segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Como desligar e viver

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Incapacidade de "desligar" encurta fins de semana


Por Paula Torres de Carvalho

Estudo
28.11.2010 - 20:45


Os fins de semana acabam por ser muito mais curtos do que o previsto, pela incapacidade de grande maioria das pessoas “desligar” dos compromissos de trabalho, revela um inquérito britânico.

Realizado por uma cadeia de hotéis inglesa junto de um universo de 4000 trabalhadores com idades compreendidas entre os 18 e os 60 anos, este estudo conclui que seis em dez empregados interrompem o fim de semana para realizar alguma tarefa relacionada com o emprego, como ler os emails ou mesmo algum trabalho. Um quarto dos inquiridos revelou que tinha este comportamento, em consequência de pressões por parte do chefe ou porque os colegas também o faziam.

Para a maioria das pessoas, revela o estudo, o fim de semana não tem início na sexta-feira à noite porque só a partir das 12h38 de sábado é que conseguem “desligar-se” do ritmo de trabalho. A ansiedade regressa às 15h55 do dia seguinte, domingo, o que impossibilita que os trabalhadores gozem o fim de semana até ao fim. Contas feitas, acabam por aproveitar apenas 27 horas e 17 minutos ao longo do sábado e do domingo, menos de metade do tempo em que estão fora do emprego, conclui o mesmo inquérito.

Metade das pessoas que respondeu ao inquérito britânico salientou que o trabalho acaba por prejudicar o tempo passado em família e mais de metade afirmaram que as tarefas domésticas os deixavam demasiado cansados para aproveitar o fim de semana de forma mais descontraída.

Extraído de Publico.pt

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Questões cruciais do século 21 - Eric Hobsbawm

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Historiador Eric Hobsbawm aponta questões cruciais do século 21

da New Left Review
in Folha.com – Ilustrada - 18/04/2010 - 07h00


Aos 92 anos, o historiador britânico Eric Hobsbawm continua um feroz crítico da prevalência do modelo político-econômico dos EUA. Para ele, o presidente americano Barack Obama, ao lidar com as consequências da crise econômica, desperdiçou a chance de construir maneiras mais eficazes de superá-la.

"Podemos desejar sucesso a Obama, mas acho que as perspectivas não são tremendamente encorajadoras", diz, na entrevista abaixo. "A tentativa dos EUA de exercer a hegemonia global vem fracassando de modo muito visível."

Hobsbawm discute ainda questões globais contemporâneas -como as tentativas de criar Estados supranacionais, a xenofobia e o crescimento econômico chinês- à luz do que expressou em livros como "Era dos Extremos" e "Tempos Interessantes" (ambos publicados pela Cia. das Letras).

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Pergunta - "Era dos Extremos" termina em 1991, com um panorama de avalanche global --o colapso das esperanças de avanços sociais globais da era de ouro [segundo Hobsbawm, 1949-73]. Quais são as mudanças mais importantes desde então na história mundial?

Eric Hobsbawm - Vejo quatro mudanças principais. Primeiro, o deslocamento do centro econômico do mundo do Atlântico Norte para o sul e o leste da Ásia. Isso já estava começando no Japão nas décadas de 1970 e 80, mas a ascensão da China desde os anos 1990 vem fazendo uma diferença real.

Em segundo lugar, é claro, a crise mundial do capitalismo, que vínhamos prevendo, mas que, mesmo assim, levou muito tempo para ocorrer. Em terceiro, a derrota retumbante da tentativa dos EUA de exercer a hegemonia global solo a partir de 2001 --e essa tentativa vem fracassando de modo muito visível.

Em quarto lugar, a emergência de um novo bloco de países em desenvolvimento, como entidade política --os Brics [Brasil, Rússia, Índia e China]--, não tinha acontecido quando escrevi "Era dos Extremos". E, em quinto lugar, a erosão e o enfraquecimento sistemático da autoridade dos Estados: dos Estados nacionais no interior de seus territórios e, em grandes regiões do mundo, de qualquer tipo de autoridade de Estado efetiva. Isso pode ter sido previsível, mas se acelerou em um grau que eu não teria previsto.

Pergunta - O que mais o surpreendeu desde então?

Hobsbawm - Nunca deixo de me espantar com a pura e simples insensatez do projeto neoconservador, que não apenas fez de conta que a América fosse o futuro, mas chegou a pensar que tivesse formulado uma estratégia e uma tática para alcançar esse objetivo. Pelo que consigo enxergar, eles não tinham uma estratégia coerente, em termos racionais.

Em segundo lugar --fato muito menor, mas significativo--, o ressurgimento da pirataria, algo que já tínhamos em grande medida esquecido; isso é novo. E a terceira coisa, que é ainda mais local: a derrocada do Partido Comunista da Índia (Marxista) em Bengala Ocidental [no leste da Índia], algo que eu realmente não teria previsto.

Prakash Karat, seu secretário-geral, disse-me recentemente que o partido se sentiu sitiado e assediado em Bengala Ocidental. E está prevendo sair-se muito mal diante deste novo Congresso nas eleições locais. Isso depois de governar por 30 anos como partido nacional, por assim dizer.

Tuca Vieira - 31.jul.2003/Folha Imagem
Historiador inglês Eric Hobsbawm
durante sua passagem pela Flip de 2003


Pergunta - O sr. visualiza qualquer recomposição política do que foi no passado a classe trabalhadora?

Hobsbawm - Não em sua forma tradicional. Marx [1818-83] acertou, sem dúvida, quando previu a formação de grandes partidos de classe em determinado estágio da industrialização. Mas esses partidos, quando foram bem-sucedidos, não operaram puramente como partidos da classe trabalhadora: se queriam estender-se para além de uma classe estreita, o faziam como partidos do povo, estruturados em torno de uma organização inventada pela classe trabalhadora e voltada a alcançar os objetivos dela.

