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terça-feira, 2 de julho de 2013

Marilena Chauí: O inferno urbano e a política do favor, tutela e cooptação


Marilena Chauí: O inferno urbano e a política do favor, tutela e cooptação 
          publicado em 27 de junho de 2013 às 15:30
As manifestações de junho de 2013 na cidade de São Paulo
          por Marilena Chaui, na revista Teoria e Debate

Observações preliminares

O que segue não são reflexões sobre todas as manifestações ocorridas no país, mas focalizam principalmente as ocorridas na cidade de São Paulo, embora algumas palavras de ordem e algumas atitudes tenham sido comuns às manifestações de outras cidades (a forma da convocação, a questão da tarifa do transporte coletivo como ponto de partida, a desconfiança com relação à institucionalidade política como ponto de chegada) bem como o tratamento dado a elas pelos meios de comunicação (condenação inicial e celebração final, com criminalização dos “vândalos”) permitam algumas considerações mais gerais a título de conclusão.

O estopim das manifestações paulistanas foi o aumento da tarifa do transporte público e a ação contestatória da esquerda com o Movimento Passe Livre (MPL), cuja existência data de 2005 e é composto por militantes de partidos de esquerda. Em sua reivindicação especifica, o movimento foi vitorioso sob dois aspectos: 1. conseguiu a redução da tarifa; 2. definiu a questão do transporte público no plano dos direitos dos cidadãos e, portanto, afirmou o núcleo da prática democrática, qual seja, a criação e defesa de direitos por intermédio da explicitação (e não do ocultamento) dos conflitos sociais e políticos.

O inferno urbano

Não foram poucos os que, pelos meios de comunicação, exprimiram sua perplexidade diante das manifestações de junho de 2013: de onde vieram e por que vieram se os grandes problemas que sempre atormentaram o país (desemprego, inflação, violência urbana e no campo) estão com soluções bem encaminhadas e reina a estabilidade política? As perguntas são justas, mas a perplexidade, não, desde que  voltemos nosso olhar para um ponto que foi sempre o foco dos movimentos populares: a situação da vida urbana nas grandes metrópoles brasileiras.

Quais os traços mais marcantes da cidade de São Paulo nos últimos anos e que, sob certos aspectos, podem ser generalizados para as demais? Resumidamente, podemos dizer que são os seguintes:

– explosão do uso do automóvel individual: a mobilidade urbana se tornou quase impossível, ao mesmo tempo em que a cidade se estrutura com um sistema viário destinado aos carros individuais em detrimento do transporte coletivo, mas nem mesmo esse sistema é capaz de resolver o problema;

– explosão imobiliária com os grandes condomínios (verticais e horizontais) e shopping centers, que produzem uma densidade demográfica praticamente incontrolável além de não contar com uma redes de água, eletricidade e esgoto, os problemas sendo evidentes, por exemplo, na ocasião de chuvas;

– aumento da exclusão social e da desigualdade com a expulsão dos moradores das regiões favorecidas pelas grandes especulações imobiliárias e o conseqüente aumento das periferias carentes e de sua crescente distância com relação aos locais de trabalho, educação e serviços de saúde. (No caso de São Paulo, como aponta Hermínia Maricatto, deu-se a ocupação das regiões de mananciais, pondo em risco a saúde de toda a população); em resumo: degradação da vida cotidiana das camadas mais pobres da cidade;

– o transporte coletivo indecente, indigno e mortífero.  No caso de São Paulo, sabe-se que o programa do metrô previa a entrega de 450 k de vias até 1990; de fato, até 2013, o governo estadual apresenta 90 k. Além disso, a frota de trens metroviários não foi ampliada, está envelhecida e mal conservada; além da insuficiência quantitativa para atender a demanda, há atrasos constantes por quebra de trens e dos instrumentos de controle das operações. O mesmo pode ser dito dos trens da CPTU, que também são de responsabilidade do governo estadual.

No caso do transporte por ônibus, sob responsabilidade municipal, um cartel domina completamente o setor sem prestar contas a ninguém: os ônibus são feitos com carrocerias destinadas a caminhões, portanto, feitos para transportar coisas e não pessoas; as frotas estão envelhecidas e quantitativamente defasadas com relação às necessidades da população, sobretudo as das periferias da cidade; as linhas são extremamente longas porque isso as torna mais lucrativas, de maneira que os passageiros são obrigados a trajetos absurdos, gastando horas para ir ao trabalho, às escolas, aos serviços de saúde e voltar para casa; não há linhas conectando pontos do centro da cidade nem linhas inter-bairros, de maneira que o uso do automóvel individual se torna quase inevitável para trajetos menores.

Em resumo: definidas e orientadas pelos imperativos dos interesses privados, as montadoras de veículos, empreiteiras da construção civil e empresas de transporte coletivo dominam a cidade sem assumir qualquer responsabilidade pública, impondo o que chamo de inferno urbano.

2. As manifestações paulistanas

A tradição de lutas

Recordando: A cidade de São Paulo (como várias das grandes cidades brasileiras) tem uma tradição histórica de revoltas populares contra as péssimas condições do transporte coletivo, isto é, a tradição do quebra-quebra quando, desesperados e enfurecidos, os cidadãos quebram e incendeiam ônibus e trens (à maneira do que faziam os operários no início da Segunda Revolução Industrial, quando usavam os tamancos de madeira – em francês, os sabots – para quebrar as máquinas – donde a palavra francesa sabotage, sabotagem). Entretanto, não foi este o caminho tomado pelas manifestações atuais e valeria a pena indagar por que. Talvez porque, vindo da esquerda, o MPL politiza explicitamente a contestação, em vez de politiza-la simbolicamente, como faz o quebra-quebra.

Recordando: Nas décadas de 1970 a 1990, as organizações de classe (sindicatos, associações, entidades) e os movimentos sociais e populares tiveram um papel político decisivo na implantação da democracia no Brasil pelos seguintes motivos:

1. introdução da idéia de direitos sociais, econômicos e culturais para além dos direitos civis liberais;

2. afirmação da capacidade auto-organizativa da sociedade;

3. introdução da prática da democracia participativa como condição da democracia representativa a ser efetivada pelos partidos políticos. Numa palavra: sindicatos, associações, entidades, movimentos sociais e movimentos populares eram políticos, valorizavam a política, propunham mudanças políticas e rumaram para a criação de partidos políticos como mediadores institucionais de suas demandas.

Isso quase desapareceu da cena histórica como efeito do neoliberalismo, que produziu:

1. fragmentação, terceirização e precarização do trabalho (tanto industrial como de serviços) dispersando a classe trabalhadora, que se vê diante do risco da perda de seus referenciais de identidade e de luta;

2. refluxo dos movimentos sociais e populares e sua substituição pelas ONGs, cuja lógica é distinta daquela que rege os movimentos sociais;

3. surgimento de uma nova classe trabalhadora heterogênea, fragmentada, ainda desorganizada e que por isso ainda não tem suas próprias formas de luta e não se apresenta no espaço público e que por isso mesmo é atraída e devorada por ideologias individualistas como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a ideologia do “empreendedorismo” (da classe média), que estimulam a competição, o isolamento e o conflito inter-pessoal, quebrando formas anteriores de sociabilidade solidária e de luta coletiva.

Erguendo-se contra os efeitos do inferno urbano, as manifestações guardaram da tradição dos movimentos sociais e populares a organização horizontal, sem distinção hierárquica entre dirigentes e dirigidos. Mas, diversamente dos movimentos sociais e populares,  tiveram uma forma de convocação que as transformou num movimento de massa, com milhares de manifestantes nas ruas.

O pensamento mágico

A convocação foi feita por meio das redes sociais. Apesar da celebração  desse tipo de convocação, que derruba o monopólio dos meios de comunicação de massa, entretanto é preciso mencionar alguns problemas postos pelo uso dessas redes, que possui algumas características que o aproximam dos procedimentos da midia:

a. é indiferenciada: poderia ser para um show da Madonna, para uma maratona esportiva, etc. e calhou ser por causa da tarifa do transporte público;

b. tem a forma de um evento, ou seja, é pontual, sem passado, sem futuro e sem saldo organizativo porque, embora tenha partido de um movimento social (o MPL), à medida que cresceu passou á recusa gradativa da estrutura de um movimento social para se tornar um espetáculo de massa. (Dois exemplos confirmam isso: a ocupação de Wall Street pelos jovens de Nova York e que, antes de se dissolver, se tornou um ponto de atração turística para os que visitavam a cidade; e o caso do Egito, mais triste, pois com o fato das manifestações permanecerem como eventos e não se tornarem uma forma de auto-organização política da sociedade, deram ocasião para que os poderes existentes passassem de uma ditadura para outra);

c. assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários e, portanto, não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, deste ponto de vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa.

A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a idéia de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação;

d. a recusa das mediações institucionais indica que estamos diante de uma ação própria da sociedade de massa, portanto,  indiferente à determinação de classe social; ou seja, no caso presente, ao se apresentar como uma ação da juventude, o movimento  assume a aparência de que o  universo dos manifestantes é homogêneo ou de massa, ainda que, efetivamente, seja heterogêneo do ponto de vista econômico, social e político, bastando lembrar que as manifestações das periferias não foram apenas de “juventude” nem de classe média, mas de jovens, adultos, crianças e idosos da classe trabalhadora.

No ponto de chegada, as manifestações introduziram o tema da corrupção política e a recusa dos partidos políticos. Sabemos que o MPL é  constituído por militantes de vários partidos de esquerda e, para assegurar a unidade do movimento, evitou a referência aos partidos de origem.

