sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Em busca de uma lógica Kadhafiana


Em busca de uma lógica Kadhafiana

por Silvia Ferabolli
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04/11/2011

Considera-se um “sofisma” o emprego de argumentos falsos com aparência de verdadeiros. Um erro de pensamento, já que chega-se a uma conclusão válida baseada em premissas falsas. Entre os complexos mecanismos de construção de um sofisma pode-se destacar o “sofisma de implicação”, segundo o qual a autoridade de determinada fonte implica na veracidade de um enunciado. Também conhecido como “transferência de credibilidade”, tais sofismas são amplamente utilizados por veículos consagrados da mídia, especialistas e políticos que, a despeito de sua real credibilidade e competência, quase sempre enveredam pelo caminho da argumentação falaciosa – produzindo aquilo que Noam Chomsky iria chamar de manufacture of consent. Desde o início da “guerra ao terror”, tornou-se um habito trabalhar com conjuntos de sofismas que visam legitimar ações cada vez menos justificáveis em termos éticos e políticos. O problema das “armas de destruição em massa” nas mãos de um “tirano sanguinário” que representava uma “ameaça a paz mundial” foi a justificativa usada pelos norte-americanos para invadirem o Iraque e abortar o projeto em curso da construção do Estado-nação iraquiano. A remoção de Mouammar Kadhafi do poder na Libia, por outro lado, sustentou-se na justificativa de que essa era mais uma das conquistas da primavera árabe.

Contudo, o processo de derrubada do regime de Kadhafi custou a morte de centenas de pessoas, pois os tímidos levantes iniciais vistos por todo o país foram se radicalizando na medida em que eram influenciados pelo apoio da OTAN. O assassinato brutal de Kadhafi pelo Conselho Nacional de Transição (CNT) – devidamente apoiado pela OTAN – faz pensar que a inocência original de uma primavera libertária, criativa e laica, tenha encontrado o seu fim na Libia. A morte de Mohamed Bouazizi desencadeou um ciclo revolucionário que, pensava-se, colocaria um fim tanto nos regimes decrépitos da região quanto nas diversas formas de ingerência externa que o mundo árabe enfrenta desde o século XIX. A morte de Kadhafi parece ter posto um fim em tais utopias necessárias, inaugurando um novo capítulo de incertezas em relação à estabilidade política da região. O ódio a Kadhafi era uma das poucas coisas em comum que unia grupos rebeldes instalados sob o guarda-chuva do CNT e poucas ilusões existem de que haverá uma legitimação democrática dos nomes que no momento representam o poder no país. Tal poder busca, com a leniência internacional, descartar a história do homem cuja trajetória política se confunde com a do país que governou por mais de quarenta anos.

Kadhafi ascendeu ao poder na Libia com o golpe militar que depôs o rei Idris, em 1969. Nascido em uma tenda beduína, membro do clã semi-nômade al-Gadafa da costa central da Libia, Kadhafi tinha 14 anos quando Nasser nacionalizou o canal de Suez e, desde então, o pan-arabismo nasserista o acompanhou por muito tempo, fazendo-o acreditar nos ideais da nahda (renascimento) e da wahda (unidade) árabes. Nasser, enquanto um ídolo trágico, condenaria o jovem coronel a permanecer em sua sombra. Após a morte do presidente egípcio, em 1970, Kadhafi tentou se autoproclamar o novo líder pan-Árabe. Contudo, nem a Libia tinha os recursos de poder bruto de que dispunha o Egito na época e muito menos era Kadhafi um líder carismático do porte de Gamal Abdel Al-Nasser. Tendo suas ambições pan-árabes frustradas, Kadhafi focou suas energias em assuntos domésticos. Ainda nos anos 1970, assumiu o controle sobre a indústria petrolífera do país e passou a empregar parte significativa da renda do petróleo na melhoria do padrão da vida do povo líbio, um dos mais pobres do mundo na época.

De posse de seu “livro verde”, uma confusa compilação de seus pensamentos, mesclados com um socialismo utópico, Kadhafi fez da Líbia o laboratório ideal de suas reflexões político-existenciais. Desacreditando em partidos políticos, ele impôs, a partir de 1977, a ideia de um governo sem governo, comandado por um congresso geral composto por centenas de congressos locais: uma forma de governo baseada na democracia direta, com base em conselhos locais e comunas, também chamadas de Congressos Populares de Base. Tais instâncias dispensariam os intermediários na relação entre o povo e o Estado, oferecendo uma alternativa aos sistemas comunista e capitalista da época. De fato, o libyan way não passava de uma forma elegante de impor uma ditadura capitaneada por Kadhafi e um círculo restrito de homens de confiança em torno do líder.