Mesmo assim, havia limites à consciência de classe. No Reino Unido, o Partido Trabalhista nunca conquistou mais de 50% dos votos. O mesmo se aplica à Itália, onde o Partido Comunista era muito mais um partido do povo. Na França, a esquerda era baseada sobre uma classe trabalhadora relativamente fraca, mas que conseguiu se reforçar como sucessora essencial da tradição revolucionária.

O declínio da classe operária manual na indústria parece, de fato, ter atingido seu estágio terminal. Ainda restam ou vão restar muitas pessoas fazendo trabalhos manuais, e a defesa das condições de trabalho delas continua a ser uma tarefa importante de todos os governos de esquerda. Mas essa defesa não pode mais ser o alicerce principal das esperanças dessas pessoas: elas não possuem mais potencial político, nem mesmo teoricamente, porque não possuem o potencial de organização da classe operária antiga.

Houve três outras mudanças negativas importantes. Uma delas, é claro, é a xenofobia --que, para a maior parte da classe trabalhadora é, nas palavras usadas certa vez por [August] Bebel, "o socialismo dos tolos": proteja meu emprego contra pessoas que estão competindo comigo.

Em segundo lugar, boa parte da mão de obra e do trabalho nos setores que a administração pública britânica qualificava no passado como "graus menores e manipulativos" não é permanente, mas temporária: são estudantes e migrantes trabalhando com catering [fornecimento de refeições para linhas aéreas, gastronomia hospitalar e cozinhas de navios], por exemplo. Assim, não é fácil enxergá-la como tendo potencial de ser organizada.

A única parte facilmente organizável desse tipo de mão de obra é a que é empregada por autoridades públicas, e isso devido ao fato de essas autoridades serem politicamente vulneráveis.

A terceira e mais importante mudança é, a meu ver, a divisão crescente gerada por um novo critério de classe: a saber, a aprovação em exames de escolas e universidades como critério de acesso a empregos. Pode-se dizer que se trata de uma meritocracia, mas ela é medida, institucionalizada e mediada por sistemas de ensino.

O que isso fez foi desviar a consciência de classe da oposição aos patrões para a oposição a representantes de alguma elite: intelectuais, elites liberais, pessoas que se erguem como superiores a nós.

Podem existir meios novos? Não podem mais ser em termos de uma classe única, mas, na minha opinião, isso nunca foi possível. Existe uma política progressista de coalizões, mesmo coalizões relativamente permanentes como as que unem, digamos, a classe média instruída, leitora do "The Guardian", e os intelectuais --os altamente instruídos, que de modo geral tendem a posicionar-se muito mais à esquerda que outros-- e a massa dos pobres e ignorantes.

Os dois grupos são essenciais para um movimento como esse, mas hoje talvez seja mais difícil uni-los do que era antes. É possível, em certo sentido, os pobres se identificarem com os multimilionários, como acontece nos EUA, dizendo "eu só precisaria de sorte para virar popstar". Mas não é possível dizer "bastaria um pouco de sorte para eu virar ganhador do Prêmio Nobel". Isso cria um problema real quando se trata de coordenar as posições políticas de pessoas que, objetivamente falando, poderiam estar do mesmo lado.

Pergunta - Que comparações o sr. traçaria entre a crise atual e a Grande Depressão?

Hobsbawm -[A crise de] 1929 não começou com os bancos --eles só caíram dois anos mais tarde. O que aconteceu, na verdade, foi que a Bolsa de Valores [de Nova York] desencadeou uma queda na produção, com um índice muito mais alto de desemprego e um declínio real muito maior na produção do que havia ocorrido em qualquer momento até então.

A depressão atual levou mais tempo sendo preparada que a de 1929, que pegou quase todos de surpresa. Deveria ter sido claro desde cedo que o fundamentalismo neoliberal gerou uma instabilidade enorme nas operações do capitalismo. Até 2008, isso pareceu afetar apenas as áreas periféricas --a América Latina nos anos 1990 e no início da década de 2000, o Sudeste Asiático e a Rússia.

Parece-me que o verdadeiro indício de algo grave acontecendo deveria ter sido o colapso da Long-Term Capital Management [fundo de investimentos sediado nos EUA], em 1998, que provou como estava errado o modelo inteiro de crescimento. Mas o incidente não foi visto como tal. Paradoxalmente, a crise levou vários empresários e jornalistas a redescobrirem Karl Marx como alguém que tinha escrito algo interessante sobre uma economia globalizada moderna. Não teve absolutamente nada a ver com a antiga esquerda.

A economia mundial em 1929 era menos global do que é hoje. Isso exerceu algum efeito, é claro --por exemplo, teria sido muito mais fácil então para as pessoas que perderam seus empregos retornarem a suas cidadezinhas de origem.

A existência da União Soviética não exerceu efeito concreto sobre a Depressão, mas seu efeito ideológico foi enorme: significava que havia uma alternativa. Desde os anos 1990, temos assistido à ascensão da China e das economias emergentes, fato que vem realmente exercendo um efeito concreto sobre a depressão atual, na medida em que esses países vêm ajudando a manter a economia mundial muito mais equilibrada do que ela estaria sem eles.

Na verdade, mesmo na época em que o neoliberalismo estava supostamente em plena forma, o crescimento real estava ocorrendo em muito grande medida nessas economias em desenvolvimento recente --particularmente na China. Tenho certeza de que, não fosse pela China, a queda de 2008 teria sido muito mais séria.

Pergunta - E o que dizer das consequências políticas?

Hobsbawm - A Depressão de 1929 levou a um desvio avassalador para a direita, com a exceção notável da América do Norte, incluindo o México, e da Escandinávia. Na França, a Frente Popular teve apenas 0,5% mais votos em 1936 do que tinha em 1932, de modo que sua vitória assinalou uma mudança na composição das alianças políticas, e não alguma coisa mais profunda. Na Espanha, apesar da situação quase ou potencialmente revolucionária, o efeito imediato e, de fato, também o efeito de longo prazo foi um desvio para a direita.

