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sábado, 17 de maio de 2014

Gilda de Mello e Souza - Pioneira - Livro resgata entrevistas, cartas e ensaios


Livro resgata entrevistas, cartas e ensaios de Gilda de Mello e Souza
- Por José Tadeu Arantes


Organizado por Walnice Nogueira Galvão, que pesquisou os escritos deixados pela amiga, A palavra afiada recupera textos dispersos e até desconhecidos da grande estudiosa da estética e ensaísta. Correspondência mantida com Mário de Andrade na juventude é destaque na obra
Agência FAPESP – Precioso! Difícil não usar o ponto de exclamação quando se tem à frente A palavra afiada, livro que reúne entrevistas, depoimentos, artigos variados e cartas de Gilda de Mello e Souza (1919-2005), ensaísta, crítica de arte e fundadora da cadeira de Estética no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP).

Fruto de anos de dedicação e trabalho criterioso de Walnice Nogueira Galvão, professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o livro, agora publicado, reúne textos que estavam dispersos e até mesmo ignorados.

“Em 2006, uma das três filhas de Gilda e Antonio Candido de Mello e Souza, a Ana Luisa Escorel, dona da editora Ouro sobre Azul, no Rio de Janeiro, me procurou. Ela vem reeditando, ao longo dos anos, toda a obra do pai e da mãe, além de outras coisas. Como eu havia sido muito amiga de Gilda e feito uma longa entrevista com ela para uma revista da faculdade – entrevista que a própria Gilda considerava a melhor que havia dado na vida –, a Ana Luisa me perguntou se eu não gostaria de reunir e editar as várias entrevistas concedidas pela mãe. Eu, que era muito fã dessas entrevistas, disse imediatamente que sim”, relatou Galvão à Agência FAPESP.

“Aos poucos, procurando aqui e ali, fui juntando várias entrevistas. Como eu digo na introdução, a Gilda não guardava as coisas direito, não era narcisista ao ponto de organizar arquivos sobre tudo o que fazia. Ao contrário, assim que acabava de fazer algo, ela perdia o interesse, e já se voltava para o próximo projeto. Assim, algumas dessas entrevistas foram encontradas em lugares absolutamente inesperados. À medida que trabalhava, fui achando muitas outras coisas também: uma série de pequenos artigos e alguns grandes, que ninguém sabia que existiam; e dez cartas dela ao Mário de Andrade, que são um verdadeiro tesouro. Então, eu procurei a Ana Luisa e o Antonio Candido, relatando tudo o que estava conseguindo e pedindo a aprovação deles para fazer um livro em três partes: as entrevistas; os textos esparsos; e as cartas a Mário de Andrade. Eles concordaram, e isso foi ótimo, porque o livro ficou muito mais rico do que havíamos imaginado inicialmente”, prosseguiu Galvão.

Com lançamento agendado para 23 de abril, no Centro Universitário Maria Antonia, em São Paulo, A palavra afiada vem acrescentar-se a outras obras publicadas de Gilda, como A moda no século XIX (1952), O tupi e o alaúde (1979), Exercícios de leitura (1980), O espírito das roupas (1987) e A ideia e o figurado (2005).

Uma trajetória pioneira

Nascida em São Paulo, em 24 de março de 1919, no seio de uma família tradicional, mas criada no interior do estado, em uma fazenda em Araraquara, Gilda de Mello e Souza, cujo sobrenome de solteira era Moraes Rocha, foi uma pioneira em vários sentidos. Uma das primeiras mulheres a estudar na USP, foi aluna de alguns dos famosos professores da chamada “Missão Francesa” – Roger Bastide, Claude Lévi-Strauss e Jean Maugüé –, bacharelando-se em Filosofia em 1940.

Uma das primeiras a conciliar os compromissos familiares com a carreira intelectual, iniciou-se no magistério como assistente de Bastide, na cadeira de Sociologia I, em 1942. Convidada por João Cruz Costa (1904-1978) a transferir-se para o Departamento de Filosofia em 1954, fundou a cadeira de Estética, na qual ensinou até se aposentar, em 1973.

Sua tese de doutorado, orientada por Bastide e apresentada em 1950, foi recebida com estranhamento e velado desdém no meio acadêmico, pois tratava de um tema – a moda – considerado fútil nos marcos estreitos do pensamento dominante na época. Somente um quarto de século mais tarde o assunto receberia o devido reconhecimento intelectual, quando Roland Barthes publicou Système de la mode (Sistema da Moda), em 1976.

“Na tese, a autora procede a uma exegese das roupas femininas, em contraste com a vestimenta masculina, lendo-as como organizações de signos com base em funções sociais e psicológicas. E, sobretudo, como mostra, servindo a dois propósitos: enfatizar a oposição entre os sexos e simbolizar as barreiras de classe”, escreveu Galvão no prefácio de A palavra afiada.

Entre 1969 e 1972, em um dos períodos mais sombrios da história política brasileira, Gilda, movida por um sentimento de dever, assumiu a chefia do Departamento de Filosofia da USP, duramente atingido pela perseguição ditatorial após o golpe militar de 1964, e, mais ainda, depois da promulgação do Ato Institucional número 5, em dezembro de 1968. “Ante um departamento acéfalo e repentinamente desorganizado pelas cassações que o mutilaram, Gilda, mesmo que a contragosto, acabaria por se encarregar da chefia, de 1969 a 1972. Em sua gestão, enfrentou e venceu não poucas nem pequenas batalhas”, afirmou Galvão no prefácio.

A onipresença de Mário de Andrade

Em seu período de estudos na então chamada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, Gilda participou de um pequeno círculo de jovens brilhantes, que viria a fundar a revista Clima em 1941 e exerceria mais tarde enorme influência na vida intelectual do país. Eram seus companheiros de grupo e amigos inseparáveis Antonio Candido de Mello e Souza, Decio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes, Ruy Coelho e Lourival Gomes Machado, entre outros. As características sociais, psicológicas e culturais desse grupo são saborosamente descritas por Gilda na entrevista que concedeu a Walnice, sem dúvida um dos pontos mais altos de A palavra afiada.

Com Antonio Candido, ela se casou em 1943. Desse casamento, que perdurou por mais de seis décadas, até a morte de Gilda, em 25 de dezembro de 2005, nasceram suas três filhas: Ana Luisa Escorel, designer e editora de livros, Laura de Mello e Souza e Marina de Mello e Souza, ambas historiadoras e professoras do Departamento de História da USP.

Mas a grande presença – praticamente a onipresença – de A palavra afiada é a de Mário de Andrade. O autor de Pauliceia Desvairada (1922), Amar, Verbo Intransitivo (1927), Macunaíma (1928), e tantas obras definidoras ou redefinidoras da cultura brasileira, era primo do pai de Gilda. Ele frequentava pontualmente a fazenda de Araraquara em suas férias. E, quando ela veio estudar em São Paulo, hospedou-se na casa dele, que morava com a mãe, tia-avó e madrinha de Gilda, e com outros parentes.

Esse homem, muitos anos mais velho, e que, na época, já era uma celebridade nacional, tornou-se uma espécie de mentor intelectual da jovenzinha. Mas a relação que ela estabeleceu com ele, da qual as dez cartas publicadas em A palavra afiada dão testemunho exemplar, não foi a da discípula deslumbrada e intimidada pelo mestre incontestável. Ao contrário. Foi uma relação cheia de claros e escuros, de nuanças, de meios-tons. A maneira como ela, ainda tão nova, escreve a ele é algo de notável, tanto pela cumplicidade e pela aguda auto-observação, quanto, principalmente, pelo estilo.
Também notável, porém pelo valor testemunhal e pelo humor, é o texto “Mário de Andrade em família”, incluído no livro e resultante de uma palestra proferida por ela no Centro Cultural São Paulo em 1992, por ocasião do 70º aniversário da Semana de Arte Moderna, de 1922.

“A presença do Mário de Andrade no livro é realmente impressionante. Mais impressionante do que eu própria me dava conta”, comentou Galvão. “As cartas cobrem apenas um pequeno período, de 1938 a 1942. Mas foi um período decisivo, quando ela estava escolhendo o que ia estudar, se ia ter ou não uma carreira, o que ia fazer da vida. E o Mário de Andrade teve uma influência incalculável nessa etapa. De certa maneira, ele forneceu as balizas que a guiaram pelo resto da existência – pelo menos do ponto de vista intelectual. E o fez dando-lhe a maior liberdade de escolha. Ele tinha uma frase, que o Marcos Moraes, especialista na correspondência dele, até colocou como título de um livro: ‘orgulho de jamais aconselhar’. Era um mestre no sentido de amparar, com mãos muito cuidadosas, o talento do discípulo, mas para que o discípulo pudesse voar com suas próprias asas.”

Erudição, sutileza e elegância

As qualidades que mais impressionam em A palavra afiada são a erudição de Gilda, a sutileza de suas análises e a elegância de sua expressão. Esses atributos são especialmente relevantes quando se considera que muitos desses textos eram cartas, portanto não destinados à publicação, ou entrevistas, gênero no qual o improviso e as indecisões da expressão oral deixam marcas praticamente inevitáveis. Mas, como enfatizou Galvão, Gilda era uma artista da palavra, tanto escrita quanto falada.

“Ela era extremamente erudita, tanto pela abrangência quanto pela profundidade de suas leituras. Destacava-se também pela sensibilidade e agudeza no estudo das obras de arte. A experiência proporcionada pelo contato direto com a obra de arte era uma das coisas que mais valorizava”, lembrou Galvão. “Houve até um episódio famoso, quando ela foi a Sansepolcro, uma cidadezinha da Toscana, para ver o único quadro de Piero della Francesca (pintor do século XV) que ainda não conhecia, já que havia visto todos os outros. Ela foi de trem a esse vilarejo perdido no norte da Itália e, depois, deu um curso magistral na faculdade sobre a descoberta do espaço no Renascimento.”