Por isso foi às ruas sem definir-se como expressão de partidos políticos e, em São Paulo, quando, na comemoração da vitória, os militantes partidários compareceram às ruas foram execrados, espancados, e expulsos como oportunistas – sofreram repressão violenta por parte da massa. Ou seja, alguns manifestantes praticaram sobre outros a violência que condenaram na polícia.

A crítica às instituições políticas não é infundada, mas possui base concreta:

a. no plano conjuntural: o inferno urbano é, efetivamente, responsabilidade dos partidos políticos governantes;

b. no plano estrutural: no Brasil, sociedade autoritária e excludente, os partidos políticos tendem a ser clubes privados de oligarquias locais, que usam o público para seus interesses privados; a qualidade dos legislativos nos três níveis é a mais baixa possível e a corrupção é estrutural; como consequência,  a relação de representação não se concretiza porque vigoram relações de favor, clientela, tutela e cooptação;

c. a crítica ao PT:  de ter abandonado a relação com aquilo que determinou seu nascimento e crescimento, isto é, o campo das lutas sociais auto-organizadas e ter-se transformado numa máquina burocrática e eleitoral (como têm dito e escrito muitos militantes ao longo dos últimos 20 anos).

Isso, porém, embora explique a recusa, não significa que esta tenha sido motivada pela clara compreensão do problema por parte dos manifestantes. De fato, a maioria deles não exprime em suas falas uma análise das causas desse modo de funcionamento dos partidos políticos, qual seja, a estrutura autoritária da sociedade brasileira, de um lado, e, de outro, o sistema político-partidário montado pelos casuímos da ditadura. Em lugar de lutar por uma reforma política, boa parte dos manifestantes recusa a legitimidade do partido político como instituição republicana e democrática.

Assim, sob este aspecto, apesar do uso das redes sociais e da crítica aos meios de comunicação, a maioria dos manifestantes aderiu à mensagem ideológica difundida anos a fio pelos meios de comunicação de que os partidos são corruptos por essência.

Como se sabe, essa posição dos meios de comunicação tem a finalidade de lhes conferir o monopólio das funções do espaço público, como se não fossem empresas  capitalistas movidas por interesses privados.

Dessa maneira, a recusa dos meios de comunicação e as críticas a eles endereçadas pelos manifestantes não impediram que grande parte deles aderisse à perspectiva da classe média conservadora difundida pela mídia a respeito da ética.

De fato, a maioria dos manifestantes, reproduzindo a linguagem midiática, falou de ética na política (ou seja, a transposição dos valores do espaço privado para o espaço público), quando, na verdade, se trataria de afirmar a ética da política (isto é, valores propriamente públicos), ética que não depende das virtudes morais das pessoas privadas dos políticos e sim da qualidade das instituições públicas enquanto instituições republicanas.

A ética da política, no nosso caso, depende de uma profunda reforma política que crie instituições democráticas republicanas e destrua de uma vez por todas a estrutura deixada pela ditadura, que força os partidos políticos a coalizões absurdas se quiserem governar, coalizões que comprometem o sentido e a finalidade de seus programas e abrem as comportas para a corrupção.

Em lugar da ideologia conservadora e midiática de que, por definição e por essência, a política é corrupta, trata-se de promover uma prática inovadora capaz de criar instituições públicas que impeçam a corrupção, garantam a participação, a representação e o controle dos interesses públicos e dos direitos pelos cidadãos. Numa palavra, uma invenção democrática.

Ora, ao entrar em cena o pensamento mágico, os manifestantes deixam de lado que, até que uma nova forma da política seja criada num futuro distante quando, talvez, a política se realizará sem partidos, por enquanto, numa república democrática (ao contrário de uma ditadura) ninguém governa sem um partido, pois é este que cria e prepara quadros para as funções governamentais para concretização dos objetivos e das metas dos governantes eleitos.

Bastaria que os manifestantes se informassem sobre o governo Collor para entender isso: Collor partiu das mesmas afirmações feitas por uma parte dos manifestantes (partido político é coisa de “marajá” e é corrupto) e se apresentou como um homem sem partido. Resultado: a) não teve quadros para montar o governo, nem diretrizes e metas coerentes e b) deu feição autocrática ao governo, isto é, “o governo sou eu”. Deu no que deu.

Além disso, parte dos manifestantes está adotando a posição ideológica típica da classe média, que aspira por governos sem mediações institucionais e, portanto, ditatoriais. Eis porque surge a afirmação de muitos manifestantes, enrolados na bandeira nacional, de que “meu partido é meu país”, ignorando, talvez, que essa foi uma das afirmações fundamentais do nazismo contra os partidos políticos.

Assim, em lugar de inventar uma nova política, de ir rumo a uma invenção democrática, o pensamento mágico de grande parte dos manifestantes se ergueu contra a política, reduzida à figura da corrupção. Historicamente, sabemos onde isso foi dar.

E por isso não nos devem surpreender, ainda que devam nos alarmar, as imagens de jovens militantes de partidos e movimentos sociais de esquerda espancados e ensangüentados durante a manifestação de comemoração da vitória do MPL.

Já vimos essas imagens na Itália dos anos 1920, na Alemanha dos anos 1930 e no Brasil dos anos 1960-1970.

Conclusão provisória

Do ponto de vista simbólico, as manifestações possuem um sentido importante que contrabalança os problemas aqui mencionados.

Não se trata, como se ouviu dizer nos meios de comunicação, que finalmente os jovens abandonaram a “bolha” do condomínio e do shopping center e decidiram ocupar as ruas (já podemos prever o número de novelas e mini-séries que usarão essa idéia para incrementar o programa High School Brasil, da Rede Globo).

Simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas afirmações explícitas contra a política, os manifestantes realizaram um evento político: disseram não ao que aí está, contestando as ações dos poderes executivos municipais, estaduais e federal, assim como as do poder legislativo nos três níveis.

Praticando a tradição do humor corrosivo que percorre as ruas, modificaram o sentido corriqueiro das palavras e do discurso conservador por meio da inversão das significações e da irreverência, indicaram uma nova possibilidade de práxis política, uma brecha para repensar o poder, como escreveu um filósofo político sobre os acontecimentos de maio de 1968 na Europa.

Justamente porque uma nova possibilidade política está aberta, algumas observações merecem ser feitas para que fiquemos alertas aos riscos de apropriação e destruição dessa possibilidade pela direita conservadora e reacionária.

Comecemos por uma obviedade: como as manifestações são de massa (de juventude, como propala a mídia) e não aparecem em sua determinação de classe social, que, entretanto, é clara na composição social das manifestações das periferias paulistanas, é preciso lembrar que uma parte dos manifestantes não vive nas periferias das cidades, não experimenta a violência do cotidiano experimentada pela outra parte dos manifestantes.

Com isso, podemos fazer algumas indagações.

Por exemplo: os jovens manifestantes de classe média que vivem nos condomínios têm idéia de que suas famílias também são responsáveis pelo inferno urbano (o aumento da densidade demográfica dos bairros e a expulsão dos moradores populares para as periferias distantes e carentes)? Os jovens manifestantes de classe média que, no dia em que fizeram 18 anos, ganharam de presente um automóvel (ou estão na expectativa do presente quando completarem essa idade), têm idéia de que também são responsáveis pelo inferno urbano? Não é paradoxal, então, que se ponham a lutar contra aquilo que é resultado de sua própria ação (isto é, de suas famílias), mas atribuindo tudo isso à política corrupta, como é típico da classe média?

Essas indagações não são gratuitas nem expressão de má-vontade a respeito das manifestações de 2013. Elas têm um motivo político e um lastro histórico.

Motivo político: assinalamos anteriormente o risco de apropriação das manifestações rumo ao conservadorismo e ao autoritarismo. Só será possível evitar esse risco se os jovens manifestantes levarem em conta algumas perguntas:

1. estão dispostos a lutar contra as ações que causam o inferno urbano e, portanto, enfrentar pra valer o poder do capital de montadoras, empreiteiras e cartéis de transporte que, como todo sabem não se relacionam  pacificamente (para dizer o mínimo) com demandas sociais?

2. estão dispostos a abandonar a suposição de que a política se faz magicamente sem mediações institucionais?

3. estão dispostos a se engajar na luta pela reforma política, a fim de inventar uma nova política, libertária, democrática, republicana, participativa?

4. estão dispostos a não reduzir sua participação a um evento pontual e efêmero e a não se deixar seduzir pela imagem que deles querem produzir os meios de comunicação?

Lastro histórico: quando Luiza Erundina, partindo das demandas dos movimentos populares e dos compromissos com a justiça social, propôs a Tarifa Zero para o transporte público de São Paulo, ela explicou à sociedade que a tarifa precisava ser subsidiada pela Prefeitura e que ela não faria o subsídio implicar em cortes nos orçamentos de educação, saúde, moradia e assistência social, isto é, dos programas sociais prioritários de seu governo.

Antes de propor a Tarifa Zero, ela aumentou em 500% a frota da CMTC (explicação para os jovens: CMTC era a antiga empresa municipal de transporte) e forçou os empresários privados a renovar sua frota.

Depois disso, em inúmeras audiências públicas, ela apresentou todos os dados e planilhas da CMTC e obrigou os empresários das companhias privadas de transporte coletivo a fazer o mesmo, de maneira que a sociedade ficou plenamente informada quanto aos recursos que seriam necessários para o subsídio.

Ela propôs, então, que o subsídio viesse de uma mudança tributária: o IPTU progressivo, isto é, o imposto predial seria aumentado para os imóveis dos mais ricos, que contribuiriam para o subsídio juntamente com outros recursos da Prefeitura.

