado. O que pensa sobre isso?

Fico contente que você cite o texto de Christian Parenti, porque as mudanças climáticas deveriam nos levar a um novo conceito de bens comuns globais. A pergunta é: como vamos tratar essas questões no futuro? Precisamos de mecanismos de ação entre estados-nações para combater essas tendências ou evitar futuras ameaças. O que vai acontecer com os tratados internacionais se os governos forem destruídos? Quem vai conseguir que outros países parem de emitir carbono na atmosfera? Não se pode fazer isso organizando “assembleias coletivas” ou “refeitórios comunitários”. As discussões sobre converter um pedaço de terra em horta comunitária não conseguirão combater os problemas que nossa espécie deverá enfrentar. Devemos considerar que existem bens comuns em diferentes escalas.

Por isso, gostaria de lançar o conceito de “diferentes escalas de organização” na nossa conversa coletiva sobre desenvolvimento, sustentabilidade e urbanização. Precisamos desenvolver organizações, mecanismos, discursos e aparelhos capazes de abordar esses problemas em escala global. Não adianta nada discutir sobre os “bens comuns”, se não especificarmos a que escala nos referimos. É do mundo que falamos? Se for, sugiro que se fale dos aparelhos do Estado e de suas funções.

No capítulo 4, “A arte da renda”, você diz que “as escolas de arte foram fonte de debate político, mas a pacificação que sofreram em seguida diminuiu seriamente a política de agitação”. Pode falar sobre a natureza especial da produção e da reprodução cultural? De que modo o “empreendedorismo urbano” ajudou esse processo? Você o chama de “disneyficação” da sociedade e da cultura. O que é o capitalismo coletivo e simbólico? Você cita a indústria do turismo e também o marketing de cidades específicas, sentimentos culturais e a “comercialização das cidades”. Pode nos falar sobre essas dinâmicas?

Meu interesse nisso tudo vem de uma contradição muito simples: presume-se que vivemos sob o capitalismo; que o capitalismo é competitivo; e, assim, imaginamos que capitalistas e empresários gostem da concorrência. Bom, acontece que os capitalistas fazem todo o possível para evitá-la. Amam os monopólios. Por isso, sempre que podem, procuram criar um produto que seja monopolizável, o que significa, em outras palavras, “único”. Tomemos, por exemplo, o logotipo da Nike, que é um exemplo perfeito de como os capitalistas extraem um preço de monopólio de um logo particular, visto que há uma enorme bagagem associada a ele, ao que ele significa, e a como as pessoas devem interagir com ele. Um tênis igualzinho custa muito menos e pode ser vendido a preço inferior simplesmente porque não tem o logo. Em muitos lugares, esse componente é fundamental no funcionamento dos mercados. Cito, nesse capítulo, o comércio do vinho porque me intriga muito. As pessoas tentam extrair uma renda de monopólio porque tal vinhedo tem um solo especial ou uma posição geográfica especial. Criam, assim, um vinho “vintage” único, que tem um sabor melhor do que qualquer outra coisa no mundo, só que não é verdade.

No plano das cidades, isso significa que elas tentam “comercializar” a si mesmas. Existe toda uma história, em particular dos últimos 30 ou 40 anos, de como tentam vender um pedaço de sua história. Qual é a imagem de uma cidade? É atraente para os turistas? Está na moda?

Há cidades que não têm uma reputação semelhante à de Barcelona ou Nova York. Um dos modos de melhorar sua singularidade é vender algo que esteja ligado a sua história, algo muito específico que não tenha paralelos históricos em outro lugar. Por exemplo, vamos a Atenas pela Acrópole, ou a Roma pelas ruínas antigas. E se não houver uma história especial, simplesmente inventa-se uma.

Algumas cidades usam a “arquitetura de grife”. Pouca gente conhecia Bilbao antes que o Museu Guggenheim se tornasse o centro de um estilo particular de arquitetura. Pense em Sydney (Austrália) com a sua Opera House, que é a primeira coisa que as pessoas reconhecem quando veem a imagem da cidade, e entenderá a importância que esse teatro teve. A própria arquitetura torna-se refém da comercialização. Até mesmo as pinturas e as ambientações musicais são convertidas em aspectos culturais da cidade para que possam ser vendidas. Lugares como Austin (Texas) tornam-se “cenas musicais”.