Outra entrevista publicada no livro, esta concedida a Carlos Augusto Calil em 1992, sobre o filme Violência e Paixão, de Luchino Visconti, também pode ser assistida no Youtube, o que oferece ao interessado a possibilidade de observar não apenas a agudeza com que Gilda foi capaz de analisar e interpretar esse filme de mestre, mas também a elegância com que se expressava.

“Gilda de Mello e Souza foi uma pensadora sutil e excepcional escritora. A palavra afiada traz textos e entrevistas que até agora não estavam disponíveis, resgatados com gosto e discernimento por Walnice Nogueira Galvão, e chancelados pela leitura de Antonio Candido de Mello e Souza”, afirmou Celso Lafer, presidente da FAPESP. “Todos os que tiveram o privilégio de conviver com ela, eu inclusive, terão nesse novo livro uma renovada oportunidade de ver os seus talentos.”

“Sua tese, O espírito das roupas, é fantástica. E o livro O tupi e o alaúde, que resenhei, é uma grande interpretação da alma de Mário de Andrade, com quem ela teve uma convivência profunda”, acrescentou Lafer.

Ter sido discípula de Mário de Andrade e esposa de Antonio Candido foi, certamente, um extraordinário privilégio. Mas, por outro lado, estabeleceu para ela dois termos de comparação dificílimos – exatamente nas áreas em que procurou atuar, a literatura e as artes. “Penso que ela deve ter lutado muito para se expressar, para se afirmar, tendo diante de si parâmetros desse porte”, refletiu Galvão. “Outras mulheres, mais fracas, teriam desistido. Ela não. E conseguiu conciliar uma brilhante carreira intelectual com uma vida familiar extremamente harmoniosa. Foi uma existência muito completa. E bela.”

A palavra afiada
Organizadora: Walnice Nogueira Galvão
Lançamento: 23/04/2014
Preço: R$ 48,00
Páginas: 264

Mais informações:
www.ourosobreazul.com.br/editora_catalogo_detalhe.asp?idl=51 

Extraído de http://agencia.fapesp.br/18962

terça-feira, 2 de julho de 2013

Marilena Chauí: O inferno urbano e a política do favor, tutela e cooptação


Marilena Chauí: O inferno urbano e a política do favor, tutela e cooptação 
          publicado em 27 de junho de 2013 às 15:30
As manifestações de junho de 2013 na cidade de São Paulo
          por Marilena Chaui, na revista Teoria e Debate

Observações preliminares

O que segue não são reflexões sobre todas as manifestações ocorridas no país, mas focalizam principalmente as ocorridas na cidade de São Paulo, embora algumas palavras de ordem e algumas atitudes tenham sido comuns às manifestações de outras cidades (a forma da convocação, a questão da tarifa do transporte coletivo como ponto de partida, a desconfiança com relação à institucionalidade política como ponto de chegada) bem como o tratamento dado a elas pelos meios de comunicação (condenação inicial e celebração final, com criminalização dos “vândalos”) permitam algumas considerações mais gerais a título de conclusão.

O estopim das manifestações paulistanas foi o aumento da tarifa do transporte público e a ação contestatória da esquerda com o Movimento Passe Livre (MPL), cuja existência data de 2005 e é composto por militantes de partidos de esquerda. Em sua reivindicação especifica, o movimento foi vitorioso sob dois aspectos: 1. conseguiu a redução da tarifa; 2. definiu a questão do transporte público no plano dos direitos dos cidadãos e, portanto, afirmou o núcleo da prática democrática, qual seja, a criação e defesa de direitos por intermédio da explicitação (e não do ocultamento) dos conflitos sociais e políticos.

O inferno urbano

Não foram poucos os que, pelos meios de comunicação, exprimiram sua perplexidade diante das manifestações de junho de 2013: de onde vieram e por que vieram se os grandes problemas que sempre atormentaram o país (desemprego, inflação, violência urbana e no campo) estão com soluções bem encaminhadas e reina a estabilidade política? As perguntas são justas, mas a perplexidade, não, desde que  voltemos nosso olhar para um ponto que foi sempre o foco dos movimentos populares: a situação da vida urbana nas grandes metrópoles brasileiras.

Quais os traços mais marcantes da cidade de São Paulo nos últimos anos e que, sob certos aspectos, podem ser generalizados para as demais? Resumidamente, podemos dizer que são os seguintes:

– explosão do uso do automóvel individual: a mobilidade urbana se tornou quase impossível, ao mesmo tempo em que a cidade se estrutura com um sistema viário destinado aos carros individuais em detrimento do transporte coletivo, mas nem mesmo esse sistema é capaz de resolver o problema;

– explosão imobiliária com os grandes condomínios (verticais e horizontais) e shopping centers, que produzem uma densidade demográfica praticamente incontrolável além de não contar com uma redes de água, eletricidade e esgoto, os problemas sendo evidentes, por exemplo, na ocasião de chuvas;

– aumento da exclusão social e da desigualdade com a expulsão dos moradores das regiões favorecidas pelas grandes especulações imobiliárias e o conseqüente aumento das periferias carentes e de sua crescente distância com relação aos locais de trabalho, educação e serviços de saúde. (No caso de São Paulo, como aponta Hermínia Maricatto, deu-se a ocupação das regiões de mananciais, pondo em risco a saúde de toda a população); em resumo: degradação da vida cotidiana das camadas mais pobres da cidade;

– o transporte coletivo indecente, indigno e mortífero.  No caso de São Paulo, sabe-se que o programa do metrô previa a entrega de 450 k de vias até 1990; de fato, até 2013, o governo estadual apresenta 90 k. Além disso, a frota de trens metroviários não foi ampliada, está envelhecida e mal conservada; além da insuficiência quantitativa para atender a demanda, há atrasos constantes por quebra de trens e dos instrumentos de controle das operações. O mesmo pode ser dito dos trens da CPTU, que também são de responsabilidade do governo estadual.

No caso do transporte por ônibus, sob responsabilidade municipal, um cartel domina completamente o setor sem prestar contas a ninguém: os ônibus são feitos com carrocerias destinadas a caminhões, portanto, feitos para transportar coisas e não pessoas; as frotas estão envelhecidas e quantitativamente defasadas com relação às necessidades da população, sobretudo as das periferias da cidade; as linhas são extremamente longas porque isso as torna mais lucrativas, de maneira que os passageiros são obrigados a trajetos absurdos, gastando horas para ir ao trabalho, às escolas, aos serviços de saúde e voltar para casa; não há linhas conectando pontos do centro da cidade nem linhas inter-bairros, de maneira que o uso do automóvel individual se torna quase inevitável para trajetos menores.

Em resumo: definidas e orientadas pelos imperativos dos interesses privados, as montadoras de veículos, empreiteiras da construção civil e empresas de transporte coletivo dominam a cidade sem assumir qualquer responsabilidade pública, impondo o que chamo de inferno urbano.

2. As manifestações paulistanas

A tradição de lutas

Recordando: A cidade de São Paulo (como várias das grandes cidades brasileiras) tem uma tradição histórica de revoltas populares contra as péssimas condições do transporte coletivo, isto é, a tradição do quebra-quebra quando, desesperados e enfurecidos, os cidadãos quebram e incendeiam ônibus e trens (à maneira do que faziam os operários no início da Segunda Revolução Industrial, quando usavam os tamancos de madeira – em francês, os sabots – para quebrar as máquinas – donde a palavra francesa sabotage, sabotagem). Entretanto, não foi este o caminho tomado pelas manifestações atuais e valeria a pena indagar por que. Talvez porque, vindo da esquerda, o MPL politiza explicitamente a contestação, em vez de politiza-la simbolicamente, como faz o quebra-quebra.

Recordando: Nas décadas de 1970 a 1990, as organizações de classe (sindicatos, associações, entidades) e os movimentos sociais e populares tiveram um papel político decisivo na implantação da democracia no Brasil pelos seguintes motivos:

1. introdução da idéia de direitos sociais, econômicos e culturais para além dos direitos civis liberais;

2. afirmação da capacidade auto-organizativa da sociedade;

3. introdução da prática da democracia participativa como condição da democracia representativa a ser efetivada pelos partidos políticos. Numa palavra: sindicatos, associações, entidades, movimentos sociais e movimentos populares eram políticos, valorizavam a política, propunham mudanças políticas e rumaram para a criação de partidos políticos como mediadores institucionais de suas demandas.

Isso quase desapareceu da cena histórica como efeito do neoliberalismo, que produziu:

1. fragmentação, terceirização e precarização do trabalho (tanto industrial como de serviços) dispersando a classe trabalhadora, que se vê diante do risco da perda de seus referenciais de identidade e de luta;

2. refluxo dos movimentos sociais e populares e sua substituição pelas ONGs, cuja lógica é distinta daquela que rege os movimentos sociais;

3. surgimento de uma nova classe trabalhadora heterogênea, fragmentada, ainda desorganizada e que por isso ainda não tem suas próprias formas de luta e não se apresenta no espaço público e que por isso mesmo é atraída e devorada por ideologias individualistas como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a ideologia do “empreendedorismo” (da classe média), que estimulam a competição, o isolamento e o conflito inter-pessoal, quebrando formas anteriores de sociabilidade solidária e de luta coletiva.

Erguendo-se contra os efeitos do inferno urbano, as manifestações guardaram da tradição dos movimentos sociais e populares a organização horizontal, sem distinção hierárquica entre dirigentes e dirigidos. Mas, diversamente dos movimentos sociais e populares,  tiveram uma forma de convocação que as transformou num movimento de massa, com milhares de manifestantes nas ruas.