Na medida que os mais ricos, como pessoas privadas, têm serviçais domésticos que usam o transporte público, e, como empresários, têm funcionários usuários desse mesmo transporte, uma forma de realizar a transferência de renda, que é base da justiça social, seria exatamente fazer com que uma parte do subsídio viesse do novo IPTU.

Os jovens manifestantes de hoje desconhecem o que se passou: comerciantes fecharam ruas inteiras, empresários ameaçaram lockout das empresas, nos “bairros nobres” foram feitas  manifestações contra o “totalitarismo comunista” da prefeita e os poderosos da cidade “negociaram” com os vereadores a não aprovação do projeto de lei.

A Tarifa Zero não foi implantada. Discutida na forma de democracia participativa, apresentada com lisura e ética política, sem qualquer mancha possível de corrupção, a proposta foi rejeitada.

Esse lastro histórico mostra o limite do pensamento mágico, pois não basta ausência de corrupção, como imaginam os manifestantes, para que tudo aconteça imediatamente da melhor maneira e como se deseja.

Cabe uma última observação: se não levarem em consideração a divisão social das classes, isto é, os conflitos de interesses e de poderes econômico-sociais na sociedade, os manifestantes não compreenderão o campo econômico-político no qual estão se movendo quando imaginam estar agindo fora da política e contra ela.

Entre os vários riscos dessa imaginação, convém lembrar aos manifestantes que se situam à esquerda que, se não tiverem autonomia política e se não a defenderem com muita garra, poderão, no Brasil, colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E a mídia, penhorada, agradecerá pelos altos índices de audiência.

Fonte: Viomundo

sábado, 1 de setembro de 2012

Marilena Chaui: a imprensa golpista produz culpas e condena sumariamente



Chauí: a opinião dos especialistas passa a ter o valor de um fato

Chauí: PiG (partido da imprensa golpista *) produz culpas e condena sumariamente
Publicado em 30/08/2012
Leia a antológica palestra de Marilena Chauí.


Num evento em defesa da liberdade de expressão e por uma Ley de Medios, realizado no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, nessa segunda feira, a professora Marilena Chauí fez uma palestra antológica.




I. Democracia e autoritarismo social


Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. Visto que o pensamento e a prática liberais identificam a liberdade com a ausência de obstáculos à competição, essa definição da democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz à competição econômica da chamada “livre iniciativa” e à competição política entre partidos que disputam eleições; em segundo, que embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia, medida no plano do poder executivo pela atividade de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado. A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na idéia de cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais.

Ora, há, na prática democrática e nas idéias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que liberalismo percebe e deixa perceber.

Podemos, em traços breves e gerais, caracterizar a democracia ultrapassando a simples idéia de um regime político identificado à forma do governo, tomando-a como forma geral de uma sociedade e, assim, considerá-la:

1. forma sócio-política definida pelo princípio da isonomia ( igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor  em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa). Donde o maior problema da democracia numa sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios – igualdade e liberdade – sob os efeitos da desigualdade real;

2. forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. A democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra dificuldade democrática nas sociedades de classes: como operar com os conflitos quando estes possuem a forma da contradição e não a da mera oposição?

3. forma sócio-política que busca enfrentar as dificuldades acima apontadas conciliando o princípio da igualdade e da liberdade e a existência real das desigualdades, bem como o princípio da legitimidade do conflito e a existência de contradições materiais introduzindo, para isso, a idéia dos direitos ( econômicos, sociais, políticos e culturais). Graças aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entrando no espaço político para reivindicar a participação nos direitos existentes e sobretudo para criar novos direitos. Estes são novos não simplesmente porque não existiam anteriormente, mas porque são diferentes daqueles que existem, uma vez que fazem surgir, como cidadãos, novos sujeitos políticos que os afirmaram e os fizeram ser reconhecidos por toda a sociedade.

4. graças à idéia e à prática da criação de direitos, a democracia não define a liberdade apenas pela ausência de obstáculos externos à ação, mas a define pela autonomia, isto é, pela capacidade dos sujeitos sociais e políticos darem a si mesmos suas próprias normas e regras de ação. Passa-se, portanto, de uma definição negativa da liberdade – o não obstáculo ou o não-constrangimento externo – a uma definição positiva – dar a si mesmo suas regras e normas de ação. A liberdade possibilita aos cidadãos instituir contra-poderes sociais por meio dos quais interferem diretamente no poder por meio de reivindicações e controle das ações estatais.

5. pela criação dos direitos, a democracia surge como o único regime político realmente aberto às mudanças temporais, uma vez que faz surgir o novo como parte de sua existência e, conseqüentemente, a temporalidade é constitutiva de seu modo de ser, de maneira que a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, pois não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva de alterar-se pela própria práxis;

6. única forma sócio-política na qual o caráter popular do poder e das lutas tende a evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida em que os direitos só ampliam seu alcance ou só surgem como novos pela ação das classes populares contra a cristalização jurídico-política que favorece a classe dominante. Em outras palavras, a marca da democracia moderna, permitindo sua passagem de democracia liberal á democracia social, encontra-se no fato de que somente as classes populares e os excluídos (as “minorias”) reivindicam direitos e criam novos direitos;

7. forma política na qual a distinção entre o poder e o governante é garantida não só pela presença de leis e pela divisão de várias esferas de autoridade, mas também pela existência das eleições, pois estas ( contrariamente do que afirma a ciência política) não significam  mera “alternância no poder”, mas assinalam que o poder está sempre vazio, que seu detentor é a sociedade e que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato temporário para isto. Em outras palavras, os sujeitos políticos não são simples votantes, mas eleitores. Eleger significa não só exercer o poder, mas manifestar a origem do poder, repondo o princípio afirmado pelos romanos quando inventaram a política: eleger é “dar a alguém aquilo que se possui, porque ninguém pode dar o que não tem”, isto é, eleger é afirmar-se soberano para escolher ocupantes temporários do governo.

Dizemos, então, que uma sociedade — e não um simples regime de governo — é democrática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e da minoria, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos e que essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática social realiza-se como uma contra-poder social que determina, dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes.

Se esses são os principais traços da sociedade democrática, podemos avaliar as enormes dificuldades para instituir a democracia no Brasil. De fato, a sociedade brasileira é estruturalmente violenta, hierárquica, vertical, autoritária e oligárquica e o Estado é patrimonialista e cartorial, organizado segundo a lógica clientelista e burocrática. O clientelismo bloqueia a prática democrática da representação  — o representante não é visto como portador de um mandato dos representados, mas como provedor de favores aos eleitores. A burocracia bloqueia a democratização do Estado porque não é uma organização do trabalho e sim uma forma de poder fundada em três princípios opostos aos democráticos: a hierarquia, oposta à igualdade; o segredo, oposto ao direito à informação; e a rotina de procedimentos, oposta à abertura temporal da ação política.

Além disso, social e economicamente nossa sociedade está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, bloqueando a instituição e a consolidação da democracia. Um privilégio é, por definição, algo particular que não pode generalizar-se nem universalizar-se sem deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular ou específica que se exprime numa demanda também particular ou específica, não conseguindo generalizar-se nem universalizar-se. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é particular e específico, mas geral e universal,  seja porque é o mesmo e válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora diferenciado é reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das minorias). Assim, a polarização econômico-social entre a carência e o privilégio ergue-se como obstáculo à instituição de direitos, definidora da democracia.

A esses obstáculos, podemos acrescentar ainda aquele decorrente do neoliberalismo, qual seja o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado. Economicamente, trata-se da  eliminação de direitos econômicos, sociais e políticos garantidos pelo poder público, em proveito dos interesses privados da classe dominante, isto é, em proveito do  capital; a economia e a política neoliberais são a decisão de destinar os fundos públicos aos investimentos do capital e de cortar os investimentos públicos destinados aos direitos sociais, transformando-os em serviços definidos pela lógica do mercado, isto é, a privatização dos direitos transformados em serviços, privatização que aumenta a cisão social entre a carência e o privilégio, aumentando todas formas de exclusão. Politicamente o encolhimento do público e o alargamento do privado colocam em evidência o bloqueio a um direito democrático fundamental sem o qual a cidadania, entendida como participação social, política e cultural é impossível, qual seja, o direito à informação.

II. Os meios de comunicação como exercício de poder


Podemos focalizar o exercício do poder pelos meios de comunicação de massa sob dois aspectos principais: o econômico e o ideológico.

Do ponto de vista econômico, os meios de comunicação fazem parte da indústria cultural. Indústria porque são empresas privadas operando no mercado e que, hoje, sob a ação da chamada globalização, passa por profundas mudanças estruturais, “num processo nunca visto de fusões e aquisições, companhias globais ganharam posições de domínio na mídia.”, como diz o jornalista Caio Túlio Costa. Além da forte concentração (os oligopólios beiram o monopólio), também é significativa a presença, no setor das comunicações, de empresas que não tinham vínculos com ele nem tradição nessa área. O porte dos investimentos e a perspectiva de lucros jamais vistos levaram grupos proprietários de bancos, indústria metalúrgica, indústria elétrica e eletrônica, fabricantes de armamentos e aviões de combate, indústria de telecomunicações a adquirir, mundo afora, jornais, revistas, serviços de telefonia, rádios e televisões, portais de internet, satélites, etc..