O problema é que grande parte da cultura é muito fácil de copiar. A singularidade começa a desaparecer. É necessário, então, aquilo que chamo de “disneyficação” da sociedade. Na Europa, por exemplo, veja como tudo se “disneyfica”, embora muitas cidades tenham um passado cultural e histórico sério. Para algumas pessoas – para mim, por exemplo – isso é extremamente repugnante. Vende-se uma cidade como única, mas, por meio do marketing, ela pode ser copiada. Os simulacros da história tornam-se tão importantes quanto a própria história. Isso cria uma situação em que os produtores culturais adquirem muita importância.

No capítulo 5, “Reivindicar a cidade por meio da luta anticapitalista”, você escreve: “Dois problemas surgem dos movimentos políticos baseados nas cidades: 1) a cidade, ou o sistema de cidade, é um lugar meramente passivo ou uma rede pré-existente? 2) Os protestos públicos costumam medir seu sucesso com base em quanto são capazes de perturbar as economias urbanas”. Pode dar alguns exemplos desse tipo de perturbação? De que modo os dissidentes poderiam perturbar as economias urbanas de modo mais eficaz?

Há muitos exemplos históricos. Nos anos 1960, por exemplo, em muitas cidades dos Estados Unidos, as agitações provocaram grandes incômodos aos negócios. Políticos e empresários reagiram rapidamente em razão do nível das perturbações e da destruição. Cito, no livro, as manifestações de trabalhadores migrantes na primavera de 2006. Os protestos foram uma resposta à tentativa, feita pelo Congresso, de criminalizar os imigrantes clandestinos. As pessoas mobilizaram-se em cidades como Los Angeles e Chicago, e perturbaram significativamente os negócios da cidade. É possível também adotar a ideia da greve – geralmente dirigida contra uma determinada empresa ou organização – e transferir suas táticas e estratégias para os centros das cidades. Em vez de fazer greve contra uma empresa ou uma atividade ou comércio específicos, as pessoas podem dirigir essas ações para inteiras áreas urbanas.

E existem também eventos como a Comuna de Paris e a greve geral em Seattle de 1919, ou ainda a revolta do Cordobazo em Córdoba, Argentina, 1969. Não é preciso criar um movimento revolucionário do dia para a noite. As coisas podem acontecer gradualmente, por meio de reformas. Há um exemplo interessante de Orçamento Participativo, que começou em em Porto Alegre (Brasil), mas continuou em algumas cidades europeias. As populações debatem como o dinheiro deve ser gasto. Fazem assembleias populares que decidem como usar os fundos e os serviços públicos. É uma grande ideia. Envolve o público e faz com que as pessoas participem. As decisões não são mais tomadas pelas prefeituras, pelos burocratas a portas fechadas. Estão abertas ao debate público. Assim, de um lado, há intervenções rápidas sob a forma de greves e interrupções. Do outro, um processo de reforma que ocorre por meio de assembleias democráticas, etc.

No capítulo 5, você escreve: “Na tradição marxista, as lutas urbanas são muitas vezes ignoradas ou pouco valorizadas, porque não têm potencial ou importância revolucionária. Quando uma luta urbana adquire um status revolucionário emblemático, como durante a Comuna de Paris em 1871, ela é descrita, primeiro por Marx, e com ainda mais veemência por Lenin, como revolta proletária, e não como movimento revolucionário muito mais complicado, estimulado tanto pelo desejo de recuperar a cidade da apropriação burguesa quanto pela desejada liberação dos operários da dura opressão de classe nos locais de trabalho. Dou importância simbólica ao fato de que as duas primeiras decisões da Comuna de Paris tenham sido abolir o trabalho noturno nas padarias – uma questão trabalhista – e impor uma moratória aos aluguéis – uma questão urbana”. Pode falar da prioridade dos trabalhadores industriais na ideologia marxista? Como podemos começar a conceituar de modo novo o proletariado?

É uma longa história. A tendência, nos ambientes marxistas – e não só neles, mas na esquerda em geral –, é dar prioridade ao trabalhador industrial. A ideia de uma luta de vanguarda que leve a uma nova sociedade vigorou por algum tempo. Muito disso deriva, é claro, do volume I de “O Capital” de Marx, que dá ênfase ao operário de fábrica. A ideia de que o partido de vanguarda dos trabalhadores nos levará à nova Terra Prometida da sociedade anticapitalista, digamos “comunista”, dura há mais de um século. Sempre achei que fosse uma concepção muito restrita do que é o proletariado e do que é a “vanguarda”. Além disso, sempre estive interessado na dinâmica da luta de classes e na sua relação com os movimentos sociais urbanos.