O pensamento mágico

A convocação foi feita por meio das redes sociais. Apesar da celebração  desse tipo de convocação, que derruba o monopólio dos meios de comunicação de massa, entretanto é preciso mencionar alguns problemas postos pelo uso dessas redes, que possui algumas características que o aproximam dos procedimentos da midia:

a. é indiferenciada: poderia ser para um show da Madonna, para uma maratona esportiva, etc. e calhou ser por causa da tarifa do transporte público;

b. tem a forma de um evento, ou seja, é pontual, sem passado, sem futuro e sem saldo organizativo porque, embora tenha partido de um movimento social (o MPL), à medida que cresceu passou á recusa gradativa da estrutura de um movimento social para se tornar um espetáculo de massa. (Dois exemplos confirmam isso: a ocupação de Wall Street pelos jovens de Nova York e que, antes de se dissolver, se tornou um ponto de atração turística para os que visitavam a cidade; e o caso do Egito, mais triste, pois com o fato das manifestações permanecerem como eventos e não se tornarem uma forma de auto-organização política da sociedade, deram ocasião para que os poderes existentes passassem de uma ditadura para outra);

c. assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários e, portanto, não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, deste ponto de vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa.

A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a idéia de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação;

d. a recusa das mediações institucionais indica que estamos diante de uma ação própria da sociedade de massa, portanto,  indiferente à determinação de classe social; ou seja, no caso presente, ao se apresentar como uma ação da juventude, o movimento  assume a aparência de que o  universo dos manifestantes é homogêneo ou de massa, ainda que, efetivamente, seja heterogêneo do ponto de vista econômico, social e político, bastando lembrar que as manifestações das periferias não foram apenas de “juventude” nem de classe média, mas de jovens, adultos, crianças e idosos da classe trabalhadora.

No ponto de chegada, as manifestações introduziram o tema da corrupção política e a recusa dos partidos políticos. Sabemos que o MPL é  constituído por militantes de vários partidos de esquerda e, para assegurar a unidade do movimento, evitou a referência aos partidos de origem.

Por isso foi às ruas sem definir-se como expressão de partidos políticos e, em São Paulo, quando, na comemoração da vitória, os militantes partidários compareceram às ruas foram execrados, espancados, e expulsos como oportunistas – sofreram repressão violenta por parte da massa. Ou seja, alguns manifestantes praticaram sobre outros a violência que condenaram na polícia.

A crítica às instituições políticas não é infundada, mas possui base concreta:

a. no plano conjuntural: o inferno urbano é, efetivamente, responsabilidade dos partidos políticos governantes;

b. no plano estrutural: no Brasil, sociedade autoritária e excludente, os partidos políticos tendem a ser clubes privados de oligarquias locais, que usam o público para seus interesses privados; a qualidade dos legislativos nos três níveis é a mais baixa possível e a corrupção é estrutural; como consequência,  a relação de representação não se concretiza porque vigoram relações de favor, clientela, tutela e cooptação;

c. a crítica ao PT:  de ter abandonado a relação com aquilo que determinou seu nascimento e crescimento, isto é, o campo das lutas sociais auto-organizadas e ter-se transformado numa máquina burocrática e eleitoral (como têm dito e escrito muitos militantes ao longo dos últimos 20 anos).

Isso, porém, embora explique a recusa, não significa que esta tenha sido motivada pela clara compreensão do problema por parte dos manifestantes. De fato, a maioria deles não exprime em suas falas uma análise das causas desse modo de funcionamento dos partidos políticos, qual seja, a estrutura autoritária da sociedade brasileira, de um lado, e, de outro, o sistema político-partidário montado pelos casuímos da ditadura. Em lugar de lutar por uma reforma política, boa parte dos manifestantes recusa a legitimidade do partido político como instituição republicana e democrática.

Assim, sob este aspecto, apesar do uso das redes sociais e da crítica aos meios de comunicação, a maioria dos manifestantes aderiu à mensagem ideológica difundida anos a fio pelos meios de comunicação de que os partidos são corruptos por essência.

Como se sabe, essa posição dos meios de comunicação tem a finalidade de lhes conferir o monopólio das funções do espaço público, como se não fossem empresas  capitalistas movidas por interesses privados.

Dessa maneira, a recusa dos meios de comunicação e as críticas a eles endereçadas pelos manifestantes não impediram que grande parte deles aderisse à perspectiva da classe média conservadora difundida pela mídia a respeito da ética.

De fato, a maioria dos manifestantes, reproduzindo a linguagem midiática, falou de ética na política (ou seja, a transposição dos valores do espaço privado para o espaço público), quando, na verdade, se trataria de afirmar a ética da política (isto é, valores propriamente públicos), ética que não depende das virtudes morais das pessoas privadas dos políticos e sim da qualidade das instituições públicas enquanto instituições republicanas.

A ética da política, no nosso caso, depende de uma profunda reforma política que crie instituições democráticas republicanas e destrua de uma vez por todas a estrutura deixada pela ditadura, que força os partidos políticos a coalizões absurdas se quiserem governar, coalizões que comprometem o sentido e a finalidade de seus programas e abrem as comportas para a corrupção.

Em lugar da ideologia conservadora e midiática de que, por definição e por essência, a política é corrupta, trata-se de promover uma prática inovadora capaz de criar instituições públicas que impeçam a corrupção, garantam a participação, a representação e o controle dos interesses públicos e dos direitos pelos cidadãos. Numa palavra, uma invenção democrática.

Ora, ao entrar em cena o pensamento mágico, os manifestantes deixam de lado que, até que uma nova forma da política seja criada num futuro distante quando, talvez, a política se realizará sem partidos, por enquanto, numa república democrática (ao contrário de uma ditadura) ninguém governa sem um partido, pois é este que cria e prepara quadros para as funções governamentais para concretização dos objetivos e das metas dos governantes eleitos.

Bastaria que os manifestantes se informassem sobre o governo Collor para entender isso: Collor partiu das mesmas afirmações feitas por uma parte dos manifestantes (partido político é coisa de “marajá” e é corrupto) e se apresentou como um homem sem partido. Resultado: a) não teve quadros para montar o governo, nem diretrizes e metas coerentes e b) deu feição autocrática ao governo, isto é, “o governo sou eu”. Deu no que deu.

Além disso, parte dos manifestantes está adotando a posição ideológica típica da classe média, que aspira por governos sem mediações institucionais e, portanto, ditatoriais. Eis porque surge a afirmação de muitos manifestantes, enrolados na bandeira nacional, de que “meu partido é meu país”, ignorando, talvez, que essa foi uma das afirmações fundamentais do nazismo contra os partidos políticos.

Assim, em lugar de inventar uma nova política, de ir rumo a uma invenção democrática, o pensamento mágico de grande parte dos manifestantes se ergueu contra a política, reduzida à figura da corrupção. Historicamente, sabemos onde isso foi dar.

E por isso não nos devem surpreender, ainda que devam nos alarmar, as imagens de jovens militantes de partidos e movimentos sociais de esquerda espancados e ensangüentados durante a manifestação de comemoração da vitória do MPL.

Já vimos essas imagens na Itália dos anos 1920, na Alemanha dos anos 1930 e no Brasil dos anos 1960-1970.

Conclusão provisória

Do ponto de vista simbólico, as manifestações possuem um sentido importante que contrabalança os problemas aqui mencionados.

Não se trata, como se ouviu dizer nos meios de comunicação, que finalmente os jovens abandonaram a “bolha” do condomínio e do shopping center e decidiram ocupar as ruas (já podemos prever o número de novelas e mini-séries que usarão essa idéia para incrementar o programa High School Brasil, da Rede Globo).

Simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas afirmações explícitas contra a política, os manifestantes realizaram um evento político: disseram não ao que aí está, contestando as ações dos poderes executivos municipais, estaduais e federal, assim como as do poder legislativo nos três níveis.

Praticando a tradição do humor corrosivo que percorre as ruas, modificaram o sentido corriqueiro das palavras e do discurso conservador por meio da inversão das significações e da irreverência, indicaram uma nova possibilidade de práxis política, uma brecha para repensar o poder, como escreveu um filósofo político sobre os acontecimentos de maio de 1968 na Europa.

Justamente porque uma nova possibilidade política está aberta, algumas observações merecem ser feitas para que fiquemos alertas aos riscos de apropriação e destruição dessa possibilidade pela direita conservadora e reacionária.

Comecemos por uma obviedade: como as manifestações são de massa (de juventude, como propala a mídia) e não aparecem em sua determinação de classe social, que, entretanto, é clara na composição social das manifestações das periferias paulistanas, é preciso lembrar que uma parte dos manifestantes não vive nas periferias das cidades, não experimenta a violência do cotidiano experimentada pela outra parte dos manifestantes.

Com isso, podemos fazer algumas indagações.

Por exemplo: os jovens manifestantes de classe média que vivem nos condomínios têm idéia de que suas famílias também são responsáveis pelo inferno urbano (o aumento da densidade demográfica dos bairros e a expulsão dos moradores populares para as periferias distantes e carentes)? Os jovens manifestantes de classe média que, no dia em que fizeram 18 anos, ganharam de presente um automóvel (ou estão na expectativa do presente quando completarem essa idade), têm idéia de que também são responsáveis pelo inferno urbano? Não é paradoxal, então, que se ponham a lutar contra aquilo que é resultado de sua própria ação (isto é, de suas famílias), mas atribuindo tudo isso à política corrupta, como é típico da classe média?

Essas indagações não são gratuitas nem expressão de má-vontade a respeito das manifestações de 2013. Elas têm um motivo político e um lastro histórico.

Motivo político: assinalamos anteriormente o risco de apropriação das manifestações rumo ao conservadorismo e ao autoritarismo. Só será possível evitar esse risco se os jovens manifestantes levarem em conta algumas perguntas:

1. estão dispostos a lutar contra as ações que causam o inferno urbano e, portanto, enfrentar pra valer o poder do capital de montadoras, empreiteiras e cartéis de transporte que, como todo sabem não se relacionam  pacificamente (para dizer o mínimo) com demandas sociais?

2. estão dispostos a abandonar a suposição de que a política se faz magicamente sem mediações institucionais?

3. estão dispostos a se engajar na luta pela reforma política, a fim de inventar uma nova política, libertária, democrática, republicana, participativa?

4. estão dispostos a não reduzir sua participação a um evento pontual e efêmero e a não se deixar seduzir pela imagem que deles querem produzir os meios de comunicação?