No caso do Brasil, o poderio econômico dos meios é inseparável da forma oligárquica do poder do Estado, produzindo um dos fenômenos mais contrários à democracia, qual seja, o que Alberto Dines chamou de “coronelismo eletrônico”, isto é, a forma privatizada das concessões públicas de canais de rádio e televisão, concedidos a parlamentares e lobbies privados, de tal maneira que aqueles que deveriam fiscalizar as concessões públicas se tornam concessionários privados, apropriando-se de um bem público para manter privilégios, monopolizando a comunicação e a informação. Esse privilégio é um poder político que se ergue contra dois direitos democráticos essenciais: a isonomia (a igualdade perante a lei) e a isegoria (o direito à palavra ou o igual direito de todos de expressar-se em público e ter suas opiniões publicamente discutidas e avaliadas). Numa palavra, a cidadania democrática exige que os cidadãos estejam informados para que possam opinar e intervir politicamente e isso lhes é roubado pelo poder econômico dos meios de comunicação.

A isonomia e a isegoria são também ameaçadas e destruídas pelo poder ideológico dos meios de comunicação. De fato, do ponto de vista ideológico, a mídia exerce o poder sob a forma do denominamos a ideologia da competência, cuja peculiaridade está em seu modo de aparecer sob a forma anônima e impessoal do discurso do conhecimento, e cuja eficácia social, política e cultural está fundada na crença na racionalidade técnico-científica.

A ideologia da competência pode ser resumida da seguinte maneira: não é qualquer um que pode em qualquer lugar e em qualquer ocasião dizer qualquer coisa a qualquer outro. O discurso competente determina de antemão quem tem o direito de falar e quem deve ouvir, assim como pré-determina os lugares e as circunstâncias em que é permitido falar e ouvir, e define previamente a forma e o conteúdo do que deve ser dito e precisa ser ouvido. Essas distinções têm como fundamento uma distinção principal, aquela que divide socialmente os detentores de um saber ou de um conhecimento (científico, técnico, religioso, político, artístico), que podem falar e têm o direito de mandar e comandar, e os desprovidos de saber, que devem ouvir e obedecer. Numa palavra, a ideologia da competência institui a divisão social entre os competentes, que sabem e por isso mandam, e os incompetentes, que não sabem e por isso obedecem.

Enquanto discurso do conhecimento, essa ideologia opera com a figura do especialista. Os meios de comunicação não só se alimentam dessa figura, mas não cessam de institui-la como sujeito da comunicação. O especialista competente é aquele que, no rádio, na TV, na revista, no jornal ou no multimídia, divulga saberes, falando das últimas descobertas da ciência ou nos ensinando a agir, pensar, sentir e viver. O especialista competente nos ensina a bem fazer sexo, jardinagem, culinária, educação das crianças, decoração da casa, boas maneiras, uso de roupas apropriadas em horas e locais apropriados, como amar Jesus e ganhar o céu, meditação espiritual, como ter um corpo juvenil e saudável, como ganhar dinheiro e subir na vida.  O principal especialista, porém, não se confunde com nenhum dos anteriores, mas é uma espécie de síntese, construída a partir das figuras precedentes: é aquele que explica e interpreta as notícias e os acontecimentos econômicos, sociais, políticos, culturais, religiosos e esportivos, aquele que devassa, eleva e rebaixa entrevistados, zomba, premia e pune calouros  — em suma, o chamado “formador de opinião” e o “comunicador”.

Ideologicamente, o poder da comunicação de massa não é um simples inculcação de valores e idéias, pois, dizendo-nos o que devemos pensar, sentir, falar e fazer, o especialista, o formador de opinião e o comunicados nos dizem que nada sabemos e por isso seu poder se realiza como manipulação e intimidação social e cultural.

Um dos aspectos mais terríveis desse duplo poder dos meios de comunicação se manifesta nos procedimentos midiáticos de produção da culpa e condenação sumária dos indivíduos, por meio de um instrumento psicológico profundo: a suspeição, que pressupõe a presunção de culpa. Ao se referir ao período do Terror, durante a Revolução Francesa,  Hegel considerou que uma de suas marcas essenciais é afirmar que, por princípio, todos são suspeitos e que os suspeitos são culpados antes de qualquer prova. Ao praticar o terror, a mídia fere dois direitos constitucionais democráticos, instituídos pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 (Revolução Francesa) e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, quais sejam: a presunção de inocência (ninguém pode ser considerado culpado antes da prova da culpa) e a retratação pública dos atingidos por danos físicos, psíquicos e morais, isto é, atingidos pela infâmia, pela injúria e pela calúnia. É para assegurar esses dois direitos que as sociedades democráticas exigem leis para regulação dos meios de comunicação, pois essa regulação é condição da liberdade e da igualdade que definem a sociedade democrática.

III.


Faz parte da vida da grande maioria da população brasileira ser espectadora de um tipo de programa de televisão no qual a intimidade das pessoas é o objeto central do espetáculo: programas de auditório, de entrevistas e de debates com adultos, jovens e crianças contando suas preferências pessoais desde o sexo até o brinquedo, da culinária ao vestuário, da leitura à religiosidade, do ato de escrever ou encenar uma peça teatral, de compor uma música ou um balé até os hábitos de lazer e cuidados corporais.

As ondas sonoras do rádio e as transmissões televisivas tornam-se cada vez mais consultórios sentimental, sexual, gastronômico, geriátrico, ginecológico, culinário, de cuidados com o corpo (ginástica, cosméticos, vestuário, medicamentos), de jardinagem, carpintaria, bastidores da criação artística, literária e da vida doméstica. Há programas de entrevista no rádio e na televisão que ou simulam uma cena doméstica – um almoço, um jantar – ou se realizam nas casas dos entrevistados durante o café da manhã, o almoço ou o jantar, nos quais a casa é exibida, os hábitos cotidianos são descritos e comentados, álbuns de família ou a própria são mostrados ao vivo e em cores. Os entrevistados e debatedores, os competidores dos torneios de auditório, os que aparecem nos noticiários, todos são convidados e mesmo instados com vigor a que falem de suas preferências, indo desde sabores de sorvete até partidos políticos, desde livros e filmes até hábitos sociais. Não é casual que os noticiários, no rádio e na televisão, ao promoverem entrevistas em que a notícia é intercalada com a fala dos direta ou indiretamente envolvidos no fato, tenham sempre repórteres indagando a alguém: “o que você sentiu/sente com isso?” ou “o que você achou/acha disso?” ou “você gosta? não gosta disso?”. Não se pergunta aos entrevistados o que pensam ou o que julgam dos acontecimentos, mas o que sentem, o que acham, se lhes agrada ou desagrada.

Também tornou-se um hábito nacional jornais e revistas especializarem-se cada vez mais em telefonemas a “personalidades” indagando-lhes sobre o que estão lendo no momento, que filme foram ver na última semana, que roupa usam para dormir, qual a lembrança infantil mais querida que guardam na memória, que música preferiam aos 15 anos de idade, o que sentiram diante de uma catástrofe nuclear ou ecológica, ou diante de um genocídio ou de um resultado eleitoral, qual o sabor do sorvete preferido, qual o restaurante predileto, qual o perfume desejado. Os assuntos se equivalem, todos são questão de gosto ou preferência, todos se reduzem à igual banalidade do “gosto” ou “não gosto”, do “achei ótimo” ou “achei horrível”.

Todos esses fatos nos conduzem a uma conclusão: a mídia está imersa na cultura do narcisismo.

Como observa Christopher Lash, em A Cultura do Narcisismo, os mass media tornaram irrelevantes as categorias da verdade e da falsidade substituindo-as pelas noções de credibilidade ou plausibilidade e confiabilidade – para que algo seja aceito como real basta que apareça como crível ou plausível, ou como oferecido por alguém confiável Os fatos cedem lugar a declarações de “personalidades autorizadas”, que não transmitem informações, mas preferências e estas se convertem imediatamente em propaganda. Como escreve Lash, “sabendo que um público cultivado é ávido por fatos e cultiva a ilusão de estar bem informado, o propagandista moderno evita slogans grandiloqüentes e se atém a ‘fatos’, dando a ilusão de que a propaganda é informação”.

Qual a base de apoio da credibilidade e da confiabilidade? A resposta encontra-se num outro ponto comum aos programas de auditório, às entrevistas, aos debates, às indagações telefônicas de rádios, revistas e jornais, aos comerciais de propaganda. Trata-se do apelo à intimidade, à personalidade, à vida privada como suporte e garantia da ordem pública. Em outras palavras, os códigos da vida pública passam a ser determinados e definidos pelos códigos da vida privada, abolindo-se a diferença entre espaço público e espaço privado. Assim, as relações interpessoais, as relações intersubjetivas e as relações grupais aparecem com a função de ocultar ou de dissimular as relações sociais enquanto sociais e as relações políticas enquanto políticas, uma vez que a marca das relações sociais e políticas é serem determinadas pelas instituições sociais e políticas, ou seja, são relações mediatas, diferentemente das relações pessoais, que são imediatas, isto é, definidas pelo relacionamento direto entre pessoas e por isso mesmo nelas os sentimentos, as emoções, as preferências e os gostos têm um papel decisivo. As relações sociais e políticas, que são mediações referentes a interesses e a direitos regulados pelas instituições, pela divisão social das classes e pela separação entre o social e o poder político, perdem sua especificidade e passam a operar sob a aparência da vida privada, portanto, referidas a preferências, sentimentos, emoções, gostos, agrado e aversão.