Para mim, os movimentos sociais urbanos são muito mais complicados. Ocupam um vasto leque, que parte das organizações de bairro burguesas, dedicadas a uma política de exclusão, e vai até a luta de inquilinos contra proprietários, em razão das práticas de exploração. Quando examinamos o amplo espectro dos movimentos sociais urbanos, descobrimos que alguns são anticapitalistas e outros, o contrário.

Mas é preciso fazer a mesma observação quanto a algumas formas de sindicalismo tradicional. Alguns sindicatos consideram a organização como um modo de favorecer os trabalhadores já privilegiados na sociedade. Essa ideia certamente não me agrada. Há outros que buscam criar um mundo mais justo e equitativo.

Examinemos as formas de organização de Antonio Gramsci. Ele estava muito interessado nos conselhos de fábrica. Seguia a linha marxista segundo a qual a organização de fábrica é crucial na luta. Mas, além disso, exortava as pessoas a organizarem-se nos bairros. Segundo seu pensamento, elas podiam alcançar uma situação melhor para toda a classe operária e não apenas para a que se organizava nas fábricas. Isso incluía os desempregados, os trabalhadores precários e todos os que você citou que não trabalhavam nos setores industriais tradicionais. Gramsci propunha que esses dois tipos de organização se entrelaçassem para representar realmente o proletariado. Em síntese, meu pensamento reflete o dele.

A meu ver, deveríamos abandonar a ideia de que o operário de fábrica será a vanguarda do proletariado e começar a considerar os trabalhadores empenhados na produção e reprodução da vida urbana como a nova vanguarda. Isso inclui trabalhadores domésticos, taxistas, vendedores, muitas outras classes e pobres. Acho que podemos construir movimentos políticos que operem de modo totalmente diferente em relação ao passado. Vejo isso em cidades do mundo todo, desde as cidades bolivianas até Buenos Aires. Combinando o trabalho dos ativistas urbanos ao daqueles que trabalham nas fábricas, começamos a desenvolver um estilo completamente diferente de agitação pública.

Pode falar sobre uma dessas cidades, como El Alto (Bolívia)?

Li tudo o que pude sobre El Alto (Bolívia), e o que mais me fascina são as formas de organização que se criaram. Havia um forte sindicato de professores à frente do movimento. Mas havia também muitos ex-sindicalistas que estavam nas minas de estanho e ficaram desempregados na década de 1980, anos do ajuste neoliberal. Essas pessoas acabaram indo viver na cidade de El Alto, onde há uma tradição política de ativismo socialista. Militavam num movimento sindical onde havia principalmente trotskistas, o que é significativo.

Entretanto, as organizações mais importantes eram as de bairro. Além disso, havia uma assembleia geral das organizações de bairro chamada Federación de Organizaciones Barriales. Havia, por exemplo, organizações de vendedores ambulantes, além de trabalhadores do transporte. Esses diferentes grupos reuniam-se com bastante regularidade. O interessante da dinâmica deles é que não tinham a mesma opinião sobre todos as questões. Que sentido teria ir a uma reunião em que todos estão de acordo? Participavam das reuniões para garantir que seus interesses não fossem prejudicados. É o que acontece quando há debates acesos e discurso político: progresso. Assim, o ativismo das federações de bairro nasceu a partir de métodos de organização muito competitivos. Em seguida, quando a polícia e o exército começaram a assassinar as pessoas na rua, houve uma manifestação imediata de solidariedade entre os grupos que tinham se formado na cidade. Fecharam a cidade e interditaram as ruas. Os habitantes de La Paz não podiam receber bens e serviços porque três das ruas principais da cidade passavam diretamente por El Alto, que tinha sido fechada pelas organizações.

Isso foi feito em 2003 e o resultado foi a derrubada do presidente. Em 2005 derrubaram o presidente seguinte. E enfim chegou Evo Morales. Todos esses elementos se uniram e se organizaram de modo eficaz para os pobres e para a classe operária na Bolívia. Foi dali que tirei o título de meu livro, Cidades Rebeldes. Literalmente, El Alto tornou-se uma cidade revolucionária em poucos anos. É fascinante estudar e observar as formas de organização na Bolívia. Não digo que este seja “o modelo” que todos devem copiar, mas é um bom exemplo a ser observado e estudado.