Lastro histórico: quando Luiza Erundina, partindo das demandas dos movimentos populares e dos compromissos com a justiça social, propôs a Tarifa Zero para o transporte público de São Paulo, ela explicou à sociedade que a tarifa precisava ser subsidiada pela Prefeitura e que ela não faria o subsídio implicar em cortes nos orçamentos de educação, saúde, moradia e assistência social, isto é, dos programas sociais prioritários de seu governo.

Antes de propor a Tarifa Zero, ela aumentou em 500% a frota da CMTC (explicação para os jovens: CMTC era a antiga empresa municipal de transporte) e forçou os empresários privados a renovar sua frota.

Depois disso, em inúmeras audiências públicas, ela apresentou todos os dados e planilhas da CMTC e obrigou os empresários das companhias privadas de transporte coletivo a fazer o mesmo, de maneira que a sociedade ficou plenamente informada quanto aos recursos que seriam necessários para o subsídio.

Ela propôs, então, que o subsídio viesse de uma mudança tributária: o IPTU progressivo, isto é, o imposto predial seria aumentado para os imóveis dos mais ricos, que contribuiriam para o subsídio juntamente com outros recursos da Prefeitura.

Na medida que os mais ricos, como pessoas privadas, têm serviçais domésticos que usam o transporte público, e, como empresários, têm funcionários usuários desse mesmo transporte, uma forma de realizar a transferência de renda, que é base da justiça social, seria exatamente fazer com que uma parte do subsídio viesse do novo IPTU.

Os jovens manifestantes de hoje desconhecem o que se passou: comerciantes fecharam ruas inteiras, empresários ameaçaram lockout das empresas, nos “bairros nobres” foram feitas  manifestações contra o “totalitarismo comunista” da prefeita e os poderosos da cidade “negociaram” com os vereadores a não aprovação do projeto de lei.

A Tarifa Zero não foi implantada. Discutida na forma de democracia participativa, apresentada com lisura e ética política, sem qualquer mancha possível de corrupção, a proposta foi rejeitada.

Esse lastro histórico mostra o limite do pensamento mágico, pois não basta ausência de corrupção, como imaginam os manifestantes, para que tudo aconteça imediatamente da melhor maneira e como se deseja.

Cabe uma última observação: se não levarem em consideração a divisão social das classes, isto é, os conflitos de interesses e de poderes econômico-sociais na sociedade, os manifestantes não compreenderão o campo econômico-político no qual estão se movendo quando imaginam estar agindo fora da política e contra ela.

Entre os vários riscos dessa imaginação, convém lembrar aos manifestantes que se situam à esquerda que, se não tiverem autonomia política e se não a defenderem com muita garra, poderão, no Brasil, colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E a mídia, penhorada, agradecerá pelos altos índices de audiência.

Fonte: Viomundo

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Eric Hobsbawm, adeus a um dos maiores pensadores do século 20

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Morre Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores do século 20

Atualizado em  1 de outubro, 2012 - 10:23 (Brasília) 13:23 GMT

Historiador Eric Hobsbawm morreu aos 95 anos em Londres.

Foto do Outono de 2009, em Barcelona

Um dos mais influentes historiadores do século 20, o britânico Eric Hobsbawm morreu nesta segunda-feira em Londres aos 95 anos, confirmaram familiares.

Em entrevista à imprensa, a filha de Hobsbawn, Julia, disse que seu pai morreu no início da manhã no Royal Free Hospital, onde ele se tratava de uma pneumonia.

"Sua ausência será imensamente sentida não só por sua esposa de mais de 50 anos, Marlene, por seus três filhos, sete netos e bisnetos, mas também por muitos leitores e estudantes ao redor do mundo", informou um comunicado da família.

A reputação do historiador deve-se, principalmente, a quatro obras escritas por ele, entre elas "Era dos Extremos: o Breve Século 20: 1914 - 1991", livro que foi traduzido em 40 línguas.

De família judia, Hobsbawm nasceu na cidade de Alexandria, no Egito, em 1917, o mesmo ano da Revolução Russa, que representou a derrocada do czarismo e o início do comunismo no país.

Não por coincidência, a vida do historiador e seus trabalhos foram moldados dentro de um compromisso duradouro com o socialismo radical.

O pai de Hobsbawm, o britânico Leopold Percy, e sua mãe, a austríaca Nelly Grün, mudaram-se para Viena, na Áustria, quando o historiador tinha dois anos e, logo depois, para Berlim, na Alemanha.

Hobsbawm aderiu ao Partido Comunista aos 14 anos, após a morte precoce de seus pais. Na ocasião, ele foi morar com seu tio.

Em 1933, com o início da ascensão de Hitler na Alemanha, ele e seu tio mudaram-se para Londres, na Inglaterra. Após obter um PhD da Universidade de Cambridge, tornou-se professor no Birkbeck College em 1947 e, um ano depois, publicou o primeiro de seus mais de 30 livros.

Hobsbawm foi casado duas vezes e teve três filhos, Julia, Andy e Joshua.

Na década de 80, Hobsbawm comentou sobre sua fuga da Alemanha. "Qualquer um que viu a ascensão de Hitler em primeira mão não poderia ter sido ajudado, mas moldado por isso, politicamente. Esse garoto ainda está aqui dentro em algum lugar - e sempre estará".

Obra

Entre as obras mais conhecidas de Hobsbawm, estão os três volumes sobre a história do século 19 e "Era dos Extremos", que cobriu oito décadas da Segunda Guerra Mundial ao colapso da União Soviética.

Já como presidente do Birkbeck College, ele publicou seu último livro, "Como mudar o mundo - Marx e o marxismo 1840-2011", no ano passado.

O historiador afirmou que ele tinha vivido "no século mais extraordinário e terrível da história humana".

Marxista inveterado, ele reconheceu a derrocada do comunismo no século 20, mas afirmou não ter desistido de seus ideais esquerdistas.

Em abril deste ano, Hobsbawm disse ao colega historiador Simon Schama que ele gostaria de ser lembrado como "alguém que não apenas manteve a bandeira tremulando, mas quem mostrou que ao balançá-la pode alcançar alguma coisa, ao menos por meio de bons livros".

Extraído de BBC

segunda-feira, 19 de março de 2012

Miguel de Cervantes: filosofia política, legado e atualidade


Dom Quixote, por Pablo Picasso

O novo Estado moderno substituiu o livro do profeta pelo livro da constituição
A filosofia política de Cervantes


Por Nivaldo Cordeiro
4/10/2010

Qual a grande mensagem política do romance Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes? Em primeiro lugar, sua constatação que o homem vulgar estava se apossando do poder de Estado. Isso fica explícito no desejo realizado de Sancho Pança de assumir o governo de uma ínsula (esta palavra é uma referência ao primeiro Estado nacional moderno, a Sicília de Frederico II) e também no fato de o duque rebaixar-se a fazer troça do próprio poder, nivelando-se a Sancho Pança.

Essa visão de Miguel de Cervantes é o fundamento do clássico livro de Ortega y Gasset, A REBELIÃO DAS MASSAS, obra primorosa que deu as necessárias respostas aos acontecimentos do século XX. Ortega nada criou, apenas adaptou as observações cervantinas aos acontecimentos de seu tempo. A rebelião das massas é a outra face da moeda do desaparecimento das elites, que sempre foram as condutoras dos destinos políticos. A democracia moderna é a manifestação histórica acabada desse fenômeno político.

Em segundo lugar, Cervantes apontou o mouro como o inimigo da civilização européia. Aqui está também outro caráter visionário do romancista espanhol. Quando ele se refere ao mouro refere-se ao islã em geral. O mouro é o inimigo espiritual da civilização e o que há de mais mourisco no Estado moderno é que ele imita o modo de ser islâmico, elevando o Estado a uma condição divina. A Europa, ao abandonar o cristianismo, na verdade mourificou o Estado, transferindo para a lei positiva a autoridade da lei divina, o que não havia antes na civilização cristã. O Ocidente inovou por acrescentar a esse modo islâmico de cultivar o poder a função legislativa fundada na razão. O Islã ficou estagnado no século VII porque o legislador foi o próprio profeta, enquanto o Estado nacional moderno colocou na razão a fonte da lei, agora atualizada diariamente.

O direito natural moderno, em tudo oposto ao direito natural clássico, humanizou o poder legislativo no pior sentido da expressão. Nesse passo consiste o pacto faustico da modernidade: a elevação do homem a um condição divina. O jusnaturalismo moderno teria que desaguar necessariamente no positivismo jurídico mais cru, perdendo-se completamente o nexo entre a fonte transcendente da lei e a legislação positiva. O novo Estado moderno deificou-se e substituiu o livro do profeta pelo livro da constituição. Nem na antiguidade se permitiu tamanha blasfêmia. Os romanos, por exemplo, sabiam que os augúrios eram algo separado das decisões de Estado.

O famoso discurso de Dom Quixote pela liberdade, ao sair dos domínios do duque, equivale à fuga de Moisés para Canaã. Não é apenas a liberdade diante da ordem maligna, é a própria fuga do jugo do Faraó, em busca de uma pátria sem Estado, fora dos domínios do reino desse mundo. Cervantes anteviu o que estava por vir ao publicar seus livros. A deificação do Estado levaria mesmo à destruição da liberdade, marcha na qual o Ocidente tem empreendido desde os tempos da renascença.

A combinação da deificação da lei positiva fundada na razão com a emergência do homem-massa ao poder, a chegada dos piores ao poder, leva a periódicos delírios fausticos ditatoriais e a guerras de extermínio impiedosas. Homens moralmente inferiores tomando decisões insensatas, capazes de serem postas em prática pelos recursos permitidos pelas técnicas modernas. A motivação é que os homens modernos estão firmemente convencidos de que a humanidade é passível de aperfeiçoamento pela lei estatal, ignorando a antropologia cristã. Daí as usinas de fabricação de leis que se tornaram os legislativos modernos. Legislar é aperfeiçoar o homem, coisa que o cristianismo, desde o início, tomou como coisa blasfema e perigosa.