Não é casual, mas uma conseqüência necessária dessa privatização do social e do político, a destruição de uma categoria essencial das democracias, qual seja a da opinião pública. Esta, em seus inícios (desde a Revolução Francesa de 1789), era definida como a expressão, no espaço público, de uma reflexão individual ou coletiva sobre uma questão controvertida e concernente ao interesse ou ao direito de uma classe social, de um grupo ou mesmo da maioria. A opinião pública era um juízo emitido em público sobre uma questão relativa à vida política, era uma reflexão feita em público e por isso definia-se como uso público da razão e como direito à liberdade de pensamento e de expressão.

É sintomático que, hoje, se fale em “sondagem de opinião”. Com efeito, a palavra sondagem indica que não se procura a expressão pública racional de interesses ou direitos e sim que se vai buscar um fundo silencioso, um fundo não formulado e não refletido, isto é, que se procura fazer vir à tona o não-pensado, que existe sob a forma de sentimentos e emoções, de preferências, gostos, aversões e predileções, como se os fatos e os acontecimentos da vida social e política pudessem vir a se exprimir pelos sentimentos pessoais. Em lugar de opinião pública, tem-se a manifestação pública de sentimentos.

Nada mais constrangedor e, ao mesmo tempo, nada mais esclarecedor do que os instantes em que o noticiário coloca nas ondas sonoras ou na tela os participantes de um acontecimento falando de seus sentimentos, enquanto locutores explicam e interpretam o que se passa, como se os participantes fossem incapazes de pensar e de emitir juízo sobre aquilo de que foram testemunhas diretas e partes envolvidas. Constrangedor, porque o rádio e a televisão declaram tacitamente a incompetência dos participantes e envolvidos para compreender e explicar fatos e acontecimentos de que são protagonistas. Esclarecedor, porque esse procedimento permite, no instante mesmo em que se dão, criar a versão do fato e do acontecimento como se fossem o próprio fato e o próprio acontecimento. Assim, uma partilha é claramente estabelecida: os participantes “sentem”, portanto, não sabem nem compreendem (não pensam); em contrapartida, o locutor pensa, portanto, sabe e, graças ao seu saber, explica o acontecimento.

É possível perceber três deslocamentos sofridos pela idéia e prática da opinião pública: o primeiro, como salientamos, é a substituição da idéia de uso público da razão para exprimir interesses e direitos de um indivíduo, um grupo ou uma classe social pela idéia de expressão em público de sentimentos, emoções, gostos e preferências individuais; o segundo, como também observamos, é a substituição do direito de cada um e de todos de opinar em público pelo poder de alguns para exercer esse direito, surgindo, assim, a curiosa expressão “formador de opinião”, aplicada a intelectuais, artistas e jornalistas; o terceiro, que ainda não havíamos mencionado, decorre de uma mudança na relação entre s vários meios de comunicação sob os efeitos das tecnologias eletrônica e digital e da formação de oligopólios midiáticos globalizados (alguns autores afirmam que o século XXI começou com a existência de 10 ou 12 conglomerados de mass media de alcance global). Esse terceiro deslocamento se refere à forma de ocupação do espaço da opinião pública pelos profissionais dos meios de comunicação. Esses deslocamentos explicam algo curioso, ocorrido durante as sondagens de intenção de voto nas eleições presidenciais de 2006: diante dos resultados, uma jornalista do jornal O Globo  escreveu que o povo estava contra a opinião pública!

O caso mais interessante é, sem dúvida, o do jornalismo impresso. Em tempos passados, cabia aos jornais a tarefa noticiosa e um jornal era fundamentalmente um órgão de notícias. Sem dúvida, um jornal possuía opiniões e as exprimia: isso era feito, de um lado, pelos editorais e por artigos de não-jornalistas, e, de outro, pelo modo de apresentação da notícia (escolha das manchetes e do “olho”, determinação da página em que deveria aparecer e na vizinhança de quais outras, do tamanho do texto, da presença ou ausência de fotos, etc.). Ora, com os meios eletrônicos e digitais e a televisão, os fatos tendem a ser noticiados enquanto estão ocorrendo, de maneira que a função noticiosa do jornal é prejudicada, pois a notícia impressa é posterior à sua transmissão pelos meios eletrônicos e pela televisão. Ou na linguagem mais costumeira dos meios de comunicação: no mercado de notícias, o jornalismo impresso vem perdendo competitividade (alguns chamam a isso de progresso; outros, de racionalidade inexorável do mercado!).

O resultado dessa situação foi duplo: de um lado, a notícia é apresentada de forma mínima, rápida e, freqüentemente, inexata – o modelo conhecido como News Letter – e, de outro, deu-se a passagem gradual do jornal como órgão de notícias a órgão de opinião, ou seja, os jornalistas comentam e interpretam as notícias, opinando sobre elas. Gradualmente desaparece uma figura essencial do jornalismo: o jornalismo investigativo, que cede lugar ao jornalismo assertivo ou opinativo. Os jornalista passam, assim, o ocupar o lugar que, tradicionalmente, cabia a grupos e classes sociais e a partidos políticos e, além disso, sua opinião não fica restrita ao meio impresso, mas passa a servir como material para os noticiários de rádio e televisão, ou seja, nesses noticiários, a notícia é interpretada e avaliada graças à referência às colunas dos jornais.

Os deslocamentos mencionados e, particularmente, este último, têm conseqüências graves sob dois aspectos principais:

1) uma vez que o jornalista concentra poderes e forma a opinião pública, pode sentir-se tentado a ir além disso e criar a própria realidade, isto é, sua opinião passa a ter o valor de um fato e a ser tomada como um acontecimento real ;

2) os efeitos da concentração do poder econômico midiático. Os meios de comunicação tradicionais (jornal, rádio, cinema, televisão) sempre foram propriedade privada de indivíduos e grupos, não podendo deixar de exprimir seus interesses particulares ou privados, ainda que isso sempre tenha imposto problemas e limitações à liberdade de expressão, que fundamenta a idéia de opinião pública. Hoje, porém, os  conglomerados de alcance global controlam não só os meios tradicionais, mas também os novos meios eletrônicos e digitais, e avaliam em termos de custo-benefício as vantagens e desvantagens do jornalismo escrito ou da imprensa, podendo liquidá-la, se não acompanhar os ares do tempo.

Esses dois aspectos incidem diretamente sobre a transformação da verdade e da falsidade em questão de credibilidade e  plausibilidade.  Rápido, barato, inexato, partidarista, mescla de informações aleatoriamente obtidas e pouco confiáveis, não investigativo, opinativo ou assertivo, detentor da credibilidade e da plausibilidade, o jornalismo se tornou protagonista da destruição da opinião pública.

De fato, a desinformação é o principal resultado da maioria dos noticiários nos jornais, no rádio e na televisão, pois, de modo geral, as notícias são apresentadas de maneira a impedir que se possa localizá-la no espaço e no tempo.

Ausência de referência espacial ou atopia: as diferenças próprias do espaço percebido (perto, longe, alto, baixo, grande, pequeno) são apagadas; o aparelho de rádio e a tela da televisão tornam-se o único espaço real. As distâncias e proximidades, as diferenças geográficas e territoriais são ignoradas, de tal modo que algo acontecido na China, na Índia, nos Estados Unidos ou em Campina Grande apareça igualmente próximo e igualmente distante.

Ausência de referência temporal ou acronia: os acontecimentos são relatados como se não tivessem causas passadas nem efeitos futuros; surgem como pontos puramente atuais ou presentes, sem continuidade no tempo, sem origem e sem conseqüências; existem enquanto forem objetos de transmissão e deixam de existir se não forem transmitidos. Têm a existência de um espetáculo e só permanecem na consciência dos ouvintes e espectadores enquanto permanecer o espetáculo de sua transmissão.

Como operam efetivamente os noticiários?

Em primeiro lugar, estabelecem diferenças no conteúdo e na forma das notícias de acordo com o horário da transmissão e o público, rumando para o sensacionalismo e o popularesco nos noticiários diurnos e do início da noite e buscando sofisticação e aumento de fatos nos noticiários de fim de noite. Em segundo, por seleção das notícias, omitindo aquelas que possam desagradar o patrocinador ou os poderes estabelecidos. Em terceiro, pela construção deliberada e sistemática de uma ordem apaziguadora: em seqüência, apresentam, no início, notícias locais, com ênfase nas ocorrências policiais, sinalizando o sentimento de perigo; a seguir, entram as notícias regionais, com ênfase em crises e conflitos políticos e sociais, sinalizando novamente o perigo; passam às notícias internacionais, com ênfase em guerras e cataclismos (maremoto, terremoto, enchentes, furacões), ainda uma vez sinalizando perigo; mas concluem com as notícias nacionais, enfatizando as idéias de ordem e segurança, encarregadas de desfazer o medo produzido pelas demais notícias. E, nos finais de semana, terminam com notícias de eventos artísticos ou sobre animais (nascimento de um ursinho, fuga e retorno de um animal em cativeiro, proteção a espécies ameaçadas de extinção), de maneira a produzir o sentimento de bem-estar no espectador pacificado, sabedor de que, apesar dos pesares, o mundo vai bem, obrigado.

Paradoxalmente, rádio e televisão podem oferecer-nos o mundo inteiro num instante, mas o fazem de tal maneira que o mundo real desaparece, restando apenas retalhos fragmentados de uma realidade desprovida de raiz no espaço e no  tempo. Como desconhecemos as determinações econômico-territoriais (geográficas, geopolíticas, etc.) e como ignoramos os antecedentes temporais e as conseqüências dos fatos noticiados,  não podemos compreender seu verdadeiro significado. Essa situação se agrava com a TV a cabo, com emissoras dedicadas exclusivamente a notícias, durante 24 horas, colocando num mesmo espaço e num mesmo tempo  (ou seja, na tela) informações de procedência, conteúdo e significado completamente diferentes, mas que se tornam homogêneas pelo modo de sua transmissão. O paradoxo está em que há uma verdadeira saturação de informação, mas, ao fim, nada sabemos, depois de termos tido a ilusão de que fomos informados sobre tudo.