Você fala de um filme muito especial, O sal da terra. O que ele pode nos ensinar sobre a luta?

Bem, assisti ao filme [“Salt of the Earth”, dirigido por Herbet J. Biberman, 1954, pode ser assistido integralmente aqui Nota da Tradutora] pela primeira vez há muito tempo. Mas sempre gostei de pensar nele. Quando me sentei para escrever este livro, eu o vi novamente e, depois, mais algumas vezes. É uma história muito humana. É a maravilhosa história de uma mina de zinco, baseada em fatos reais, escrita por pessoas que haviam sido banidas de Hollywood por suas tendências comunistas. É um grande filme em que classe, raça e gênero unem-se para formar uma grande história.

Há um momento singelo no filme: os rapazes não podem mais fazer piquetes em razão da lei Taft-Hartley, e então as mulheres os substituem, já que nada as impede. E os homens precisam, então, cuidar dos afazeres domésticos. É interessante notar que eles passam imediatamente a entender por que as mulheres lhes pediam que exigissem dos patrões água corrente e outras coisas que tornassem o cotidiano mais fácil. Com rapidez, e de modo natural, os homens descobrem como é difícil ficar em casa o dia inteiro. Isso reúne questões de gênero que são, ainda hoje, importantes. E aborda a solidariedade para além das fronteiras étnicas, hoje cruciais. O filme presta um grande serviço ao ressaltar tudo isso de modo não didático. Sempre gostei, então achei oportuno recordá-lo nas páginas de Cidades Rebeldes.

Alguma palavra de despedida para quem lê ou escuta essa entrevista?

Infelizmente não sou organizador, sou analista dos limites do capital e de como conceituar pontos de vista alternativos para a sociedade. Ganhei muita força, motivação e ideias daqueles que estão concretamente envolvidos todos os dias nas lutas. Participo e, se puder, ajudo. O conselho que dou a todos é ir para as ruas o mais possível, enfrentar a desigualdade social e a degradação ambiental, pois esses problemas estão cada vez mais presentes. Gostaria que as pessoas se tornassem ativas, avançassem. Esse momento é crucial. O grande capital não cedeu em nada até agora. Precisamos produzir um impulso enorme se quisermos ver algo diferente em nossa sociedade. Precisamos criar mecanismos e formas de organização que reflitam as necessidades e os desejos da sociedade como um todo, e não apenas de uma classe privilegiada e oligárquica.


* Entrevista feita por Vince Emanuele para a “Veterans Radio Unplugged”, transmissão que vai ao ar todos os domingos em Michigan City (EUA). Vince é também membro da organização Veteranos pela Paz e faz parte do conselho de administração do Veteranos do Iraque contra a Guerra. A entrevista, transcrita e publicada pelo Znet, um dos principais sites alternativos dos Estados Unidos.

domingo, 28 de julho de 2013

Povos tradicionais têm papel crucial na conservação da biodiversidade


Povos tradicionais têm papel crucial na conservação da biodiversidade

22/07/2013
Por Elton Alisson

Agência FAPESPNa região do alto e do médio Rio Negro, no Amazonas, existem mais de 100 variedades de mandioca, cultivadas há gerações por mulheres das comunidades indígenas, que costumam fazer e compartilhar experiências de plantio, chegando a experimentar dezenas de variedades em seus pequenos roçados ao mesmo tempo.

Exemplo de conservação da agrobiodiversidade por populações tradicionais, o sistema agrícola do Rio Negro foi registrado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2010 como patrimônio imaterial do Brasil.

A partir da constatação de que essas práticas culturais geram uma diversidade de grande importância para a segurança alimentar, elaborou-se um projeto-piloto de colaboração entre a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e as organizações indígenas do médio e alto Rio Negro.

O projeto integrará uma iniciativa criada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com o objetivo de chegar a um programa que estimule a colaboração entre cientistas e detentores de conhecimentos tradicionais e locais.


A iniciativa foi anunciada por Maria Manuela Ligeti Carneiro da Cunha, professora emérita do Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, e professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP), na abertura da Reunião Regional da América Latina e Caribe da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços de Ecossistemas (IPBES, na sigla em inglês), ocorrida no dia 11 de julho na sede da FAPESP, em São Paulo.