Mantendo-se alinhado à filosofia que guiava suas ações em termos de política externa – uma mistura de pan-arabismo, anti-imperialismo e radicalismo islâmico – Kadhafi passou a alardear sua intenção de armar e treinar revolucionários para derrubar os governos da Tunísia, Egito e Argélia – se a unidade árabe não pudesse ser conseguida por meios pacíficos, então a utopia seria realizada pela força. O Egito, governado pelo moderado Anwar Sadat, foi aos poucos se tornando inimigo mortal da Líbia, culminando em uma curta guerra de dois meses entre os dois países e cuja intervenção de Yasser Arafat foi decisiva para o fim das hostilidades entre os irmãos árabes. Nessa época, o sangue de Kadhafi fervia pela revolução e ele se tornou um grande patrocinador de grupos políticos, com a recém-criada OLP, e também se utilizava dos serviços de terroristas famosos da época tal como Carlos o Chacal e Abu Nidal – esse último, membro de uma facção radical palestina, iria em 27 de dezembro de 1985 metralhar centenas de passageiros nos aeroportos de Roma e Viena. Dezenove pessoas foram mortas, cinco delas norte-americanas.

Logicamente, o comportamento político de Kadhafi fez dele um inimigo natural dos Estados Unidos. Em 1981, a Sexta Frota americana abateu dois caças líbios sobre o Golfo de Sirte, o primeiro de uma série de confrontos entre os Estados Unidos e os Estados árabes (desunidos) e que culminaria com a ocupação propriamente dita do Iraque em 2003. Em 1986, o presidente Ronald Reagan mandou bombardear alvos em Trípoli e Benghazi, objetivando claramente o assassinato daquele a quem batizou de “o cachorro louco do Oriente Médio”. Em 1988, entretanto, Kadhafi decidiu emular o presidente soviético Mikail Gorbachev iniciando um perestroika pessoal que o conduziria ao terceiro e último momento de sua trajetória. Kadhafi se deu conta de que os anos em que havia confrontado diretamente os Estados Unidos estavam cobrando um preço bastante elevado. Igualmente, o socialismo pueril que havia tentado implementar, baseado em seu “livro verde” levou a Líbia a tamanha escassez de produtos básicos que até sabonetes e pilhas tinham que ser obtidos no mercado negro. Entretanto, nesse mesmo ano Kadhafi foi acusado de ordenar o atentado contra um jumbo da PanAm que explodiu sobre a localidade escocesa de Lockerbie, matando mais de duas centenas de passageiros, a maioria norte-americanos. Tal evento colocou em xeque a nova estratégia do coronel cuja imagem de patrocinador do terrorismo internacional se fortaleceu com tal episódio. Pressionado pela Grã-Bretanha e pelos Estados Unidos, os quais exigiam que Kadhafi entregasse para julgamento os dois principais suspeitos pelo atentado contra a PanAm, Abdelbaset al-Megrahi e Al-Amin Khalifa Fahima, membros do serviço de inteligência líbio, Kadafi se viu emparedado politicamente, já que entregar os suspeitos seria uma traição à Líbia e àqueles que os tinham como heróis nacionais. Por outro lado, o não cumprimento dessas exigências aumentaria o embargo imposto pela ONU, prejudicando os seus esforços para levantar a economia Líbia que estava em uma difícil situação. Além disso, havia uma grande insatisfação popular que motivou uma série de rebeliões pelo país, bem como uma tentativa de assassinato, em 1993, da qual Kadhafi escapou por muito pouco. Seria somente em 1999, após longas discussões sobre termos e condições, que Kadhafi entregaria os dois suspeitos para serem julgados na Holanda e, posteriormente, indenizaria as famílias das vitimas. O cumprimento de tais demandas (entrega dos suspeitos para julgamento internacional e pagamento de bilhões de dólares em indenizações) garantiu o levantamento de praticamente todas as sanções econômicas que a Libia enfrentava. Firme em sua marcha em direção ao estabelecimento e solidificação de boas relações com o ocidente, Kadhafi abriu seus poços de petróleo para a exploração de empresas ocidentais em 2006. Comenta-se que, no ano seguinte, Kadhafi financiaria em grande parte a campanha de Nicolas Sarkozy para presidente, fato negado veementemente pelo atual presidente francês.

Na verdade, na primeira década do terceiro milênio, principalmente após o surgimento de novos e assustadores vilões tais como Osama Bin Laden, Kadhafi parecia um velho bicho papão que já não assustava mais ninguém. Ao contrário, suas roupas de um colorido berrante o faziam cada vez mais uma figura folclórica como aquele parente excêntrico que rouba a atenção nos eventos de família, mas que todos julgam inofensivo e até simpático. Durante esse período, ele desfrutou de uma inédita aceitação entre os principais líderes mundiais, tais como Barack Obama, Sarkozy e Berlusconi. Em um de seus últimos e grandiosos momentos, em 2009, Kadhafi visitou Roma e em seguida o premiê italiano Silvio Berlusconi também foi a Trípoli, em visita oficial. O governo líbio, que já era acionista da montadora italiana Fiat e do banco Unicredit, assinou uma série de acordos comerciais com a Itália. Os dois líderes também declararam o fim das mágoas relativas à ocupação colonial da Itália na Líbia (1911-1943).