Uma terceira contribuição de Miguel de Cervantes foi demonstrar que essa tentativa de perfectibilismo e de deificação do Estado levava ao mergulho na Segunda Realidade, desconectada do real. O instrumento de mergulho na Segunda Realidade é a lei positiva desconectada da lei natural e da lei divina. A coisa toda se torna um delírio de poder totalitário, capaz dos maiores e mais horrendos crimes. Vimos isso no comunismo e no nazismo, mas vimos também, em graus variados, em todos os Estados modernos. Aqui mesmo no Brasil tivemos esses delírios, a começar pelo massacre criminoso perpetrado em Canudos pelos positivistas que fundaram a República. Canudos é o crime original da nossa modernidade.

O filósofo que levou às últimas conseqüências a tese da criação da Segunda Realidade foi Eric Voegelin e foi ele quem deu a explicação definitiva do nazismo como fenômeno político dessa Segunda Realidade medonha.

Cervantes é atualíssimo. Compreender seu Dom Quixote é um antídoto para os perigos dos tempos. Retirar todas as conseqüências da obra é criar um bote salva-vidas contra os grandes perigos que estão à espreita nesse início de século e de milênio. Mas é também retornar ao cristianismo ortodoxo, algo que apavora os modernos ateus e agnósticos. Não deixa de ser irônico que estes abandonaram o cristianismo e abraçaram o profeta Maomé sem nem mesmo o saber. Eles não lêem Miguel de Cervantes.

* * * * *
Qual é a filosofia política estampada por Cervantes no Dom Quixote?
O legado de Cervantes


Por Nivaldo Cordeiro
21/7/2010

Se é imensa a contribuição de Miguel de Cervantes à filosofia política, ao destrinchar o mecanismo da Segunda Realidade revolucionária, típica dos tempos modernos, penso que esta contribuição específica se restringe mais ao campo da psicologia coletiva do que propriamente ao âmbito da política. É certo que esse mecanismo psicológico terá o poder de descrever tudo o que se passou desde o século XVI e seu poder explicativo se prolonga até os nossos dias. É impossível compreender os acontecimentos, nacionais e mundiais, sem ter à mão a genial descoberta cervantina.

Bem que se diga que a questão da loucura estava na ordem do dia no Renascimento. Erasmo explorou o tema em obra genial (ELOGIO À LOUCURA). Shakespeare terá em vários personagens a manifestação de loucura. Mas apenas Cervantes transformará a observação no prognóstico dos tempos que virão. Ortega y Gasset, em ensaio genial (IDEAS Y CREENCIAS), irá associar a modernidade à razão (físico-matemática assim como às de Estado, desconhecida esta na Idade Média), em substituição à fé em Deus dos tempos medievais. Não há dúvida de que a loucura coletiva será filha dessa hipertrofia da razão, elevada à condição de deusa por ocasião da Revolução Francesa.

Qual é a filosofia política estampada por Cervantes no Dom Quixote? Penso que em três momentos temos o tema abordado de forma saliente. O primeiro é quando, no capítulo XXII do Primeiro Livro, o Cavaleiro da Triste Figura liberta os condenados às galés. Ali estava a escória da sociedade, os criminosos mais perigosos. Eram doze e esse número não ao acaso equivale ao número dos apóstolos de Cristo. A modernidade escravizou de forma mais vil a fé cristã. A moral cristã passa a ser tida como o comportamento anti-social por excelência, contra a qual se insurgem todas as revoluções, a começar pela protestante. Ao largo da questão religiosa, todavia, convém ter em conta a biografia do próprio Cervantes, várias vezes jogado nos cárceres imundos do Estado espanhol por crimes que não cometeu.

Quixote pergunta a Sancho, ao ver os condenados conduzidos por soldados: “Como gente forzada? Es posible que El Rey haga fuerza a ninguna gente?” Quixote fica inconformado com a situação de que gente pudesse ser levada contra sua própria vontade e dá seu brado de liberdade: “...aquí encaja la ejecución de mi oficio: desfazer fuerzas e socorrer y acudir a los miserables”. Ato contínuo, partiu para libertar os prisioneiros.

Sem dúvida estamos aqui diante da perspectiva radicalmente cristã do direito, contrária à ordem estatal da modernidade. Cervantes anteviu o que viria nos séculos posteriores: hoje as multidões estão sendo encarceradas em proporções nunca vistas. Não custa lembrar que o Estado da Flórida, nos EUA, já chegou ao limite de ter dentro das prisões 5% de sua população masculina adulta. Os negros, tomados individualmente, já são 15% dos homens adultos feitos prisioneiros. É a hora do cavaleiro andante passear pelas terras do Tio Sam.

Outro momento importante da obra no tocante à ciência política está no capítulo LX do Segundo Livro, quando Dom Quixote e Sancho Pança são feitos prisioneiros do bando de Roque Guinart. O cavaleiro constatou que, mesmo numa sociedade constituída por delinqüentes, a justiça distributiva, nos termos aristotélicos ou do direito romano (geométrica, “dar a cada um o que é seu”), precisa prevalecer, sob pena de se dissolver o núcleo social. Não é privilégio de uma sociedade política institucionalmente organizada praticar tal distribuição do direito, que é “natural”. O direito depende da força, mas não tem nela sua fonte. A reflexão cervantina serve para nos alertar da necessidade e dos limites da ação dos operadores do direito. Em resumo, do Estado e seu direito não depende a liberdade enquanto tal.

Por último, depois de viver as aventuras na corte do duque, Dom Quixote parte e profere as magníficas palavras, uma ode à liberdade (capítulo LVIII do Segundo Livro): “La liberdad, Sancho, es uno de los más preciosos dones que los hombres dieron los céus; com ella no poeden igualarse los tesoros que encierra la terra ni el mar encubre; por la liberdad así como por la honra se puede y debe aventurar la vida; y, por lo contrario, el cautiverio es el mayor mal que pode venir a los hombres.”

A mania moderna de ligar a liberdade ao poder de Estado pode ser, e parece de fato, sua grande armadilha. Quanto mais se clama pela lei do Estado, mais se reduz a liberdade e mais o gigante, como os moinhos de vento, torna-se o seu contrário e leva toda a gente presa como remadores cativos às galés, nas nossas modernas prisões.

Retirar o encanto do ente estatal agigantado será a grande obra de Cervantes, o seu legado. É preciso novamente meditar sobre as páginas imortais do Cavaleiro do Triste Figura. Se olharmos bem veremos que o Estado moderno, ao contrário daquele idealizado por Santo Agostinho, compele os homens ao mal e torna os vícios práticas forçadas, por curso legal.

* * * * *
Romance de Cervantes está completando quatrocentos anos
Atualidade do Dom Quixote


Por Nivaldo Cordeiro
22/6/2010

Decidi oferecer, no Instituto Internacional de Ciências Sociais, aqui em São Paulo, um curso sobre o livro de Miguel de Cervantes, Dom Quixote. O romance, que inaugurou o gênero, está completando quatrocentos anos. O primeiro dos dois livros que compõem a obra foi publicado em 1605 e o segundo em 1615. Com alguma justiça podemos dizer que o ano em curso é aquele que deve celebrar a efeméride.

Mas por que estudar o velho livro? Não é apenas a beleza estilística, o humor, a criatividade do autor que atraem na obra imorredoura. Cervantes deixou no livro um feito inigualável para a filosofia política: a compreensão da Segunda Realidade, aquela que presidirá o chamado mundo moderno. O conceito de Segunda Realidade foi muito explorado por grandes romancistas do final do século XIX e primeira metade do Século XX, com destaque para Roberto Musil e Thomas Mann. Mesmo Dostoievsky utiliza-o na sua narrativa para explicitar o real que se desenrolou na alma dos homens do seu tempo. Dom Quixote está no cerne da obra de filósofos como Eric Voegelin e Leo Strauss. Ele é também o alicerce de toda a obra filosófica de Ortega y Gasset.

Na verdade, todos os grandes romancistas, aqueles fazem a crônica das entranhas da humanidade, não podem deixar de recorrer à descoberta imorredoura de Miguel de Cervantes. O mundo como idéia (entre nós Bruno Tolentino nos legou obra imortal sob o mesmo prisma, em poesia) é o objeto de quem quer entender o que se passa. Isso é a modernidade, isso é o homem moderno. E é toda a loucura da jornada que nós próprios fazemos em nossa geração.

A modernidade é essa construção social do homem que busca, a só tempo, a perfeição em vida, pelo uso da lei estatal, e a afirmação do homem como ente descolado de qualquer elemento transcendente, dono de seu próprio destino, senhor do mundo. Todas as grandes obras de arte, de uma maneira ou de outra, relatam esse fenômeno, que contrasta com a mente dos homens que antecederam as grandes revoluções européias.

Esse é o tema principal do curso, que consistirá também de uma leitura pública da obra, apoiada pelos elementos biográficos de Cervantes. Tudo que de relevante foi escrito sobre o autor e a obra, desde Unamuno e Ortega y Gasset, passando por Harold Bloom e Mario Vargas Llosa, orientará a leitura.

Dom Quixote não se esgota, todavia, nesse plano da filosofia política. Ele é também um livro de iniciação, que relata a agonia do autor em busca do elemento transcendente. Esse é um dos aspectos fundamentais da obra e aqui o uso da psicologia junguiana é um guia útil para a descrição de pontos obscuros e complexos dos relatos. Dom Quixote tem vários planos de narrativas e, sem se perder, envereda por histórias singulares aparentemente desconectadas do fluxo principal.

Na edição comemorativa do Quarto Centenário Mario Vargas Llosa escreveu um prefácio, no qual teve a brilhante intuição de dizer que o Dom Quixote é um romance para o século XXI. Tem toda razão, mas o peruano não soube bem dizer o porquê dessa atualidade. Digo-lhe, caro leitor: é que o mundo é mais moderno do que jamais foi, mais louco, mais perigoso. Só o gigantismo da pena mágica de Cervantes para nos conduzir na compreensão das maluquices atuais e nos fazer retornar ao real. Nisso consiste sua atualidade; essa é a razão de eu propor o tema para o curso.