“O projeto-piloto será um bom exemplo de como é possível a colaboração entre a ciência e os conhecimentos tradicionais e locais, capazes de dar grandes contribuições para a conservação da diversidade genética de plantas – um problema extremamente importante”, disse Carneiro da Cunha, coordenadora do projeto.

“A conservação in situ de variedades de plantas, por excelência, pode e deve ser feita pelas populações tradicionais. O Brasil, ao promulgar o tratado da FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura] sobre recursos fitogenéticos, se obrigou a estimular essa opção”, afirmou.

Carneiro da Cunha ressalvou que, diferentemente do que costuma se entender, os conhecimentos tradicionais não são um “tesouro”. Não são apenas dados que devem ser armazenados e disponibilizados para uso quando se desejar, como foi feito com a medicina ayurvédica, na Índia. De acordo com a antropóloga, a sabedoria tradicional é um processo vivo e em andamento, composto por formas de conhecer a natureza, além de métodos, modelos e “protocolos de pesquisa” que continuamente geram novos conhecimentos.

IPCC da biodiversidade

Criado oficialmente em abril de 2012, após quase dez anos de negociações internacionais, o IPBES tem por objetivo organizar o conhecimento sobre a biodiversidade no planeta para subsidiar decisões políticas em âmbito mundial, a exemplo do trabalho realizado nos últimos 25 anos pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) em relação ao clima do planeta.

Para isso, o organismo intergovernamental independente realizará uma série de reuniões com pesquisadores da América Latina e Caribe, África, Ásia e Europa nos próximos dois meses, produzindo diagnósticos regionais que comporão um relatório sobre a biodiversidade do planeta.

Os documentos conterão as particularidades dos países de cada região e deverão levar em conta, além do conhecimento científico, a contribuição do conhecimento acumulado durante séculos pelas populações tradicionais e povos indígenas dessas regiões para auxiliar nas ações de conservação de biodiversidade.

“Uma das ações mais importantes do IPBES deverá ser o envolvimento de populações locais e indígenas desde o início do programa, chamando-as para participar do planejamento dos estudos, da identificação de temas de interesse comuns a serem estudados e do compartilhamento dos resultados”, disse Carneiro da Cunha.

“O IPCC, que iniciou suas atividades em 1988, só começou a pedir a contribuição do conhecimento dos povos tradicionais e indígenas para o desenvolvimento de ações para diminuir os impactos das mudanças climáticas globais depois da publicação de seu quarto relatório, em 2007”, contou.

Importância do conhecimento tradicional

De acordo com Carneiro da Cunha, os povos tradicionais e indígenas são muito bem informados sobre o clima e a diversidade biológica locais – e, por isso, podem ajudar os cientistas a compreender melhor as mudanças climáticas e o problema da perda da biodiversidade.

Esses povos costumam habitar áreas mais vulneráveis a mudanças climáticas e ambientais e são muito dependentes dos recursos naturais encontrados nessas regiões. Acompanham com minúcia cada detalhe que constitui e afeta diretamente sua vida e são capazes de perceber com maior acurácia mudanças no clima, na produtividade agrícola ou na diminuição de número de espécies de plantas e animais, por exemplo, apontou a antropóloga.

“Esse conhecimento minucioso é de fundamental importância. Até porque uma das limitações que esses painéis como o IPCC e, agora, o IPBES enfrentam é identificar problemas e soluções para lidar com as mudanças climáticas globais em nível local. Isso é algo que só quem mora há muitas gerações nessas regiões é capaz de perceber”, disse.

Segundo dados apresentados por Carneiro da Cunha e por Zakri Abdul Hamid, presidente do IBPES na abertura da reunião na FAPESP, há aproximadamente 30 mil espécies de plantas cultivadas no mundo, mas apenas 30 culturas são responsáveis por fornecer 95% dos alimentos consumidos pelos seres humanos; arroz, trigo, milho, milheto e sorgo respondem por 60%.

Isso porque, com a chamada “Revolução Verde”, ocorrida logo depois da Segunda Guerra Mundial, houve uma seleção das variedades mais produtivas e geneticamente uniformes, em detrimento de plantas mais adaptadas às especificidades de diferentes regiões do mundo. Diferenças de solo e clima foram corrigidas por insumos e defensivos agrícolas. Com isso, se espalhou uma grande homogeneidade de cultivares no mundo – levando à perda de muitas variedades locais.