Se não dispomos de recursos que nos permitam avaliar a realidade e a veracidade das imagens transmitidas, somos persuadidos de que efetivamente vemos o mundo quando vemos a TV ou quando navegamos pela internet. Entretanto, como o que vemos são as imagens escolhidas, selecionadas, editadas, comentadas e interpretadas pelo transmissor das notícias, então é preciso reconhecer que a TV é o mundo ou que a internet é o mundo.

A multimídia potencializa o fenômeno da indistinção entre as mensagens e  entre os conteúdos. Como todas as mensagens estão integradas num mesmo padrão cognitivo e sensorial, uma vez que educação, notícias e espetáculos são fornecidos pelo mesmo meio, os conteúdos se misturam e se tornam indiscerníveis. No sistema de comunicação multimídia  a própria realidade fica totalmente imersa em uma composição de imagens virtuais num mundo irreal, no qual as aparências não apenas se encontram na tela comunicadora da experiência, mas se transformam em experiência. Todas as mensagens de todos os tipos são incluídas no meio por que fica tão abrangente, tão diversificado, tão maleável, que absorve no mesmo texto ou no mesmo espaço/tempo toda a experiência humana, passada, presente e futura, como num ponto único do universo.

Se, portanto, levarmos em consideração o monopólio da informação pelas empresas de comunicação de massa, podemos considerar, do ponto de vista da ação política, as redes sociais como ação democratizadora tanto por quebrar esse monopólio, assegurando a produção e a circulação livres da informação, como também por promover acontecimentos políticos de afirmação do direito democrático à participação. No entanto, os usuários das redes sociais não possuem autonomia em sua ação e isto sob dois aspectos: em primeiro lugar, não possuem o domínio tecnológico da ferramenta que empregam e, em segundo, não detêm qualquer poder sobre a ferramenta empregada, pois este poder é uma estrutura altamente concentrada, a Internet Protocol, com dez servidores nos Estados Unidos e dois no Japão, nos quais estão alojados todos os endereços eletrônicos mundiais, de maneira que, se tais servidores decidirem se desligar, desaparece toda a internet; além disso, a gerência da internet é feita por uma empresa norte-americana em articulação com o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, isto é, gere o cadastro da internet mundial. Assim, sob o aspecto maravilhosamente criativo e anárquico das redes sociais em ação política ocultam-se o controle e a vigilância sobre seus usuários em escala planetária, isto é, sobre toda a massa de informação do planeta.

Na perspectiva da democracia, a questão que se coloca, portanto, é saber quem detêm o controle dessa massa cósmica de informações.  Ou seja, o problema é saber quem tem a gestão de toda a massa de informações que controla a sociedade, quem utiliza essas informações, como e para que as utiliza, sobretudo quando se leva em consideração um fato técnico, que define a operação da informática, qual seja, a concentração e centralização da informação, pois  tecnicamente, os sistemas informáticos operam em rede, isto é, com a centralização dos dados e a produção de novos dados pela combinação dos já coletados.


(*) Em nenhuma democracia séria do mundo, jornais conservadores, de baixa qualidade técnica e até sensacionalistas, e uma única rede de televisão têm a importância que têm no Brasil. Eles se transformaram num partido político – o PiG, Partido da Imprensa Golpista.


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Extraído de Paulo Henrique Amorim - Conversa Afiada

segunda-feira, 19 de março de 2012

Os robôs vão substituir os jornalistas?


Os robôs vão substituir os jornalistas?

19/03/2012 - 07h00
por Evgeny Morozov*

Será que a tecnologia pode ser autônoma? Será que pode ter vida própria e operar independentemente da orientação humana? Do teólogo francês Jacques Ellul ao Unabomber, essa era uma visão amplamente aceita. Mas hoje a maioria dos historiadores e sociólogos da tecnologia descarta a ideia, classificando-a como ingênua e imprecisa.

Mas considere por um momento o mundo das finanças modernas, cada vez mais dependente de operações automatizadas, com sofisticados algoritmos que encontram e exploram irregularidades nos preços invisíveis para os operadores comuns.

A revista "Forbes", uma das mais veneráveis instituições do jornalismo financeiro, agora utiliza os serviços de uma companhia chamada Narrative Science para gerar artigos on-line automaticamente sobre o que esperar dos anúncios trimestrais de resultados de empresas. Basta inserir algumas estatísticas, e o software inteligente produz artigos altamente legíveis em questão de segundos. Ou, como define a "Forbes", "a Narrative Science, por meio de sua plataforma exclusiva de inteligência artificial, transforma dados em histórias e percepções".

Fonte da imagem: link na foto
Não deixe a ironia passar despercebida: plataformas automatizadas agora "escrevem" reportagens sobre empresas que ganham dinheiro com transações automatizadas. Essas reportagens terminam influenciando o sistema financeiro e ajudam os algoritmos a identificar transações ainda mais lucrativas. Em termos práticos, o que temos é jornalismo produzido por robôs e para robôs. O único lado positivo da história é que o dinheiro todo fica para os seres humanos.

A Narrative Science é uma das diversas companhias que estão desenvolvendo software automatizado para jornalismo. Essas empresas iniciantes trabalham primordialmente em nichos de mercado --esportes, finanças, imóveis-- nos quais as reportagens tendem a seguir padrões parecidos e giram em torno de estatísticas. Agora, começam a operar também no segmento de jornalismo político. A Narrative Service passou a oferecer artigos sobre como a campanha eleitoral norte-americana aparece nas mídias sociais e que questões e candidatos são mais e menos discutidos em um determinado Estado ou região. O sistema pode até incorporar ao artigo final citações dos tuítes mais populares e mais interessantes. Nada melhor que robôs para cobrir o Twitter.

É fácil perceber por que os clientes da Narrative Science --a companhia diz contar com 30 deles-- consideram seus serviços úteis. Primeiro, ela é muito mais barata do que pagar jornalistas humanos, que de vez em quando adoecem e sempre exigem respeito. Como o "New York Times" reportou em setembro passado, um dos parceiros da Narrative Science no setor de construção paga menos de US$ 10 por um artigo de 500 palavras, e não há funcionários para reclamar de péssimas condições de trabalho. Além disso, o artigo é "redigido" em apenas um segundo. Nem mesmo ChristoperHitchens conseguiria fechar nesse prazo.

Segundo, a Narrative Science promete ser mais abrangente --e objetiva-- que qualquer repórter humano. Poucos jornalistas têm tempo para encontrar, processar e analisar milhões de tuítes, mas a Narrative Science é capaz de fazê-lo com facilidade e, o mais importante, de forma instantânea. O objetivo não é apenas reportar estatísticas sofisticadas mas também compreender o que esses números significam e informar sua importância ao leitor. A Narrative Science teria sido capaz de desvendar o caso Watergate? Provavelmente não. Mas a maioria das reportagens tem tramas bem menos complexas a desenvolver.

Os fundadores da Narrative Science afirmam que desejam simplesmente ajudar --e não exterminar-- o jornalismo. Pode bem ser que sejam sinceros. Os repórteres provavelmente odiarão a companhia, mas algumas editoras sempre preocupadas com custos certamente aceitarão sua colaboração de braços abertos. Em longo prazo, porém, o impacto cívico dessas tecnologias --que estão apenas em sua infância-- pode se provar mais problemático.

Acima de tudo, existe uma tendência clara na forma de desenvolvimento que a internet vem seguindo hoje --o esforço por personalizar as experiências on-line dos usuários. Tudo que clicamos, lemos, buscamos e assistimos on-line resulta, cada vez mais, de um esforço delicado de otimização, pelo qual nossos cliques, buscas, indicações, compras e interações anteriores determinam aquilo que surge nas telas de nossos navegadores e apps.

Até recentemente, muitos críticos da internet temiam que essa personalização da rede gerasse um mundo no qual leríamos apenas artigos que refletem nosso interesses existentes, sem que jamais tivéssemos de abandonar aquilo com que nos sentimos confortáveis. A mídia social, com sua sequência ininterrupta de links e minidebates, tornou obsoletas algumas dessaspreocupações. Mas a ascensão do "jornalismo automatizado" pode um dia apresentar um desafio novo e diferente, que os excelentes mecanismos de descoberta da mídia social ainda não são capazes de resolver: e se clicarmos no mesmo link, que em teoria conduz ao mesmo artigo, mas terminarmos lendo textos muito diferentes?

Como isso funcionaria? Imagine que meu histórico on-line sugira que eu tenho um diploma avançado e que passo muito tempo nos sites da "Economist" ou da "New York Review of Books"; como resultado, verei uma versão mais sofisticada, desafiadora e informativa da história, enquanto meu vizinho, leitor do "USA Today", recebe uma versão simplificada. Se for possível inferir que também estou interessado em notícias internacionais e em Justiça mundial, um artigo computadorizado sobre Angelina Jolie pode terminar mencionando seu novo filme sobre a guerra na Bósnia. Já o meu vizinho, obcecado por celebridades, poderia ler a mesma reportagem, mas acrescida de uma fofoca suculenta sobre Brad Pitt.