Na maioria dos outros países, especialmente na Europa central e do leste, a política se desviou para a direita de modo muito acentuado.

O efeito da crise atual não é tão nítido. Podemos imaginar que grandes mudanças políticas devem ocorrer não apenas nos EUA ou no Ocidente, mas quase certamente na China. Mas podemos apenas especular sobre quais serão essas mudanças.

Pergunta - O sr. antevê que a China continue a resistir ao declínio?

Hobsbawm - Não há nenhuma razão em especial para prever que a China pare de crescer de uma hora para outra. A depressão causou um choque grave ao governo chinês, na medida em que paralisou muitas indústrias, temporariamente. Mas o país ainda se encontra nos estágios iniciais do desenvolvimento econômico, e há espaço enorme para expansão.

Não quero tecer especulações sobre o futuro, mas podemos imaginar que, dentro de 20 ou 30 anos, a importância relativa da China no palco mundial será maior do que é hoje --pelo menos econômica e politicamente, mas não necessariamente em termos militares. É claro que o país ainda enfrenta problemas enormes; sempre há pessoas que se perguntam se a China vai conseguir continuar unida. Mas acho que as razões reais e ideológicas para que as pessoas desejem que a China se mantenha unida continuam muito fortes.

Pergunta - Que avaliação o sr. faz da administração [do presidente dos EUA, Barack] Obama?

Hobsbawm - As pessoas ficaram tão satisfeitas com a eleição de um homem como ele, especialmente em um momento de crise, que pensaram que certamente seria um grande reformador, que faria o que Roosevelt [presidente dos EUA, 1933-45, responsável pelo New Deal, série de programas econômicos e sociais contra a Grande Depressão] fez.

Mas Obama não o fez. Ele começou mal. Se compararmos os primeiros cem dias de Roosevelt com os primeiros cem dias de Obama, o que salta à vista é a disposição de Roosevelt em aceitar assessores não oficiais, em experimentar algo novo, comparada à insistência de Obama em se conservar no centro. Acho que ele desperdiçou sua chance.

Podemos desejar sucesso a Obama, mas acho que as perspectivas não são tremendamente encorajadoras.

Pergunta - Voltando-nos ao teatro mais explosivo de conflito internacional no mundo no presente, o sr. pensa que a solução de dois Estados, conforme visualizada no momento, é uma perspectiva digna de crédito para a Palestina?

Hobsbawm - Pessoalmente, duvido que ela exista neste momento. Seja qual for a solução possível, nada vai acontecer enquanto os americanos não decidirem mudar totalmente de posição e aplicar pressão sobre Israel.

Pergunta - Existem lugares do mundo nos quais o sr. acha que projetos positivos e progressistas ainda estejam vivos ou tenham chances de ser reativados?

Hobsbawm - Na América Latina, com certeza, a política e o discurso público geral ainda são conduzidos nos velhos termos do iluminismo --liberais, socialistas, comunistas. Esses são os lugares onde se encontram militaristas que falam como socialistas --que são socialistas. Encontram-se fenômenos como [o presidente] Lula, baseado em um movimento da classe trabalhadora, e [o presidente boliviano Evo] Morales.

Para onde isso vai levar é outra questão, mas a velha linguagem ainda pode ser falada, e os velhos modos políticos ainda estão disponíveis. Não estou inteiramente certo quanto à América Central, embora existam indícios de um ligeiro "revival" da tradição da revolução no próprio México --não que isso vá muito longe, na medida em que o México já foi virtualmente integrado à economia americana.

Acho que a América Latina se beneficiou da ausência de nacionalismo étnico-linguístico e de divisões religiosas, e isso fez com que fosse muito mais fácil conservar o discurso antigo. Sempre chamou minha atenção o fato de que, até muito recentemente, não se viam sinais de política étnica. Esta apareceu entre movimentos indígenas no México e no Peru, mas não em escala remotamente comparável ao que se viu na Europa, na Ásia ou na África.

É possível que projetos progressistas possam renascer na Índia, devido à força institucional da tradição secular de Nehru [que se tornou premiê da Índia após a independência do país, em 1947]. Mas isso não parece penetrar muito entre as massas, com a exceção de algumas regiões em que os comunistas têm tido ou tiveram apoio de massa, como em Bengala e Kerala, e possivelmente alguns grupos como os naxalitas ou os maoístas no Nepal.

Além disso, o legado dos velhos movimentos trabalhistas, socialistas e comunistas na Europa continua bastante forte. Os partidos fundados sob [a influência de Friedrich] Engels ainda são, em quase toda parte na Europa, potenciais partidos governistas ou os principais partidos de oposição. Desconfio que em algum momento a herança do comunismo, por exemplo nos Bálcãs ou até mesmo em parte da Rússia, possa se manifestar de maneiras que não podemos prever.

O que vai acontecer na China eu não sei. Mas não há dúvida de que eles estão pensando em termos diferentes, não em termos maoístas ou marxistas modificados.

Pergunta - O sr. sempre foi crítico do nacionalismo como força política, avisando à esquerda que não deve pintá-lo de vermelho. Mas também se manifestou de modo contundente contra violações de soberania nacional cometidas em nome de intervenções humanitárias. Após a falência dos tipos de internacionalismo nascidos do movimento trabalhista, que tipos são desejáveis hoje?

Hobsbawm - Em primeiro lugar, o humanitarismo, o imperialismo dos direitos humanos, não tem muito a ver com internacionalismo. É indicativo ou de um imperialismo renascido, que encontra nele uma desculpa adequada para cometer violações de soberania de Estados --podem ser desculpas absolutamente sinceras--, ou então, o que é mais perigoso, é uma reafirmação da crença na superioridade permanente da região que dominou o planeta do século 16 até o final do século 20.