“Houve um processo de erosão da diversidade genética das plantas cultivadas no mundo. Isso representa um enorme risco para a segurança alimentar porque as plantas são vulneráveis a ataques de pragas agrícolas, por exemplo, e cada uma das variedades locais de cultivares perdidas tinha desenvolvido defesas especiais para o tipo de ambiente em que eram cultivadas”, contou Carneiro da Cunha.

Um dos exemplos mais célebres dos impactos causados pela perda de diversidade agrícola, segundo a pesquisadora, foi a fome na Irlanda, que matou 1 milhão de pessoas no século XIX e causou o êxodo de milhares de irlandeses para os Estados Unidos.

Apenas duas das mais de mil variedades de batatas existentes na América do Sul haviam sido levadas para a Irlanda, no século XVI. Uma praga agrícola acabou com as plantações, levando à fome, uma vez que a batata já era o alimento básico na Irlanda e em outros países da Europa.

A partir daí, para evitar a ocorrência de problemas do mesmo tipo, vários países criaram bancos de germoplasma (unidades de conservação de material genético de plantas de uso imediato ou com potencial uso futuro). A medida por si só, no entanto, não basta, uma vez que as plantas coevoluem com os ambientes, que também mudam ao longo dos anos. Assim, é necessário complementar os bancos de germoplasma com ações de conservação in situ, ressaltou Carneiro da Cunha.

“É importante que se entenda que o conhecimento tradicional não é algo que simplesmente se transmitiu de geração para geração. Ele é vivo e os povos tradicionais e indígenas continuam a produzir novos conhecimentos”, ressaltou.

Entraves para aproximação

De acordo com a pesquisadora, apesar da importância da aproximação da ciência dos conhecimentos tradicionais e locais, o assunto só começou a ganhar relevância a partir da Convenção da Biodiversidade Biológica (CDB), estabelecida em 1992, durante a ECO-92.

A regulamentação do acesso ao conhecimento tradicional, previsto no artigo 8j da CDB, no entanto, ainda é um problema praticamente universal, afirmou a pesquisadora. “Peru e Filipinas já têm suas legislações. Mas ainda são poucos os países que editaram suas leis”, disse.

O Brasil ainda regula o acesso a recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados por meio de uma medida provisória e não se chegou ainda a um consenso para uma legislação nacional. “Não se pode ficar somente nessa atitude defensiva e acusar todo mundo de biopirataria, nessa ‘bioparanoia’ no país, que é um grande impedimento que teremos de superar”, avaliou.

É preciso estabelecer relações de confiança, afirmou a antropóloga, algo que só se consegue ao longo dos anos. Uma das formas ideais de se fazer isso, segundo ela, é quando a própria comunidade tradicional tem um problema para o qual está buscando solução e que também interessa aos cientistas.

Um exemplo disso ocorreu recentemente no âmbito do Conselho Ártico – organização intergovernamental que toma decisões estratégicas sobre o Polo Norte, reunindo oito países e 16 populações tradicionais, em sua maioria, pastores de renas.

Em parceria com as comunidades tradicionais transumantes (que deslocam periodicamente seus rebanhos de renas para regiões no Ártico, onde encontram melhores condições durante partes do ano), um grupo de pesquisadores dos países nórdicos, além da Rússia, Canadá e Estados Unidos, estudou os impactos das mudanças climáticas nos ecossistemas, na economia e na sociedade da região.

Feito em colaboração com a Agência Espacial Norte-Americana (Nasa, na sigla em inglês) e com diversas universidades e instituições de pesquisas, o estudo resultou em um relatório decisivo, intitulado Informe de Resiliência do Ártico (ARR, na sigla em inglês), divulgado em 2004.

“Essa talvez tenha sido a experiência mais bem-sucedida até agora de colaboração da ciência e dos conhecimentos tradicionais e locais”, avaliou Carneiro da Cunha. “É importante que os cientistas conheçam o que se faz nas comunidades tradicionais e, por sua vez, os povos tradicionais também conheçam o que se faz nos laboratórios científicos”, disse.


As armas do futuro, por Walter Benjamin


As armas do futuro, por Walter Benjamin

Por Racismo Ambiental (RA), 28/07/2013 12:18 (in Folha/Uol)

Em texto de 1925, inédito em português, Walter Benjamin fala de armas químicas, como o gás lacrimogêneo, e prevê sua vulgarização. Editado pelo jornal “Vossische Zeitung” sem sua assinatura, o artigo foi catalogado pelo filósofo entre suas obras publicadas e sairá no Brasil no livro “O Capitalismo como Religião”, da Boitempo.  Tradução: Nélio Schneider.