Produzir e alterar histórias instantaneamente, personalizadas de maneira a se enquadrar aos interesses e hábitos intelectuais de um dado leitor, é exatamente o que o jornalismo automatizado permite. E esse é o motivo para que nos preocupemos com a questão. Os anunciantes e as editoras adoram essa personalização, que pode convencer os usuários a passar mais tempo em seus sites. Mas as implicações sociais são bastante dúbias. No mínimo, existe o perigo de que algumas pessoas fiquem aprisionadas em um círculo vicioso de notícias, consumindo apenas junk food informativa e tendo pouca indicação de que existe um mundo diferente, e mais inteligente, ao seu alcance. E a natureza comunal da mídia social confirmaria a essas pessoas que na verdade não estão perdendo coisa alguma de importante. Naturalmente, isso também poderia ser o próximo passo na evolução das muito odiadas "fazendas deconteúdo", exemplificadas pela Demand Media.

Considerem o que pode acontecer se, como parece provável, grandes empresas de tecnologia ingressarem nesse segmento e começarem a ocupar o espaço aberto por pequenas empresas como a Narrative Science. A Amazon serve de exemplo. Seu leitor eletrônico Kindle permite que usuários procurem palavras desconhecidas em um dicionário eletrônico e que marquem suas frases favoritas em um texto. Isso poderia ser útil quando a Amazon decidir criar um serviço de notícias personalizadas completamente automático. Afinal, a Amazon já sabe que jornais leio, de que tipo de frase gosto, que palavras eu considero difíceis. E eu já tenho o aparelho deles, no qual poderia ler essas notícias --de graça!

Ou pense no Google. Não só a companhia conhece meus hábitos de consumo de informação melhor que ninguém --ainda mais depois da unificação de suas normas de privacidade--, como opera o Google News, um serviço sofisticado para agregar notícias, o que permite que a empresa acumule um conhecimento amplo sobre os assuntos correntes. E graças ao altamente popular serviço Google Translate, ela também sabe como montar sentenças legíveis.

Considerando tudo isso, a ideia de que uma maior automação poderia salvar o jornalismo parece míope. No entanto, inovadores como a Narrative Science não são culpados; se usadas de maneira estreita, suas tecnologias podem economizar custos e talvez permitir que alguns jornalistas --desde que mantenham seus empregos!-- desenvolvam projetos analíticos mais interessantes, em lugar de reescreverem a mesma matéria a cada semana.

A verdadeira ameaça vem de nossa recusa em investigar as consequências sociais e políticas de viver em um mundo no qual ler anonimamente se torna quase impossível. É um mundo que os anunciantes --e empresas como Google, Amazon e Facebook-- mal podem esperar que surja, mas também um mundo no qual o pensamento crítico, erudito e heterodoxo pode se tornar mais difícil de promover e preservar.


* Evgeny Morozov é pesquisador-visitante da Universidade Stanford e analista da New America Foundation. É autor de "The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom" (a ilusão da rede: o lado sombrio da liberdade na internet). Tem artigos publicados em jornais e revistas como "The New York Times", "The Wall Street Journal", " Financial Times" e "The Economist". Lançará em 2012 o livro "Silicon Democracy" (a democracia do silício). Escreve [na FSP] às segundas-feiras, a cada quatro semanas.

Tradução de Paulo Migliacci

Extraído de FSP

sábado, 12 de novembro de 2011

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Em busca de uma lógica Kadhafiana


Em busca de uma lógica Kadhafiana

por Silvia Ferabolli
*
04/11/2011

Considera-se um “sofisma” o emprego de argumentos falsos com aparência de verdadeiros. Um erro de pensamento, já que chega-se a uma conclusão válida baseada em premissas falsas. Entre os complexos mecanismos de construção de um sofisma pode-se destacar o “sofisma de implicação”, segundo o qual a autoridade de determinada fonte implica na veracidade de um enunciado. Também conhecido como “transferência de credibilidade”, tais sofismas são amplamente utilizados por veículos consagrados da mídia, especialistas e políticos que, a despeito de sua real credibilidade e competência, quase sempre enveredam pelo caminho da argumentação falaciosa – produzindo aquilo que Noam Chomsky iria chamar de manufacture of consent. Desde o início da “guerra ao terror”, tornou-se um habito trabalhar com conjuntos de sofismas que visam legitimar ações cada vez menos justificáveis em termos éticos e políticos. O problema das “armas de destruição em massa” nas mãos de um “tirano sanguinário” que representava uma “ameaça a paz mundial” foi a justificativa usada pelos norte-americanos para invadirem o Iraque e abortar o projeto em curso da construção do Estado-nação iraquiano. A remoção de Mouammar Kadhafi do poder na Libia, por outro lado, sustentou-se na justificativa de que essa era mais uma das conquistas da primavera árabe.

Contudo, o processo de derrubada do regime de Kadhafi custou a morte de centenas de pessoas, pois os tímidos levantes iniciais vistos por todo o país foram se radicalizando na medida em que eram influenciados pelo apoio da OTAN. O assassinato brutal de Kadhafi pelo Conselho Nacional de Transição (CNT) – devidamente apoiado pela OTAN – faz pensar que a inocência original de uma primavera libertária, criativa e laica, tenha encontrado o seu fim na Libia. A morte de Mohamed Bouazizi desencadeou um ciclo revolucionário que, pensava-se, colocaria um fim tanto nos regimes decrépitos da região quanto nas diversas formas de ingerência externa que o mundo árabe enfrenta desde o século XIX. A morte de Kadhafi parece ter posto um fim em tais utopias necessárias, inaugurando um novo capítulo de incertezas em relação à estabilidade política da região. O ódio a Kadhafi era uma das poucas coisas em comum que unia grupos rebeldes instalados sob o guarda-chuva do CNT e poucas ilusões existem de que haverá uma legitimação democrática dos nomes que no momento representam o poder no país. Tal poder busca, com a leniência internacional, descartar a história do homem cuja trajetória política se confunde com a do país que governou por mais de quarenta anos.

Kadhafi ascendeu ao poder na Libia com o golpe militar que depôs o rei Idris, em 1969. Nascido em uma tenda beduína, membro do clã semi-nômade al-Gadafa da costa central da Libia, Kadhafi tinha 14 anos quando Nasser nacionalizou o canal de Suez e, desde então, o pan-arabismo nasserista o acompanhou por muito tempo, fazendo-o acreditar nos ideais da nahda (renascimento) e da wahda (unidade) árabes. Nasser, enquanto um ídolo trágico, condenaria o jovem coronel a permanecer em sua sombra. Após a morte do presidente egípcio, em 1970, Kadhafi tentou se autoproclamar o novo líder pan-Árabe. Contudo, nem a Libia tinha os recursos de poder bruto de que dispunha o Egito na época e muito menos era Kadhafi um líder carismático do porte de Gamal Abdel Al-Nasser. Tendo suas ambições pan-árabes frustradas, Kadhafi focou suas energias em assuntos domésticos. Ainda nos anos 1970, assumiu o controle sobre a indústria petrolífera do país e passou a empregar parte significativa da renda do petróleo na melhoria do padrão da vida do povo líbio, um dos mais pobres do mundo na época.

De posse de seu “livro verde”, uma confusa compilação de seus pensamentos, mesclados com um socialismo utópico, Kadhafi fez da Líbia o laboratório ideal de suas reflexões político-existenciais. Desacreditando em partidos políticos, ele impôs, a partir de 1977, a ideia de um governo sem governo, comandado por um congresso geral composto por centenas de congressos locais: uma forma de governo baseada na democracia direta, com base em conselhos locais e comunas, também chamadas de Congressos Populares de Base. Tais instâncias dispensariam os intermediários na relação entre o povo e o Estado, oferecendo uma alternativa aos sistemas comunista e capitalista da época. De fato, o libyan way não passava de uma forma elegante de impor uma ditadura capitaneada por Kadhafi e um círculo restrito de homens de confiança em torno do líder.

Mantendo-se alinhado à filosofia que guiava suas ações em termos de política externa – uma mistura de pan-arabismo, anti-imperialismo e radicalismo islâmico – Kadhafi passou a alardear sua intenção de armar e treinar revolucionários para derrubar os governos da Tunísia, Egito e Argélia – se a unidade árabe não pudesse ser conseguida por meios pacíficos, então a utopia seria realizada pela força. O Egito, governado pelo moderado Anwar Sadat, foi aos poucos se tornando inimigo mortal da Líbia, culminando em uma curta guerra de dois meses entre os dois países e cuja intervenção de Yasser Arafat foi decisiva para o fim das hostilidades entre os irmãos árabes. Nessa época, o sangue de Kadhafi fervia pela revolução e ele se tornou um grande patrocinador de grupos políticos, com a recém-criada OLP, e também se utilizava dos serviços de terroristas famosos da época tal como Carlos o Chacal e Abu Nidal – esse último, membro de uma facção radical palestina, iria em 27 de dezembro de 1985 metralhar centenas de passageiros nos aeroportos de Roma e Viena. Dezenove pessoas foram mortas, cinco delas norte-americanas.