Afinal, os valores que o Ocidente procura impor são valores especificamente regionais, não necessariamente universais. Se fossem valores universais, teriam que ser reformulados em termos diferentes. Não creio que estejamos lidando aqui com algo que seja nacional ou internacional em si.

Mas o nacionalismo exerce um papel nisso, sim, porque a ordem nacional baseada em Estados-nações --o sistema westfaliano-- tem sido no passado, para o bem ou para o mal, uma das melhores proteções contra a chegada de elementos externos a países. Não há dúvidas de que, uma vez que ela é abolida, o caminho fica aberto para guerras agressivas e expansionistas --de fato, é por essa razão que os EUA têm criticado a ordem westfaliana.

O internacionalismo, que é a alternativa ao nacionalismo, é uma coisa espinhosa. Ou é um slogan politicamente vazio, como foi, concretamente falando, no movimento trabalhista internacional --não queria dizer nada específico--, ou é uma maneira de assegurar uniformidade para organizações centralizadas e poderosas como a Igreja Católica ou a Internacional Comunista.

O internacionalismo significava que, como católico, você acreditava nos mesmos dogmas e participava das mesmas práticas, não importa quem você fosse ou onde vivesse. O mesmo acontecia, teoricamente, com os partidos comunistas. Em que medida isso realmente aconteceu, e em que estágio deixou de acontecer --mesmo dentro da Igreja Católica--, é outra questão. Não é realmente isso o que queríamos dizer com "internacionalismo".

O Estado-nação foi e continua a ser o quadro em que são tomadas todas as decisões políticas, domésticas e externas. Até muito recentemente, as atividades dos partidos trabalhistas --na verdade, todas as atividades políticas-- eram conduzidas quase inteiramente dentro do contexto de um Estado.

Mesmo dentro da UE [União Europeia], a política ainda é articulada em termos nacionais. Em outras palavras, não existe um poder de ação supranacional --apenas Estados separados formando uma coalizão.

É possível que o islã missionário e fundamentalista constitua uma exceção a essa regra, abarcando Estados, mas isso ainda não foi demonstrado concretamente. As tentativas anteriores de criação de Superestados pan-árabes, como a tentativa entre Egito e Síria, fracassaram precisamente devido à persistência das fronteiras existentes --antes coloniais-- dos Estados.

Pergunta - Então o sr. vê obstáculos inerentes a quaisquer tentativas de extrapolar as fronteiras do Estado-nação?

Hobsbawm - Economicamente e na maioria dos outros aspectos --inclusive culturalmente, até certo ponto--, a revolução das comunicações criou um mundo genuinamente internacional, no qual há poderes de decisão que se transnacionalizam, atividades que são transnacionais e, é claro, movimentos de ideias, comunicações e pessoas que são mais facilmente transnacionais do que jamais antes.

Mesmo as culturas linguísticas hoje são suplementadas por expressões idiomáticas das comunicações internacionais. Na política, contudo, não se vê nenhum sinal de que isso esteja acontecendo, e é essa a contradição básica no momento.

Uma das razões pelas quais não vem acontecendo é que, no século 20, a política foi democratizada em grau muito grande --a massa da população comum se envolveu nela. Para essa massa, o Estado é essencial para suas operações cotidianas normais e para suas possibilidades de vida.

Tentativas de fragmentar o Estado internamente, pela descentralização, foram empreendidas, em sua maioria nos últimos 30 ou 40 anos, e algumas delas não deixaram de ter algum sucesso --na Alemanha, com certeza, a descentralização vem tendo alguma medida de sucesso, e na Itália a regionalização vem sendo benéfica.

Mas as tentativas de criar Estados supranacionais não têm funcionado. A UE é o exemplo mais óbvio disso. Ela foi prejudicada, até certo ponto, pelo fato de seus fundadores terem pensado precisamente em termos de um Superestado análogo a um Estado nacional, apenas maior --sendo que essa não era uma possibilidade, creio, e hoje com certeza não é. A UE é uma reação específica no interior da Europa.

Em um ou outro momento se viram sinais de um Estado supranacional no Oriente Médio e em outros lugares, mas a UE é o único que parece ter ido adiante. Não acredito, por exemplo, que exista muita chance de uma federação maior surgir na América do Sul. Pessoalmente, eu apostaria contra essa possibilidade.

Logo, o problema ainda não resolvido continua a ser a seguinte contradição: por um lado, há entidades e práticas transnacionais que estão em processo de esvaziar o Estado, talvez ao ponto de levá-lo ao colapso. Mas, se isso acontecer --coisa que não é uma perspectiva imediata, não em Estados desenvolvidos--, quem se encarregará da função redistributiva e de outras funções até agora empreendidas unicamente pelo Estado?

No momento, temos uma espécie de simbiose e conflito. Esse é um dos problemas básicos de qualquer tipo de política popular hoje.

Pergunta - O nacionalismo claramente foi uma das grandes forças motrizes da política no século 19 e boa parte do século 20. O que o sr. diz da situação atual?

Hobsbawm - Não há dúvida alguma de que o nacionalismo foi, em grande medida, parte do processo de formação dos Estados modernos, que exigiu uma forma de legitimação diferente da do Estado tradicional teocrático ou dinástico. A ideia original do nacionalismo era a criação de Estados maiores, e me parece que essa função unificadora e de expansão foi muito importante.

Um exemplo típico foi o da Revolução Francesa, na qual, em 1790, pessoas apareceram dizendo: "Não somos mais delfineses ou sulistas --somos todos franceses".