As designações anteriores(1) serão tão populares na próxima guerra quanto “trincheira”, “submarino”, “Berta Gorda”(2) e “tanque” foram na passada. Para os vocábulos químicos difíceis de pronunciar serão adotadas em poucos dias cômodas abreviações. E essas expressões, promovidas em poucas horas a uma atualidade jamais imaginada, superarão em popularidade o vocabulário de todos os relatórios dos fronts escritos de 1914 a 1918.

Elas dizem respeito a cada pessoa diretamente. A guerra vindoura terá um front espectral. Um front que será deslocado fantasmagoricamente ora para esta, ora para aquela metrópole, para suas ruas, diante da porta de cada uma de suas casas. Ademais, essa guerra, a guerra do gás que vem dos ares, representará um risco literalmente “de tirar o fôlego”, em que esse termo assumirá um sentido até agora desconhecido. Porque sua peculiaridade estratégica mais incisiva reside nisto: ser a forma mais pura e radical de guerra ofensiva. Não há defesa eficiente contra os ataques com gás pelo ar. Até mesmo as medidas privadas de proteção, as máscaras antigás, falham na maioria dos casos.

Por conseguinte, o ritmo do conflito bélico vindouro será ditado pela tentativa não só de defender-se mas também de suplantar os terrores provocados pelo inimigo por terrores dez vezes maiores. Em consequência, é irrelevante quando teóricos mais bem intencionados acenam com a perspectiva “humana” do gás lacrimogêneo, e até procuram criar simpatia pela guerra com o gás, comparando-a com a guerra aérea com materiais explosivos.

Outros já têm a visão mais aguçada, quando colocam de antemão e em primeiro plano, como motivo para o ataque com gás (cuja importância crescente já foi ensinada pela guerra passada), o seguinte: a finalidade última das ações da frota aérea deve ser destruir a vontade de resistência inimiga. Alguns poucos “raids” [ataques] devem infundir na população dos centros inimigos um terror inconsciente tal que malogre qualquer apelo à organização da resistência. O terror deve ser algo similar à psicose.

Uma imagem que nada tem das utopias de Wells e Júlio Verne: nas ruas de Berlim, espalha-se sob o belo e radiante céu primaveril um cheiro parecido com o das violetas. Isso dura alguns minutos. Logo em seguida, o ar se tornará sufocante. Quem não lograr escapar da sua esfera de ação nos minutos seguintes não conseguirá mais reconhecer nada, perderá momentaneamente a visão.

E, se ainda não for bem-sucedido na fuga ou se nenhum transporte o recolher, morrerá sufocado. Tudo isso poderá suceder um dia sem que se veja no céu qualquer aeronave nem se perceba o ronco de uma hélice. O céu poderá estar claro e o sol brilhando, mas invisível e inaudível, a uma altitude de 5.000 metros, paira um esquadrão aéreo respingando cloroacetofenona, gás lacrimogêneo, o “mais humano” dos novos recursos que, como se sabe, já teve certa importância nos ataques com gás da última guerra.

Não há meio confiável que permita perceber a presença dos esquadrões entre cinco e seis quilômetros acima da superfície da Terra. Ao menos publicamente não se conhece nenhum. É que a “ouverture” abafada que há anos está sendo executada nos laboratórios químicos e técnicos só chega aos ouvidos do público em forma de dissonâncias isoladas.

Esporadicamente fica-se sabendo de coisas, como da invenção de um receptor acústico muito sensível, capaz de registrar o ronco de hélices a grandes distâncias. E alguns meses depois ouve-se falar da invenção de uma aeronave silenciosa.

Alguns fatos que o correspondente de guerra norte-americano William G. Shepherd divulga no “Liberty” sobre a “aplicabilidade” do parque aeronáutico francês na guerra são ilustrativos.

A França possui hoje pelo menos 2.500 aeronaves no serviço ativo à paz; há mais na reserva. A tonelagem total das forças aéreas francesas, dependendo da altitude de voo, comporta entre 600 e 3.000 toneladas. Shepherd põe Londres como alvo. O centro de Londres, sede de todos os institutos vitais do Império Britânico, cobre quatro milhas quadradas inglesas. Para se tornar inabitável por vários meses, essa área exige a aplicação de 120 toneladas de sulfeto de dicloroetila, o gás mostarda.