Entretanto, a posição de Kadhafi nunca esteve tão tranquila quanto o aperto de mãos e os sorrisos franceses, americanos e italianos poderia lhe fazer supor. Os bons ventos duraram até o início da primavera árabe quando as revoltas que varreram parte do mundo árabe também chegaram á Libia. Os tímidos protestos iniciais que pareciam a Kadhafi fácil de conter, logo viraram uma guerra civil, especialmente após aviões franceses começarem a bombardear o território líbio. Imediatamente, os mesmos líderes que há pouco apertavam a mão de Kadhafi, começaram a apoiar os rebeldes contra o regime “desumano e sanguinário” do “ditador”. Não demorou muito para que a OTAN entrasse no jogo e o resultado final todos sabem qual foi: mais um governante árabe exposto ao ridículo e ao escárnio em capas de jornais, revistas e imagens televisivas repetidas ad nauseam e que nada mais fazem do que aumentar a sensação de vulnerabilidade dos povos da região. Infelizmente, a autonomia na região irá depender da manipulação de agentes externos que continuarão a fabricar bandidos e mocinhos de acordo com as suas conveniências. É justo lembrar que na Arábia Saudita também eclodiram revoltas, contudo, tais eventos misteriosamente sumiram dos noticiários internacionais e apenas um bom entendimento do conceito de poder associado à ideologia hegemônica de Gramsci pode explicar o porquê da lógica de apoiar revoltas populares em um país e não no outro – de derrubar alguns ditadores e manter outros de pé.

Na verdade, Kadhafi é hoje retratado no discurso de líderes políticos ocidentais e na imprensa mundial como um ditador sanguinário que durante as décadas de seu governo nada mais fez do que imaginar maldades e atrocidades contra seu povo. Fazendo uso da proposta de Jutta Weldes de buscar relações entre a cultura popular, a ficção científica e a politica mundial, pode-se lembrar outro personagem político que recebeu a mesma alcunha alguns séculos atrás: Vlad III, Príncipe da Valáquia (1431-1476) ou, simplesmente, Drácula. O catálogo de horrores atribuídos a Drácula, e que inspiraram o clássico de Bram Stoker, não fez dele um político muito pior do que os de seu tempo, pois a priori ele estava governando de acordo com os padrões de sua época, a Renascença, sempre marcada por extraordinária desumanidade. Como bem lembram McNally & Florescu em In Search of Dracula: The History of Dracula and Vampires (1995): “A era de Drácula foi a do rei aranha Luís XI; Ludovico Sforza o Mouro; o papa Bórgia, Alexandre VI; seu filho César; e Sigismundo Malatesta”. Todos governantes brutais que nada deixavam a desejar no quesito crueldade. A era de Kadhafi foi a de George W. Bush, Pol Pot e Slobodan Milosevic. Uma era de extremos marcada por genocídios, violações de direitos humanos, ocupação e destruição de países. Por fim, é preciso ressaltar que no folclore romeno, Drácula não é definido como um governante louco e tirano. Na verdade, os camponeses tinham orgulho dos feitos militares de seu líder e muitos, ainda hoje, estufam o peito ao dizerem-se descendentes de soldados que lutaram no exército de Drácula. Sabe-se que, na Libia de hoje, muitos ainda choram a morte de Kadhafi e temem pelo futuro que os espera sem a outrora onipresente figura do seu “líder da revolução”.

O Coronel Kadhafi foi, sem dúvida, um ator político controverso, amado e odiado por muitos. Sua morte se constituiu em uma traição do ocidente àquele que mais se empenhou em agradá-lo nos últimos anos, mostrando que as motivações internacionais são sempre obscuras e muito mais complexas do que o discurso oficial deixa transparecer. Existem interesses políticos e econômicos na Líbia que justificaram esse imenso esforço de guerra. Resta saber como será a relação entre o CNT e o povo líbio daqui por diante. Contudo, um governo que inicia com um parricídio festejado e legitimado pelas instâncias que o deveriam condenar, pouca coisa pode oferecer de bom. Espero, sinceramente, estar enganada.

* Sílvia Ferabolli
é Doutoranda em Política Internacional pela Universidade de Londres, Reino Unido (silviaferabolli@terra.com.br).

Recebido de Mundorama



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