Em uma etapa posterior, dos anos 1870 em diante, vemos movimentos de grupos no interior desses Estados impulsionando a criação de seus Estados independentes. Isso, é claro, gerou o momento wilsoniano de autodeterminação --se bem que, felizmente, em 1918-19, ele ainda fosse corrigido, até certo ponto, por algo que desde então desapareceu por completo, a saber, a proteção das minorias.

Era reconhecido, mesmo que não pelos próprios nacionalistas, que nenhum desses novos Estados-nações era, de fato, étnica ou linguisticamente homogêneo. Mas, depois da Segunda Guerra [1939-45], os pontos fracos das situações existentes foram enfrentados, não apenas pelos vermelhos, mas por todos, pela criação proposital e forçada da homogeneidade étnica. Isso provocou uma quantidade enorme de sofrimento e crueldade, e, no longo prazo, também não funcionou.

Apesar disso, até aquele período, o tipo separatista de nacionalismo operou razoavelmente bem. Ele foi reforçado após a Segunda Guerra Mundial pela descolonização, que, por sua própria natureza, havia criado mais Estados; e foi fortalecido ainda mais, no final do século, pela queda do império soviético [em 1991], que também criou novos Miniestados separados, incluindo muitos que, assim como aconteceu com as colônias, não tinham desejado de fato separar-se, mas aos quais a independência foi imposta pela força da história.

Não posso deixar de pensar que a função dos Estados separatistas pequenos, que se multiplicaram tremendamente desde 1945, mudou. Para começo de conversa, eles são reconhecidos como existentes. Antes da Segunda Guerra, os Miniestados --como Andorra, Luxemburgo e todos os outros-- nem sequer eram vistos como parte do sistema internacional, exceto pelos colecionadores de selos.

A ideia de que tudo, até a Cidade do Vaticano, hoje é um Estado, potencialmente membro das Nações Unidas, é nova. Está muito claro, também, que, em termos de poder, esses Estados não são capazes de exercer o papel de Estados tradicionais --não possuem a capacidade de travar guerra contra outros Estados.

Tornaram-se, na melhor das hipóteses, paraísos fiscais ou bases subalternas úteis para as instâncias decisórias transnacionais. A Islândia é um bom exemplo disso, e a Escócia não fica muito atrás.

A função histórica de criar uma nação como Estado-nação deixou de ser a base do nacionalismo. Pode-se dizer que não é mais um slogan muito convincente. Pode ter sido eficaz, no passado, como meio de criar comunidades e organizá-las contra outras unidades políticas ou econômicas.

Hoje, porém, o fator xenofóbico do nacionalismo é cada vez mais importante. Quanto mais a política foi democratizada, maior foi o potencial para isso. As causas da xenofobia são muito maiores do que eram no passado. Trata-se de algo muito mais cultural que político --basta pensar na ascensão do nacionalismo inglês ou escocês nos últimos anos--, mas nem por isso menos perigoso.

Pergunta - O fascismo não incluía essas formas de xenofobia?

Hobsbawm - O fascismo ainda foi, até certo ponto, parte da investida para criar nações maiores. Não há dúvida de que o fascismo italiano foi um grande passo à frente na conversão de calabreses e úmbrios em italianos; e mesmo na Alemanha, foi apenas em 1934 que os alemães puderam ser definidos como alemães, e não alemães pelo fato de serem suábios, francos ou saxões.

É verdade que os fascismos alemão e europeu central e oriental foram acirradamente contrários a outsiders --judeus, em grande medida, mas não apenas eles. E, é claro, o fascismo forneceu uma garantia menor contra os instintos xenofóbicos.

Uma das vantagens enormes dos movimentos trabalhistas antigos era que eles forneciam essa garantia. Isso ficou muito claro na África do Sul: não fosse pelo compromisso das organizações de esquerda tradicionais com a igualdade e a não discriminação, teria sido muito mais difícil resistir à tentação de cometer atos de vingança contra os africânderes.

Pergunta - O sr. destacou as dinâmicas separatistas e xenofóbicas do nacionalismo. O sr. vê isso como algo que hoje atua nas margens da política mundial, e não no teatro principal dos acontecimentos?

Hobsbawm - Sim, acho que isso é provavelmente certo --embora existam regiões em que o nacionalismo causou danos enormes, como no sudeste da Europa. Ainda é verdade, é evidente, que o nacionalismo --ou o patriotismo, ou a identificação com um povo específico, que não precisa necessariamente ser definido por critérios étnicos-- seja um enorme fator de legitimação dos governos.

Isso é claramente o caso na China. Um dos problemas da Índia, hoje, é que não existe nada exatamente assim por lá. Os EUA, obviamente, não podem ser definidos por uma unidade étnica, mas certamente têm sentimentos nacionalistas fortes.

Pergunta - Como o sr. prevê a dinâmica social da imigração contemporânea hoje, num momento em que tantos migrantes chegam anualmente à UE e aos EUA? O sr. prevê a emergência gradual de outro caldeirão cultural na Europa, não dessemelhante ao americano?

Hobsbawm - Mas o caldeirão cultural nos EUA deixou de sê-lo desde os anos 1960. Ademais, no final do século 20, a migração já era algo realmente muito diferente das migrações de períodos anteriores, em grande medida porque, ao emigrar, as pessoas já não rompem os vínculos com o passado no mesmo grau em que o faziam antes.

É possível continuar vivendo em dois, possivelmente até três, mundos ao mesmo tempo, e a identificar-se com dois ou três lugares distintos. É possível continuar a ser guatemalteco mesmo vivendo nos EUA. Também há situações como as da UE, nas quais, concretamente, a imigração não gera a possibilidade de assimilação. Um polonês que vem para o Reino Unido não é visto como nada além de um polonês que vem trabalhar no país.

Isso é claramente novo e muito diferente da experiência de pessoas da minha geração, por exemplo --a geração dos emigrados políticos, não que eu tenha sido um--, na qual nossa família era britânica, mas culturalmente nunca deixávamos de ser austríacos ou alemães; mas, apesar disso, acreditávamos realmente que deveríamos ser ingleses.