Considerando que sobre esse território podem voar ao mesmo tempo -dentro da mesma camada atmosférica, naturalmente- no máximo 250 aviadores, cada um deles carregando pelo menos 250 quilos, e que esse esquadrão despeje uma tonelada por minuto, o coração do império mundial britânico -sempre de acordo com a abordagem de Shepherd- terá parado de bater após dois minutos.

INÉRCIA

O aspecto problemático dessas exposições é que a fantasia humana se recusa a acompanhá-las, e justamente a monstruosidade do destino ameaçador se torna um pretexto para a inércia mental. Sua tentativa de convencimento sempre resulta em que uma guerra dessas ou é de todo “impossível” ou seria de extrema brevidade. Na verdade, essa guerra só terminaria num breve instante se a respectiva base dos esquadrões aeronáuticos fosse conhecida dos combatentes.

Não é esse o caso. Pois essa base de modo algum precisa situar-se em terra. Em algum lugar do oceano, as aeronaves podem alçar voo de navios porta-aviões, que mudam constantemente sua localização sobre as águas.

Com o que se parecem os gases venenosos, cuja aplicação pressupõe a suspensão de todos os movimentos humanos? Conhecemos 17 até agora, dos quais o gás mostarda e a lewisita são os mais importantes.

As máscaras antigases não oferecem proteção contra eles. O gás mostarda corrói a carne e, quando não acarreta diretamente a morte, produz queimaduras cuja cura demanda três meses. Esse gás permanece virulento durante meses em objetos que entraram em contato com ele. Nas regiões que alguma vez foram alvo de um ataque com gás mostarda, meses depois, cada pisada no solo, cada maçaneta de porta e cada faca de pão ainda podem provocar a morte.

O gás mostarda, a exemplo de muitos outros gases venenosos, torna todos os víveres incomestíveis e envenena a água. Os estrategistas imaginam assim a utilização desse recurso: certos distritos taticamente importantes devem ser cercados com barreiras de gás mostarda ou então de difenilamina cloroarsina.

Dentro dessas barreiras tudo perece e nada consegue passar por elas. Desse modo, casas, cidades, campos podem ser preparados de tal forma que, durante meses, nenhuma vida animal ou vegetal é capaz de medrar neles. Nem é preciso dizer que, no caso da guerra com gás, cai por terra a diferenciação entre população civil e população combatente e, desse modo, um dos fundamentos mais sólidos do direito dos povos.

A lewisita é um veneno à base de arsênico que penetra imediatamente no sangue, matando de forma irremediável e súbita tudo o que atinge. Durante meses todas as áreas atingidas por ataques com esse gás ficam empestadas de cadáveres. Naturalmente não existe proteção contra ele em tais regiões: porões subterrâneos, que protegem quando muito de bombas explosivas, trazem a morte certa no caso de ataques com gás, porque o gás, pesado, tende para os lugares mais baixos.

Ora, como se sabe, o Comitê Central da Liga das Nações instituiu uma Comissão para o Estudo da Guerra Química e Bacteriológica. Dessa comissão participaram autoridades internacionais. Seu relatório não foi tratado com a devida consideração. A grande política ainda prioriza problemas de armamentismo e desarmamento cuja relevância se desfaz no ar frente aos fatos referentes aos preparativos para a guerra química.

A persistência com que, na execução do Tratado de Versalhes pela Alemanha, foram questionados ridículos requisitos militares não tem só um aspecto desagradável mas sobretudo algo de sumamente perigoso. Porque ela desvia a atenção pública do único problema atual do militarismo internacional.

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WALTER BENJAMIN (1892-1940), filósofo e crítico literário alemão, autor de “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”.

NÉLIO SCHNEIDER, 52, tradutor do alemão especialista na área de ciências humanas, assina a versão em português de novo livro de ensaios de Walter Benjamin, a sair pela Boitempo, “O Capitalismo como Religião”.

Notas

1. Cloroacetofenona, difenilamina cloroarsina e sulfeto de dicloroetila são os nomes dos compostos químicos usados como armas; eles integravam o subtítulo original do artigo de Benjamin, daí a menção às “designações anteriores”.
2. “Dicke Berta”, em alemão, era o apelido de um morteiro de 42 centímetros, desenvolvido pela firma alemã Krupp para a Primeira Guerra Mundial. (N.T.)

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.