Logicamente, o comportamento político de Kadhafi fez dele um inimigo natural dos Estados Unidos. Em 1981, a Sexta Frota americana abateu dois caças líbios sobre o Golfo de Sirte, o primeiro de uma série de confrontos entre os Estados Unidos e os Estados árabes (desunidos) e que culminaria com a ocupação propriamente dita do Iraque em 2003. Em 1986, o presidente Ronald Reagan mandou bombardear alvos em Trípoli e Benghazi, objetivando claramente o assassinato daquele a quem batizou de “o cachorro louco do Oriente Médio”. Em 1988, entretanto, Kadhafi decidiu emular o presidente soviético Mikail Gorbachev iniciando um perestroika pessoal que o conduziria ao terceiro e último momento de sua trajetória. Kadhafi se deu conta de que os anos em que havia confrontado diretamente os Estados Unidos estavam cobrando um preço bastante elevado. Igualmente, o socialismo pueril que havia tentado implementar, baseado em seu “livro verde” levou a Líbia a tamanha escassez de produtos básicos que até sabonetes e pilhas tinham que ser obtidos no mercado negro. Entretanto, nesse mesmo ano Kadhafi foi acusado de ordenar o atentado contra um jumbo da PanAm que explodiu sobre a localidade escocesa de Lockerbie, matando mais de duas centenas de passageiros, a maioria norte-americanos. Tal evento colocou em xeque a nova estratégia do coronel cuja imagem de patrocinador do terrorismo internacional se fortaleceu com tal episódio. Pressionado pela Grã-Bretanha e pelos Estados Unidos, os quais exigiam que Kadhafi entregasse para julgamento os dois principais suspeitos pelo atentado contra a PanAm, Abdelbaset al-Megrahi e Al-Amin Khalifa Fahima, membros do serviço de inteligência líbio, Kadafi se viu emparedado politicamente, já que entregar os suspeitos seria uma traição à Líbia e àqueles que os tinham como heróis nacionais. Por outro lado, o não cumprimento dessas exigências aumentaria o embargo imposto pela ONU, prejudicando os seus esforços para levantar a economia Líbia que estava em uma difícil situação. Além disso, havia uma grande insatisfação popular que motivou uma série de rebeliões pelo país, bem como uma tentativa de assassinato, em 1993, da qual Kadhafi escapou por muito pouco. Seria somente em 1999, após longas discussões sobre termos e condições, que Kadhafi entregaria os dois suspeitos para serem julgados na Holanda e, posteriormente, indenizaria as famílias das vitimas. O cumprimento de tais demandas (entrega dos suspeitos para julgamento internacional e pagamento de bilhões de dólares em indenizações) garantiu o levantamento de praticamente todas as sanções econômicas que a Libia enfrentava. Firme em sua marcha em direção ao estabelecimento e solidificação de boas relações com o ocidente, Kadhafi abriu seus poços de petróleo para a exploração de empresas ocidentais em 2006. Comenta-se que, no ano seguinte, Kadhafi financiaria em grande parte a campanha de Nicolas Sarkozy para presidente, fato negado veementemente pelo atual presidente francês.

Na verdade, na primeira década do terceiro milênio, principalmente após o surgimento de novos e assustadores vilões tais como Osama Bin Laden, Kadhafi parecia um velho bicho papão que já não assustava mais ninguém. Ao contrário, suas roupas de um colorido berrante o faziam cada vez mais uma figura folclórica como aquele parente excêntrico que rouba a atenção nos eventos de família, mas que todos julgam inofensivo e até simpático. Durante esse período, ele desfrutou de uma inédita aceitação entre os principais líderes mundiais, tais como Barack Obama, Sarkozy e Berlusconi. Em um de seus últimos e grandiosos momentos, em 2009, Kadhafi visitou Roma e em seguida o premiê italiano Silvio Berlusconi também foi a Trípoli, em visita oficial. O governo líbio, que já era acionista da montadora italiana Fiat e do banco Unicredit, assinou uma série de acordos comerciais com a Itália. Os dois líderes também declararam o fim das mágoas relativas à ocupação colonial da Itália na Líbia (1911-1943).

Entretanto, a posição de Kadhafi nunca esteve tão tranquila quanto o aperto de mãos e os sorrisos franceses, americanos e italianos poderia lhe fazer supor. Os bons ventos duraram até o início da primavera árabe quando as revoltas que varreram parte do mundo árabe também chegaram á Libia. Os tímidos protestos iniciais que pareciam a Kadhafi fácil de conter, logo viraram uma guerra civil, especialmente após aviões franceses começarem a bombardear o território líbio. Imediatamente, os mesmos líderes que há pouco apertavam a mão de Kadhafi, começaram a apoiar os rebeldes contra o regime “desumano e sanguinário” do “ditador”. Não demorou muito para que a OTAN entrasse no jogo e o resultado final todos sabem qual foi: mais um governante árabe exposto ao ridículo e ao escárnio em capas de jornais, revistas e imagens televisivas repetidas ad nauseam e que nada mais fazem do que aumentar a sensação de vulnerabilidade dos povos da região. Infelizmente, a autonomia na região irá depender da manipulação de agentes externos que continuarão a fabricar bandidos e mocinhos de acordo com as suas conveniências. É justo lembrar que na Arábia Saudita também eclodiram revoltas, contudo, tais eventos misteriosamente sumiram dos noticiários internacionais e apenas um bom entendimento do conceito de poder associado à ideologia hegemônica de Gramsci pode explicar o porquê da lógica de apoiar revoltas populares em um país e não no outro – de derrubar alguns ditadores e manter outros de pé.

Na verdade, Kadhafi é hoje retratado no discurso de líderes políticos ocidentais e na imprensa mundial como um ditador sanguinário que durante as décadas de seu governo nada mais fez do que imaginar maldades e atrocidades contra seu povo. Fazendo uso da proposta de Jutta Weldes de buscar relações entre a cultura popular, a ficção científica e a politica mundial, pode-se lembrar outro personagem político que recebeu a mesma alcunha alguns séculos atrás: Vlad III, Príncipe da Valáquia (1431-1476) ou, simplesmente, Drácula. O catálogo de horrores atribuídos a Drácula, e que inspiraram o clássico de Bram Stoker, não fez dele um político muito pior do que os de seu tempo, pois a priori ele estava governando de acordo com os padrões de sua época, a Renascença, sempre marcada por extraordinária desumanidade. Como bem lembram McNally & Florescu em In Search of Dracula: The History of Dracula and Vampires (1995): “A era de Drácula foi a do rei aranha Luís XI; Ludovico Sforza o Mouro; o papa Bórgia, Alexandre VI; seu filho César; e Sigismundo Malatesta”. Todos governantes brutais que nada deixavam a desejar no quesito crueldade. A era de Kadhafi foi a de George W. Bush, Pol Pot e Slobodan Milosevic. Uma era de extremos marcada por genocídios, violações de direitos humanos, ocupação e destruição de países. Por fim, é preciso ressaltar que no folclore romeno, Drácula não é definido como um governante louco e tirano. Na verdade, os camponeses tinham orgulho dos feitos militares de seu líder e muitos, ainda hoje, estufam o peito ao dizerem-se descendentes de soldados que lutaram no exército de Drácula. Sabe-se que, na Libia de hoje, muitos ainda choram a morte de Kadhafi e temem pelo futuro que os espera sem a outrora onipresente figura do seu “líder da revolução”.

O Coronel Kadhafi foi, sem dúvida, um ator político controverso, amado e odiado por muitos. Sua morte se constituiu em uma traição do ocidente àquele que mais se empenhou em agradá-lo nos últimos anos, mostrando que as motivações internacionais são sempre obscuras e muito mais complexas do que o discurso oficial deixa transparecer. Existem interesses políticos e econômicos na Líbia que justificaram esse imenso esforço de guerra. Resta saber como será a relação entre o CNT e o povo líbio daqui por diante. Contudo, um governo que inicia com um parricídio festejado e legitimado pelas instâncias que o deveriam condenar, pouca coisa pode oferecer de bom. Espero, sinceramente, estar enganada.

* Sílvia Ferabolli
é Doutoranda em Política Internacional pela Universidade de Londres, Reino Unido (silviaferabolli@terra.com.br).

Recebido de Mundorama



segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Propaganda também discrimina os homens


Bündchen também discrimina os homens

por Fausto Rodrigues de Lima (Folha)
05 de Outubro de 2011 14:56


(Folha de S.Paulo) Fausto Rodrigues de Lima, promotor de Justiça do Distrito Federal e coautor do livro "Violência Doméstica - A Intervenção Criminal e Multidisciplinar", escreve sobre a polêmica campanha publicitária "Hope ensina". No artigo, o promotor destaca o aspecto discriminatório aos homens presente na campanha. Leia trechos selecionados:

"Para gastar todo o dinheiro do marido e conseguir sua compreensão, a mulher brasileira precisa lhe conceder sexo. O ensinamento de uma campanha da lingerie Hope, protagonizada por Gisele Bündchen, causou justa indignação a ponto de a Secretaria de Políticas para as Mulheres pedir sua suspensão."

"Essa e outras manifestações sexistas escamoteiam faceta pouca explorada: o homem também é discriminado. Ora, para a campanha referida, o marido ideal precisa ser o provedor; caso contrário, não pode ter uma mulher linda e disponível para o sexo. Como um cão no cio, necessita de sexo a todo momento e a todo custo. Não deve se importar com a satisfação da parceira; basta que ela finja prazer."

"Nós, homens do século 21, somos seres pensantes. Não queremos prover ninguém, almejamos unir esforços. Se por acaso nossa renda for insuficiente ou nula, que nos respeitem. Gostamos, sim, de sexo, mas não pensamos nisso 24 horas por dia. Nos interessa o futebol mas também o balé, a música, a arte, a poesia. E choramos, sim."

"Por isso, pedimos ao Conar que suspenda a propaganda da Hope e outras ridículas, não só por ofenderem nossas mães, filhas e esposas, mas por nos agredirem profundamente enquanto homens."

Leia na íntegra: Bündchen também discrimina os homens, por Fausto Rodrigues deLima (Folha de S.Paulo - 05/10/2011)