Mesmo quando um desses emigrados retornasse a seu próprio país, mais tarde, não era exatamente a mesma coisa --o centro de gravidade tinha se deslocado. Sempre há exceções: o poeta Erich Fried [1921-88], que viveu em Willesden (zona noroeste de Londres) por 50 anos, continuou, de fato, a viver na Alemanha.

Acredito realmente que é essencial conservar as regras básicas da assimilação --que os cidadãos de um país particular devem comportar-se de determinada maneira e gozar de determinados direitos, e que esses comportamentos e direitos devem defini-los, e que isso não deve ser enfraquecido por argumentos multiculturais.

A França havia, apesar de tudo, integrado mais ou menos tantos de seus imigrantes estrangeiros quanto os EUA, relativamente falando, e, mesmo assim, o relacionamento entre os locais e os ex-imigrantes é quase certamente melhor lá. Isso acontece porque os valores da República Francesa continuam a ser essencialmente igualitários e não fazem nenhuma concessão pública real.

Seja o que for que você faça no âmbito pessoal --era também esse o caso nos EUA no século 19--, publicamente esse é um país que fala francês. A dificuldade real não será tanto com os imigrantes quanto com os locais. É em lugares como Itália e Escandinávia, que não tinham tradições xenofóbicas prévias, que a nova imigração vem criando problemas sérios.

Pergunta - Hoje é amplamente disseminada a ideia de que a religião tenha retornado como força imensamente poderosa em um continente após o outro. O sr. vê isso como um fenômeno fundamental ou como fenômeno mais passageiro?

Hobsbawm - Está claro que a religião --entendida como a ritualização da vida, a crença em espíritos ou entidades não materiais que influenciariam a vida e, o que não é menos importante, como um elo comum entre comunidades-- está tão amplamente presente ao longo da história que seria um equívoco enxergá-la como fenômeno superficial ou que esteja destinado a desaparecer, pelo menos entre os pobres e fracos, que provavelmente sentem mais necessidade de seu consolo e também de suas potenciais explicações do porquê de as coisas serem como são.

Existem sistemas de governo, como o chinês, que não possuem concretamente qualquer coisa que corresponda ao que nós consideraríamos ser religião. Eles demonstram que isso é possível, mas acho que um dos erros do movimento socialista e comunista tradicional foi optar pela extirpação violenta da religião em épocas em que poderia ter sido melhor não fazê-lo. Uma das grandes transformações interessantes advindas após a queda de Mussolini na Itália foi quando [Palmiro] Togliatti [secretário-geral do Partido Comunista Italiano] deixou de discriminar os católicos praticantes --e com razão.

De outro modo, ele não teria conseguido que 14% das donas de casa votassem nos comunistas na década de 1940. Isso mudou o caráter do Partido Comunista Italiano, que passou de partido leninista de vanguarda a partido classista de massas ou partido do povo.

Por outro lado, é verdade que a religião deixou de ser a linguagem universal do discurso público; e, nessa medida, a secularização vem sendo um fenômeno global, embora apenas em algumas partes do mundo ela tenha enfraquecido gravemente a religião organizada.

Para as pessoas que continuam a ser religiosas, o fato de hoje existirem duas linguagens do discurso religioso gera uma espécie de esquizofrenia, algo que pode ser visto com bastante frequência entre, por exemplo, os judeus fundamentalistas na Cisjordânia --eles acreditam em algo que é evidentemente tolice, mas trabalham como especialistas nisso.

O movimento islâmico atual é composto, em grande medida, por jovens tecnólogos e técnicos desse tipo. Com certeza, as práticas religiosas vão mudar muito substancialmente. Se isso vai realmente produzir uma secularização maior não está claro. Por exemplo, não sei até que ponto a grande mudança na religião católica no Ocidente --ou seja, a recusa das mulheres em pautar-se pelas normas sexuais-- realmente levou as mulheres católicas a serem menos crentes.

O declínio das ideologias do iluminismo deixou um espaço político muito maior para a política religiosa e as versões religiosas de nacionalismo. Mas não creio que todas as religiões tenham vivido uma ascensão grande. Muitas delas estão claramente em declínio.

O catolicismo está lutando arduamente, mesmo na América Latina, contra a ascensão de seitas evangélicas protestantes, e tenho certeza de que está se mantendo na África apenas graças a concessões aos hábitos e costumes sociais que eu duvido que tivessem sido feitas no século 19.

As seitas evangélicas protestantes estão em ascensão, mas não está claro até que ponto são mais que uma minoria pequena entre os setores sociais com mobilidade ascendente, como era o caso antigamente com os não conformistas na Inglaterra. Tampouco está claro que o fundamentalismo judaico, que causa tanto mal em Israel, seja um fenômeno de massas.

A única exceção é o islã, que vem continuando a se expandir sem nenhuma atividade missionária efetiva nos últimos dois séculos. Dentro do islã, não está claro se tendências como o movimento militante atual pela restauração do califado representam mais que uma minoria ativista. Contudo, me parece que o islã possui grandes trunfos que favorecem sua expansão contínua --em grande medida, porque confere às pessoas pobres o sentimento de que valem tanto quanto todas as outras e que todos os muçulmanos são iguais.

Pergunta - Não se poderia dizer o mesmo do cristianismo?

Hobsbawm - Mas um cristão não crê que vale tanto quanto qualquer outro cristão. Duvido que os cristãos negros acreditem que valham tanto quanto os colonizadores cristãos, enquanto alguns muçulmanos negros acreditam nisso, sim. A estrutura do islã é mais igualitária, e o elemento militante é mais forte no islã.