De te fabula narratur! Dom Quixote é um enigma e um destino, uma alegoria da verdade que se esconde sob a máscara da Segunda Realidade. Ninguém que queira encontrar-se a si mesmo pode prescindir de um mergulho sério e sistemático na história do fidalgo herói da Mancha.

* Nivaldo Cordeiro é economista e mestre em Administração de Empresas pela EAESP-FGV. Empresário residente em São Paulo.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

O comunismo é a ideia da emancipação de toda humanidade


O comunismo é a ideia da emancipação de toda humanidade


07/02/2012

Período intervalo: sabemos que as velhas escolhas
estão acabadas,
mas não sabemos ainda muito bem
quais são as novas escolhas.
"O comunismo é a ideia da emancipação de toda humanidade"

Alain Badiou
O filósofo francês Alain Badiou é um homem que não teme riscos: nunca renunciou a defender um conceito que muitos acreditam ter sido queimado pela história: o comunismo. Em entrevista à Carta Maior, Badiou fala da “ideia comunista” ou da “hipótese comunista”. Segundo ele, tudo o que estava na ideia comunista, sua visão igualitária do ser humano e da sociedade, merece ser resgatado em um mundo onde tudo passou a ter um valor mercantil. Pensador crítico da modernidade, Badiou define o processo político atual como uma “guerra das democracias contra os pobres”.

Eduardo Febbro - Direto de Paris / Data: 05/02/2012

Paris - Alain Badiou não tem fronteiras. Este filósofo original é o pensador francês mais conhecido fora de seu país e autor de uma obra extensa e sem concessões. Filosofia, matemática, política, literatura e até o amor circulam em seu catálogo de produções e reflexões. Sua obra, de caráter multidisciplinar, traz uma crítica férrea ao que Alain Badiou chama de “materialismo democrático”, ou seja, um sistema humano onde tudo tem um valor mercantil.

Este filósofo insubmisso é também um homem de riscos: nunca renunciou a defender um conceito que muitos acreditam ter sido queimado pela história: o comunismo. Em sua pena, Badiou fala mais da “ideia comunista” ou da “hipótese comunista” do que do sistema comunista em si. Segundo o filósofo francês, tudo o que estava na ideia comunista, sua visão igualitária do ser humano e da sociedade, merece ser resgatado.

Defensor incondicional de Marx e da ideia de uma internacionalização positiva da revolta, o horizonte de sua filosofia é polifônico: seus componente não são a exposição de um sistema fechado, mas sim um sistema metafísico exigente que inclui as teorias matemáticas modernas – Gödel – e quatro dimensões da existência: o amor, a arte, a política e a ciência. Pensador crítico da modernidade numérica, Badiou definiu os processos políticos atuais como uma “guerra das democracias contra os pobres”.

O filósofo francês é um teórico dos processos de ruptura e não um mero panfletário. Ele convoca com método a repensar o mundo, a redefinir o papel do Estado, traça os limites da “perfeição democrática”, reinterpreta a ideia de República, reatualiza as formas possíveis e não aceitas de oposição e coloca no centro da evolução social a relegitimação das lutas sociais.

Alain Badiou propõe um princípio de ação sem o qual, sugere, nenhuma vida tem sentido: a ideia. Sem ela toda existência é vazia. Com mais de 70 anos, Badiou introduziu em sua reflexão o tema do amor em um livro brilhante e comovedor, no qual o autor de “O ser e o acontecimento” define o amor como uma categoria da verdade e o sentimento amoroso como o pacto mais elevado que os indivíduos podem firmar para viver. Sua lucidez analítica o conduz inclusive a dizer que o amor, porque grátis e total, está ameaçado pelo mundo contemporâneo.

Revoluções árabes, movimento dos indignados, mobilização crescente dos grupos que estão contra a globalização, a luta ou a oposição contra as modalidades do sistema atual se multiplicaram e sofisticaram. Analisando o que ocorreu, o que você diria hoje a todos esses rebeldes do mundo para que sua ação conduza a uma autêntica construção?

Eu diria a eles que, para mim, mais importante que a consigna da anti-globalização, a qual parece sugerir que, por meio de várias medidas, pode-se re-humanizar a situação, incluindo a re-humanização do capitalismo, é a globalização da vontade popular. Globalização quer dizer vigor internacional. Mas essa globalização internacional necessita de uma ideia positiva para uni-la e não só a ideia crítica ou a combinação de desacordos e protestos. Trata-se de um ponto muito importante. Passar da revolta à ideia é passar da negação á afirmação. Somente no plano afirmativo poderemos nos unir de forma duradoura.

Um dos princípios de sua filosofia consiste em dizer que uma vida que não está regida pelo signo da ideia não é uma vida verdadeira. Agora, como defender hoje essa ideia sob a ameaça do hiper-consumo, das falsidades e injustiças da democracia parlamentar e em um mundo onde nossa relação com o outro passa pela relação com o objeto e não com as ideias ou com os indivíduos? No mundo contemporâneo, a ideia é o produto e não a relação humana.

A verdadeira vida é uma vida que aceita estar sob o signo da ideia. Dito de outro modo, uma vida que aceita ser outra coisa do que uma vida animal. Alguns dirão que há valores transcendentes, religiosos, e que é preciso submeter o animal; outros dirão, ao contrário, que devemos nos libertar desses valores transcendentes, que Deus está morto, que viva os apetites selvagens. Mas, entre ambas, há uma solução intermediária, dialética, que consiste em dizer que, na vida, através de encontros e metamorfoses, pode haver um trajeto que nos liga à universalidade. Isso é o que eu chamo “uma vida verdadeira”, ou seja, uma vida que encontrou ao menos algumas verdades.

Chamo "ideia" esse intermediário entre as verdades universais, digamos eternas para provocar um pouco os contemporâneos, e o indivíduo. Que é então uma vida sob o signo da ideia em um mundo como este? Faz falta uma distância com a circulação geral. Mas essa distância não pode ser criada só com a vontade, faz falta algo que nos ocorra, um acontecimento que nos leve a tomar posição frente ao que se passou. Pode ser um amor, um levante político, uma decepção, enfim, muitas coisas. Aí se põe em jogo a vontade para criar um mundo novo que não estará baseado na ordem do mundo tal como é, com sua lei de circulação mercantil, mas sim em um elemento novo de minha experiência.

O mundo moderno se caracteriza pela soberania das opiniões. E a opinião é algo contrário à ideia. A opinião não pretende ser universal, é minha opinião e vale tanto quanto a opinião de qualquer outra pessoa. A opinião se relaciona com a distribuição de objetos e a satisfação pessoal. Há um mercado das opiniões assim como há um mercado das ações financeiras. Há momentos em que uma opinião vale mais do que outra; mais tarde essa opinião quebra como um país. Estamos no regime geral do comércio da comunicação no qual a ideia não existe. Inclusive se suspeita da ideia e se dirá que ela é opressiva, totalitária, que se trata de uma alienação. E por que isso ocorre? Simplesmente porque a ideia é grátis. Ao contrário da opinião, a ideia não entra em nenhum mercado. Se defendemos nossa convicção, o fazemos com a ideia de que é universal. Essa ideia é, então, uma proposta compartilhada, não se pode colocá-la à venda no mercado. Mas como tudo o que é grátis, a ideia está sob suspeita.

Pergunta-se: qual é o valor do que é grátis? Justamente, o valor do grátis é que não tem valor no sentido das trocas. Seu valor é intrínseco. E como não se pode distinguir a ideia do preço do objeto a única existência da ideia está em um tipo de fidelidade existencial e vital para a ideia. A melhor metáfora para isso é encontrada no amor. Se queremos profundamente a alguém, esse amor não tem preço. É preciso aceitar os sofrimentos, as dificuldades, o fato de que sempre há uma tensão entre o que desejamos imediatamente e a resposta do outro. É preciso atravessar tudo isso.

Quando estamos enamorados, trata-se de uma ideia e isso é o que garante a continuidade desse amor. Para se opor ao mundo contemporâneo pode-se atuar na política, mas estar cativado completamente por uma obra de arte ou estar profundamente enamorado é como uma rebelião secreta e pessoal contra o mundo contemporâneo. Esse é o principal problema da vida contemporânea. Estabeleceu-se um regime de existência no qual tudo deve ser transformado em produto, em mercadoria, inclusive os textos, as ideias, os pensamentos. Marx havia antecipado isso muito bem: tudo pode ser medido segundo seu valor monetário.

Você é um dos poucos filósofos que defende o que você mesmo chama “a ideia comunista”. Como é possível defender a ideia comunista quando seu conteúdo histórico foi desastroso.

Penso que o conteúdo histórico das ideias sempre pode ser declarado desastroso. Os democratas nos falam da democracia, mas se olhamos de perto a história das democracias, ela está cheia de desastres. Para tomar o exemplo mais elementar, se tomamos a Primeira Guerra Mundial, ela foi lançada por democratas, democratas alemães, ingleses e franceses. Foi um massacre inimaginável, o qual já se demonstrou esteve ligado a apetites financeiros nas colônias africanas, apetites que não diziam respeito aqueles que seriam massacrados mais tarde. Houve milhões de mortos e de sacrificados em condições espantosas e, aceite-se ou não, isso é parte da história das democracias. Se interrogamos o conjunto das experiências históricas veremos que todo o mundo tem sangue até as orelhas.

No que se refere à palavra “comunista” em si, da mesma maneira que ocorre com a palavra “democracia”, sempre se pode argumentar que ambas tem sangue até as orelhas. Mas, por acaso, é preciso sempre inventar outra palavra? Tomemos, por exemplo, o cristianismo. O cristianismo é São Francisco de Assis, a santidade verdadeira, o advento da ideia de uma verdadeira generosidade para com os pobres, a caridade, etc.,etc. Mas, do outro lado, também é a inquisição, o terror, a tortura e o suplício. Por acaso vamos dizer que é um crime alguém se chamar de cristão? Ninguém diz isso. Eu defendo uma espécie de absolvição dos vocábulos. Eles têm o sentido dado pela sequência histórica da qual falamos.

De fato, o comunismo conheceu duas sequências histórias. A sequência histórica do século XIX, quando a palavra foi inventada e propagada para designar uma esperança histórica humana fundamental, a esperança da igualdade, da emancipação das classes oprimidas, de uma organização social igualitária e coletiva. Depois há outra sequência muito diferente onde se experimentou o comunismo, ou seja, se construiu uma forma de poder particular que buscou coletivizar a indústria e essas coisas, mas que, no final, se tornou uma forma de Estado despótico.

Eu proponho que não se sacrifique a palavra “comunismo” por causa desta segunda sequência, mas sim que ela seja resgatada com base na primeira sequência, possibilitando assim a abertura de uma terceira sequência.

Nesta terceira sequência, a palavra “comunismo” significaria o que sempre significou: a ideia de uma organização social totalmente distinta da que conhecemos e que já sabemos que está dominada por uma oligarquia financeira e econômica absolutamente feroz e indiferente aos interesses gerais da humanidade. Eu proponho então voltar ao comunismo sob a forma da ideia comunista: a ideia comunista é a ideia da emancipação de toda a humanidade, é a ideia do internacionalismo, de uma organização econômica mobilizando diretamente os produtores e não as potências exteriores; é a ideia da igualdade entre os distintos componentes da humanidade, do fim do racismo e da segregação e também é a ideia do fim das fronteiras.

Não esqueçamos que as fronteiras são uma grande característica do mundo contemporâneo. O comunismo é tudo isso. Se alguém inventar uma palavra formidável para designar tudo isso, que não seja a palavra comunismo, eu aceito. Mas a história da política não é a história das palavras, mas sim a história dos novos significados que podem ter as palavras. Em geral se opõe a palavra “democracia” à palavra “comunismo”. Eu digo que uma palavra não é mais inocente do que a outra. Não lutemos pela inocência das palavras. Discutamos sobre o que significam e o que significa aquilo que eu digo.

Agora chegamos a Marx, ou melhor dizendo, aos dois Marx: o Marx marxista e o Marx de antes do marxismo. Qual dos dois você reivindica?

Marx e marxismo têm significados muito distintos. Marx pode significar a tentativa de uma análise científica da história humana com base nos conceitos fundamentais de classe e de luta de classe, e também a ideia de que a base das diferentes formas que a organização da humanidade adquiriu no curso da história é a organização da economia. Nesta parte da obra de Marx há coisas muito interessantes como, por exemplo, a crítica da economia política. Mas também há outro Marx que é um Marx filósofo, que vem depois de Engels e que tenta mostrar que a lei das coisas deve ser buscada nas contradições principais que podem ser percebidas dentro das coisas. É o pensamento dialético, o materialismo dialético. No concreto, há uma base material de todo pensamento e este se desenvolve através de sistemas de contradição, de negação. Este é o segundo Marx. Mas também há um terceiro Marx que é o militante político. É um Marx que, em nome da ideia comunista, indica o que fazer: é o Marx fundador da Primeira Internacional, é o Marx que escreve textos admiráveis sobre a Comuna de Paris ou sobre a luta de classes na França.

Há pelo menos três Marx e o que mais me interessa, reconhecendo o mérito imenso de todos eles, é o Marx que tenta ligar a ideia comunista em sua pureza ideológica e filosófica às circunstâncias concretas. É o Marx que se pergunta pelo caminho para organizar as pessoas politicamente na direção da ideia comunista. Há ideias fundamentais que foram experimentadas e que ainda permanecem e, em cujo centro, encontramos a convicção segundo a qual nada ocorrerá enquanto uma fração significativa dos intelectuais não aceite estar organicamente ligada às grandes massas populares. Esse ponto está totalmente ausente hoje em várias regiões do mundo. Em maio de 68 e nos anos 70, este ponto foi abandonado. Hoje pagamos o preço desse abandono que significou a vitória completa e provisória do capitalismo mais brutal.

A vida concreta de Marx e Engels consistiu em participar nas manifestações na Alemanha e em tentar criar uma Internacional. E o que era a Internacional? A aliança dos intelectuais com os operários. É sempre por aí que se começa. Eu chamo então a que comecemos de novo: por um lado com a ideia comunista e, por outro, com um processo de organização sob esta ideia que, evidentemente, levará em conta o conjunto do balanço histórico, mas que, em certo sentido, terá que começar de novo.

Caído, derrotado no abismo ou simplesmente ferido? Na sua avaliação, em que fase se encontra o capitalismo: em seu ocaso, como acreditam alguns, ou somente vivendo um recesso devido a suas enormes contradições internas?

O capitalismo é um sistema de roubo planetário exacerbado. Pode-se dizer que o capitalismo é uma ordem democrática e pacífica, mas é um regime de depredadores, é um regime de banditismo universal. E digo banditismo de maneira objetiva: chamo bandido a qualquer um que considere que a única lei de sua atividade é seu próprio proveito. Mas um sistema como este que, por um lado, tem a capacidade de se estender e, por outro, de deslocar seu centro de gravidade é um sistema que está longe de estar moribundo.

Não é o caso de acreditar que, pelo fato de estarmos em uma crise sistêmica, nos encontramos à beira do colapso do capitalismo mundializado. Acreditar nisso seria ver as coisas através da pequena janela da Europa. Creio que há dois fenômenos que estão entrelaçados. O primeiro é a derrocada da segunda etapa da experiência comunista, a falência dos Estados socialistas. Essa falência abriu uma enorme brecha para o outro termo da contradição planetária que é o capitalismo mundializado. Mas também abriu novos espaços de tensões materiais. O desenvolvimento capitalista de países do porte da China e da Índia, assim como a recapitalização da ex-União Soviética tem o mesmo papel que o colonialismo no século XIX. Abriu espaços gigantes de manobra, de clientela de novos mercados.

Estamos vivendo agora esse fenômeno: a mundialização do capitalismo que se fez potente e se multiplicou pelo enfraquecimento de seu adversário histórico do período precedente. Esse fenômeno faz com que, pela primeira vez na história da humanidade, se possa falar realmente de um mercado mundial. Esse é um primeiro fenômeno. O segundo é o deslocamento do centro de gravidade. Estou convencido de que as antigas figuras imperiais, a velha Europa, por exemplo, a qual apesar de sua arrogância tem uma quantidade considerável de crimes que ainda aguardam perdão, e os Estados Unidos, apesar do fato de ainda ocupar um lugar muito importante, são na verdade entidades capitalistas progressivamente decadentes e até um pouco crepusculares. Na Ásia, na América Latina, com a dinâmica brasileira, e inclusive em algumas regiões do Oriente Médio, vemos aparecer novas potências. O sistema da expansão capitalista chegou a uma escala mundial, mas o sistema das contradições internas do capitalismo modifica sua geopolítica. As crises sistêmicas do capitalismo – hoje estamos em uma grave crise sistêmica – não têm o mesmo impacto segundo a região. Temos assim um sistema expansivo com dificuldades internas.

Mas esses novos polos se desenvolvem segundo o mesmo modelo.
Sim, e não creio que esses novos polos introduzam uma diferenciação qualitativa. É um deslocamento interno ao sistema que dá a ele margem de manobra.

Há duas versões de um de seus livros mais importantes: trata-se do Manifesto para a Filosofia. O primeiro Manifesto foi publicado há vinte anos, o segundo há dois. Se levamos em conta as revoluções árabes e as crises do sistema financeiro internacional, o que mudou fundamentalmente no mundo e no ser humano entre os dois manifestos?

O que mudou mais profundamente é a divisão subjetiva. As escolhas fundamentais às quais estiveram confrontados os indivíduos durante o primeiro período estavam ainda dominadas pela ideia da alternativa entre orientação revolucionária e democracia e economia de mercado. Dito de outro modo, estávamos na constituição do debate entre totalitarismo e democracia. Isso exige dizer que todo o mundo estava sob o influxo do balanço da experiência histórica do século XX. O primeiro Manifesto foi publicado em 1989, quase ao final do século XX. Em escala mundial, esta discussão, que adquiriu formas distintas segundo os lugares, se focalizou em qual poderia ser o balanço deste século XX. Por acaso, temos que condenar definitivamente as experiências revolucionárias? É preciso abandoná-las porque foram despóticas, violentas? Neste sentido, a pergunta era: devemos ou não nos unir à corrente democrática e entrar na aceitação do capitalismo como um mal menor?

A eficácia do sistema não consistiu em dizer que o capitalismo era magnífico, mas sim que era o mal menor. Na verdade, tirando um punhado de pessoas ninguém pensa que o capitalismo é magnífico. Mas o que se disse nesse período foi que a alternativa era desastrosa. Há 20 anos estávamos neste contexto, ou seja, a reativação da filosofia inspirada pela moral de Kant. Ou seja, não é o caso de ter grandes ideias de transformação política voluntaristas porque isso conduz ao terror e ao crime, mas sim velar por uma democracia pacificada dentro da qual os direitos humanos estarão protegidos. Hoje esta discussão está terminada e está terminada porque todo mundo vê que o preço pago por essa democracia pacificada é muito elevado. Todo mundo toma consciência que se trata de um mundo violento, com outras violências, que a guerra segue rondando todo o tempo, que as catástrofes ecológicas e econômicas estão na ordem do dia e que, além disso, ninguém sabe para onde vamos.