Recordo-me de ter lido que os mercadores de escravos no Brasil deixaram de importar escravos muçulmanos porque eles insistiam em rebelar-se sempre. Onde estamos, esse apelo encerra perigos consideráveis --em certa medida, o islã deixa os pobres menos receptivos a outros apelos por igualdade.

Os progressistas no mundo muçulmano sabiam desde o início que não haveria maneira de afastar as massas do islã; mesmo na Turquia, tiveram que encontrar alguma forma de convivência --aliás, esse foi provavelmente o único lugar onde isso foi feito com êxito.

Pergunta - A ciência foi uma parte central da cultura da esquerda antes da Segunda Guerra, mas, ao longo das duas gerações seguintes, virtualmente desapareceu como elemento central do pensamento marxista ou socialista. O sr. acha que o destaque crescente das questões ambientais deverá reaproximar a ciência da política radical?

Hobsbawm - Tenho certeza de que os movimentos radicais vão se interessar pela ciência. O ambiente e outras preocupações geram razões fundamentadas para combater a fuga da ciência e da abordagem racional aos problemas, fuga que se tornou bastante ampla a partir dos anos 1970 e 80. Mas, com relação aos próprios cientistas, não creio que isso vá acontecer.

Diferentemente dos cientistas sociais, não há nada que leve os cientistas naturais a se aproximarem da política. Historicamente falando, eles, na maioria dos casos, têm sido apolíticos ou seguiram a política padrão de sua classe.

Existem exceções --entre os jovem na França do início do século 19, digamos, e, muito notavelmente, nas décadas de 1930 e 1940. Mas esses são casos especiais, que se devem ao reconhecimento por parte dos próprios cientistas de que seu trabalho estava se tornando cada vez mais essencial para a sociedade, mas que a sociedade não se dava conta disso.

O trabalho crucial sobre isso é "The Social Function of Science" [A Função Social da Ciência, MIT Press], de [J.D.] Bernal, que exerceu efeito enorme sobre outros cientistas. É claro que o ataque deliberado de Hitler contra tudo o que a ciência representava ajudou.

No século 20, as ciências físicas estiveram no centro do desenvolvimento, enquanto no século 21 está claro que são as ciências biológicas que estão. Pelo fato de estarem mais próximas da vida humana, pode haver um elemento de politização maior. Mas há um fato contrário, com certeza: cada vez mais, os cientistas têm sido integrados ao sistema do capitalismo, tanto como indivíduos quanto no interior de organizações científicas.

Quarenta anos atrás, teria sido impensável alguém falar em patentear um gene. Hoje, patenteia-se um gene na esperança de virar milionário, e esse fato afastou um grupo bastante grande de cientistas da política da esquerda. A única coisa que ainda poderá politizá-los é a luta contra governos ditatoriais ou autoritários que interferem em seu trabalho.

Um dos fenômenos mais interessantes na União Soviética foi que os cientistas lá foram forçados a se politizar, porque receberam o privilégio de um certo grau de direitos e liberdades --de tal maneira que pessoas que, de outro modo, não teriam passado de leais fabricantes de bombas de hidrogênio se tornaram líderes dissidentes.

Não é impossível que isso venha a ocorrer em outros países, embora não existam muitos no momento. É claro que o ambiente é uma questão que pode manter muitos cientistas mobilizados. Se houver um desenvolvimento maciço de campanhas em torno das mudanças climáticas, então é evidente que os especialistas se verão engajados, em grande medida combatendo os reacionários e os que nada sabem. Logo, nem tudo está perdido.

Pergunta - O que o atraiu originalmente para o tema das formas arcaicas de movimento social, em "Rebeldes Primitivos", e até que ponto o sr. planejou isso de antemão?

Hobsbawm - Isso surgiu a partir de duas coisas. Quando percorri a Itália na década de 1950, eu não parava de topar com fenômenos aberrantes --representações partidárias no sul do país elegendo testemunhas de Jeová como secretários, e assim por diante; pessoas que refletiam sobre problemas modernos, mas não nos termos aos quais estávamos acostumados.

Em segundo lugar, especialmente após 1956, isso expressava uma insatisfação geral com a versão simplificada que tínhamos do desenvolvimento de movimentos populares da classe trabalhadora.

Em "Rebeldes Primitivos", eu estava muito longe de ser crítico da leitura padrão-- pelo contrário, eu observava que esses outros movimentos não chegariam a nenhum lugar a não ser que, mais cedo ou mais tarde, adotassem o vocabulário e as instituições modernas.

A despeito disso, ficou claro para mim que não bastava simplesmente ignorar esses outros fenômenos, dizer que sabíamos como todas essas coisas operam. Eu produzi uma série de ilustrações desse tipo, estudos de caso, e disse: "Estes não se encaixam".

Isso me levou a pensar que, antes mesmo da invenção do vocabulário, dos métodos e das instituições políticas modernas, existiam maneiras como as pessoas praticavam política que englobavam ideias básicas sobre as relações sociais --entre elas, em grau não menor, as relações entre poderosos e fracos, governantes e governados-- que possuíam uma certa lógica e se encaixavam.

Mas eu realmente não tive oportunidade de levar esse estudo adiante.

Pergunta - Em "Tempos Interessantes" [publicado em 2002], o sr. expressou reservas consideráveis em relação ao que eram na época modismos históricos recentes. O sr. acha que o cenário historiográfico continua relativamente inalterado?

Hobsbawm - Estou cada vez mais impressionado com a escala do desvio intelectual verificado na história e nas ciências sociais desde os anos 1970. Minha geração de historiadores, que de modo geral transformou o ensino da história, além de muitas outras coisas, procurou essencialmente estabelecer um vínculo permanente, uma fertilização mútua, entre a história e as ciências sociais; era um esforço que datava dos anos 1890.

A disciplina econômica seguiu uma trajetória diferente. Dávamos como certo que estávamos falando de algo real: de realidades objetivas, embora, desde Marx e a sociologia do conhecimento, soubéssemos que as pessoas não registram a verdade simplesmente como ela é.