Podemos imaginar que esta ferocidade da concorrência e esta constante submissão à economia de mercado durem ainda vários séculos? Todo mundo sente que não, que se trata de um sistema patológico. Foi revelado que este sistema, que nos foi apresentado como um sistema moderado, sem dúvida em nada formidável, mas melhor que todos os demais, é um sistema patológico e extremamente perigoso. Essa é a novidade. Não podemos mais ter confiança no futuro desta visão das coisas. Estamos em uma fase de transição e incerteza. Introduziu-se a hipótese de uma espécie de humanismo renovado que poderíamos chamar de humanismo de mercado, o mercado, mas humano. Creio que essa figura, que segue vigente graças aos políticos e aos meios de comunicação, está morta. É como a União Soviética: estava morta antes de morrer. Creio que, em condições diferentes e em um universo de guerra, de catástrofes, de competição e de crise, esta ideia do capitalismo com rosto humano e da democracia moderada está morta. Agora será preciso não mais escolher entre duas visões constituídas, mas sim inventar uma.

Dessa ambivalência provém talvez a sensação de que as jovens gerações estão perdidas, sem confiança em nada?

Isso é o que sinto na juventude de hoje. Sinto que a juventude está completamente imersa no mundo tal como é, não tem ideia de outra alternativa, mas, ao mesmo tempo, está perdendo confiança neste mundo, está vendo que, na verdade, este mundo não tem futuro, carece de toda significação para o futuro. Creio que estamos em um período onde as propostas de ideias novas estão na ordem do dia, mesmo que uma boa parte da opinião não saiba disso. E não sabe porque ainda não chegamos ao final deste esgotamento interno da promessa democrática. É o que eu chamo de período intervalo: sabemos que as velhas escolhas estão acabadas, mas não sabemos ainda muito bem quais são as novas escolhas.

Vários filósofos apontam o fato de que os valores capitalistas destruíram a dimensão humana. Você acredita, ao contrário, que ainda persiste uma potência altruísta no ser humano.

Devemos olhar o que ocorreu nas manifestações dos países árabes. Nunca acreditei que essas manifestações iam inventar um novo mundo de um dia para o outro, nem pensei que essas revoltas apresentavam soluções novas para os problemas planetários. Mas o que me assombrou foi a reaparição da generosidade do movimento de passa, quer dizer, a possibilidade de agir, de sair, de protestar, de pronunciar-se independentemente do limite dos interesses imediatos e fazê-lo junto a pessoas que, sabemos, não compartilham nossos interesses. Aí encontramos a generosidade da ação, a generosidade do movimento de massa, temos a prova de que esse movimento ainda é capaz de reaparecer e reconstituir-se. Com todos os seus limites, também temos um exemplo semelhante com o movimento dos indignados.

O que fica evidente em tudo isso é que estão aí em nome de uma série de princípios, de ideias, de representações. Esse processo, obviamente, será longo. O movimento da primavera árabe me parece mais interessante que o dos indignados porque tem objetivos precisos, ou seja, a desaparição de um regime autocrático e o tema fundamental que é o horror diante da corrupção. A luta contra a corrupção é um problema capital do mundo contemporâneo. Nos indignados vimos a nostalgia do velho Estado providência. Mas volto a reiterar que o interessante em tudo isso é a capacidade de fazer algo em nome de uma ideia, mesmo que essa ideia tenha acentos nostálgicos. O que me interessa saber é se ainda temos a capacidade histórica de agir no regime da ideia e não simplesmente segundo o regime da concorrência ou da conservação. Isso para mim é fundamental. A reaparição de uma subjetividade dissidente, seja quais forem suas formas e suas referências, isso me parece muito importante.

Você publicou um livro sobre o amor, que é de uma sabedoria comovedora. Para um filósofo comprometido com a ação política e cujo pensamento integra as matemáticas, a aparição do tema do amor é pouco comum.

O amor é um tema essencial, uma experiência total. O amor está ameaçado pela sociedade contemporânea. O amor é um gesto muito forte porque significa que é preciso aceitar que a existência de outra pessoa se converta em nossa preocupação. No amor, o fundamental está em que nos aproximamos do outro com a condição de aceita-lo em minha existência de forma completa, inteira. Isso é o que diferencia o amor do interesse sexual. Este se fixa sobre o que os psicanalistas chamaram de “objetos parciais”, ou seja, eu extraio do outro alguns emblemas fetiches que me interessam e que suscitam minha excitação desejante. Não nego a sexualidade, pelo contrário. Ela é um componente do amor. Mas o amor não é isso. O amor é quando estou em estado de amar, de estar satisfeito e de sofrer e de esperar tudo o que vem do outro: a maneira como viaja, sua ausência, sua chegada, sua presença, o calor de seu corpo, minhas conversas com ele, os gostos compartilhados. Pouco a pouco, a totalidade do que o outro é torna-se um componente de minha própria existência. Isso é muito mais radical que a vaga ideia de preocupar-me com o outro. É o outro com a totalidade infinita que representa e com o qual me relaciono em um movimento subjetivo extraordinariamente profundo.

Em que sentido o amor está ameaçado pelos valores contemporâneos?

Está ameaçado porque o amor é gratuito e, desde o ponto de vista do materialismo democrático, injustificado. Por que deveria me expor ao sofrimento da aceitação da totalidade do outro? O melhor seria extrair dele o que melhor corresponde aos meus interesses imediatos e aos meus gostos e descartar o resto. O amor está ameaçado hoje porque é distribuído em fatias. Observemos como se organizam as relações nestes portais de internet onde as pessoas entram em contato: o outro já vem fatiado em fatias, um pouco como a vaca nos açougues. Seus gostos, seus interesses, a cor dos olhos, o corte dos cabelos, se é grande ou pequeno, loiro ou moreno. Vamos ter uns 40 critérios e, ao final, vamos nos dizer: vou comprar este. É exatamente o contrário do amor. O amor é justamente quando, em certo sentido, não tenho a menor ideia do que estou comprando.

E frente a essa modalidade competitiva das relações, você proclama que o amor deve ser reinventado para nos defendermos, que o amor deve reafirmar seu valor de ruptura e de loucura.

O amor deve reafirmar o fato de que está em ruptura com o conjunto das leis ordinárias do mundo contemporâneo. O amor deve ser reinventado como valor universal, como relação em direção da alteridade, daquilo que não sou eu e onde a generosidade é obrigatória. Se não aceito a generosidade, tampouco aceito o amor. Há uma generosidade amorosa que é inevitável. Sou obrigado a ir na direção do outro para que a aceitação do outro em sua totalidade possa funcionar. Essa é uma excelente escola para romper com o mundo tal como é. Minha ideia sobre a reinvenção do amor quer dizer o seguinte: uma vez que o amor se refere a essa parte da humanidade que não está entregue à competição, à selvageria; uma vez que, em sua intimidade mais poderosa, o amor exige uma espécie de confiança absoluta no outro; uma vez que vamos aceitar que este outro esteja totalmente presente em nossa própria vida, que nossa vida esteja ligada de maneira interna a esse outro, pois bem, já que tudo descrito acima é possível isso prova que não é verdade que a competitividade, o ódio, a violência, a rivalidade e a separação sejam a lei do mundo.

A política não está muito afastada de tudo isso. Para você, há uma dimensão do amor na ação política?

Sim, inclusive pode resultar perigoso. Se buscamos uma analogia política do amor eu diria que, assim como no amor onde a relação com uma pessoa tem que constituir sua totalidade existencial como um componente de minha própria existência, na política autêntica é preciso que haja uma representação inteira da humanidade. Na política verdadeira, que também é um componente da vida verdadeira, há necessariamente essa preocupação, essa convicção segundo a qual estou ali enquanto representante e agente de toda a humanidade. Do mesmo modo que ocorre no amor, onde minha preocupação, minha proposta e minha atividade estão ligadas à existência do outro em sua totalidade.

O que pode fazer um casal jovem e enamorado neste mundo violento, competitivo, onde o projeto do casal já está ameaçado pela própria dinâmica do consumo e da competição?

Creio que o projeto de um casal pode ser uma rama se não se dissolve, se não se metamorfoseia em um projeto que acabe se transformando, no fundo, na acumulação de interesses particulares. Na situação de crise e de desorientação atual o mais importante é segurar as mãos no timão da experiência pela qual estamos passando, seja no amor, na arte, na organização coletiva, no combate político. Hoje, o mais importante é a fidelidade: em um ponto, ainda que seja em apenas um, é preciso não ceder. E para não ceder devemos ser fieis ao que ocorreu, ao acontecimento. No amor, é preciso ser fiel ao encontro com o outro porque vamos criar um mundo a partir desse encontro. Claro, o mundo exerce uma pressão contrária e nos diz: “cuidado, defenda-se, não deixe que o outro abuse de ti”. Com isso está dizendo: “voltem ao comércio ordinário”.

Então, como essa pressão é muito forte, o fato de manter o timão no rumo certo, de manter vivo um elemento de exceção, já é extraordinário. É preciso lutar para conservar o excepcional que ocorre em nossas vidas. Depois veremos. Dessa forma salvaremos a ideia e saberemos o que é exatamente a felicidade. Não sou um asceta, não sou a favor do sacrifício. Estou convencido de que se conseguimos organizar uma reunião com trabalhadores e colocamos em marcha uma dinâmica, se conseguimos superar uma dificuldade no amor e nos reencontramos com a pessoa que amamos, se fazemos uma descoberta científica, então começamos a compreender o que é a felicidade. A felicidade é uma ideia fundamental. A construção amorosa é a aceitação conjunta de um sistema de riscos e de invenções.

Você também introduz uma ideia peculiar e maravilhosa: devemos fazer tudo para preservar o que nos ocorre de excepcional.

Aí está o sentido completo da vida verdadeira. Uma vida verdadeira se configura quando aceitamos os presentes perigosos que a vida nos oferece. A existência nos traz riscos, mas, na maioria das vezes, estamos mais espantados que felizes por esses presentes. Creio que aceitar isso que nos ocorre e que parece raro, estranho, imprevisível, excepcional, que seja o encontro com uma mulher ou o maio de 1968, aceitar isso e suas consequências, isso é a vida, a verdadeira vida.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

Extraído de Carta Maior