Mas o que era realmente interessante eram as transformações sociais. A Grande Depressão foi instrumental nesse aspecto, porque reapresentou o papel exercido por grandes crises nas transformações históricas --a crise do século 14, a transição ao capitalismo. Não foram, na realidade, os marxistas que introduziram isso --foi Wilhelm Abel, na Alemanha, o primeiro a fazer a releitura dos fatos da Idade Média à luz da Grande Depressão dos anos 1930. Éramos um grupo que procurava resolver problemas, que se preocupava com as grandes questões. Havia outras coisas cuja importância diminuíamos: éramos tão contrários à história tradicionalista, à história dos governantes e figuras importantes, ou mesmo à história das ideias, que rejeitávamos isso tudo.

Em algum momento da década de 1970, ocorreu uma mudança acentuada. Em 1979-80 a [revista de história] "Past & Present" publicou uma troca de ideias entre Lawrence Stone e mim sobre o "revival da narrativa" --"o que está acontecendo com as grandes perguntas 'por quê'?". De lá para cá, as grandes perguntas transformativas vêm sendo esquecidas pelos historiadores, de maneira geral.

Ao mesmo tempo, ocorreu uma expansão enorme do âmbito da história --passou a ser possível escrever sobre qualquer coisa que se quisesse: objetos, sentimentos, práticas. Parte disso era interessante, mas também se viu um aumento enorme do que se poderia chamar de história de fanzine, na qual grupos escrevem com o objetivo de se sentirem mais positivos a seu próprio respeito.

O exemplo clássico disso é o dos indígenas americanos que se recusaram a acreditar que seus ancestrais tivessem migrado da Ásia, afirmando "sempre estivemos aqui".

Boa parte desse desvio foi político, em algum sentido. Os historiadores oriundos de 1968 não se interessavam mais pelas grandes perguntas --pensavam que todas já tinham sido respondidas. Estavam muito mais interessados nos aspectos voluntários ou pessoais. O [periódico] "History Workshop" foi um desenvolvimento tardio desse tipo.

Não acho que os novos tipos de história tenham produzido quaisquer mudanças dramáticas. Na França, por exemplo, a história pós-Braudel não se compara à que foi feita pela geração dos anos 1950 e 1960. Pode haver trabalhos ocasionais muito bons, mas não é a mesma coisa. E estou inclinado a pensar que o mesmo pode ser dito do Reino Unido. Houve um elemento de antirracionalismo e de relativismo nessa reação dos anos 1970, que, ao todo, constatei ser hostil à história.

Por outro lado, houve alguns avanços positivos. O mais positivo destes foi a história cultural, que todos nós, inegavelmente, tínhamos deixado de lado. Não prestamos atenção suficiente à história do modo como ela de fato se apresenta a seus atores.

O livro "A Europa e os Povos Sem História" [Edusp], de Eric Wolf, é um exemplo de uma mudança positiva nesse respeito.

Também ocorreu uma ascensão enorme da história global. Entre não historiadores tem havido muito interesse pela história geral --ou seja, em como a raça humana começou. Graças a pesquisas de DNA, hoje sabemos muita coisa sobre a expansão de humanos através do planeta. Em outras palavras, dispomos de uma base genuína para uma história mundial.

Outro avanço positivo, em grande medida por parte dos americanos e em parte, também, dos historiadores pós-coloniais, tem sido a reabertura da questão da especificidade da civilização europeia ou atlântica e da ascensão do capitalismo -- "The Great Divergence" [Princeton University Press], de [Kenneth] Pomeranz, e assim por diante. Isso me parece muito positivo, embora seja inegável que o capitalismo moderno surgiu em partes da Europa, e não na Índia ou China.

Pergunta - Se o sr. tivesse que escolher tópicos ou campos ainda inexplorados e que representam desafios importantes para historiadores futuros, quais seriam?

Hobsbawm - O grande problema é um problema muito geral. Segundo padrões paleontológicos, a espécie humana transformou sua existência com velocidade espantosa, mas o ritmo das transformações tem variado tremendamente. Isso claramente indica um controle crescente sobre a natureza, mas não devemos imaginar que sabemos para onde isso nos está conduzindo.

Os marxistas focaram, com razão, as transformações no modo de produção e em suas relações sociais como sendo geradoras de transformações históricas.

Contudo, se pensarmos em termos de como "os homens fazem sua própria história", a grande questão é a seguinte: historicamente, comunidades e sistemas sociais buscaram a estabilização e a reprodução, criando mecanismos para prevenir-se contra saltos perturbadores no desconhecido. A resistência à imposição de transformações de fora para dentro ainda é um fator preponderante na política mundial, hoje. Como, então, humanos e sociedades estruturados para resistir a transformações dinâmicas se adaptam a um modo de produção cuja essência é o desenvolvimento dinâmico interminável e imprevisível?

Os historiadores marxistas poderiam beneficiar-se da pesquisa das operações dessa contradição fundamental entre os mecanismos que promovem transformações e aqueles que são voltados a opor resistência a elas.


Esta entrevista foi publicada originalmente na edição de janeiro/fevereiro da revista britânica "New Left Review".
Tradução de Clara Allain.

Extraída de Folha de São Paulo
Copyright Folha.com.

sábado, 25 de setembro de 2010

Mãe >&< prazer sexual

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Repulsa ao sexo

por Maria Rita Kehl
Estadão - 18/09/2010

Em sua coluna semanal, a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl aborda com clareza e serenidade o polêmico e delicado tema da descriminalização do aborto em época de eleições.

"Entre os três candidatos à Presidência mais bem colocados nas pesquisas, não sabemos a verdadeira posição de Dilma e de Serra. Declaram-se contrários para não mexer num vespeiro que pode lhes custar votos. Marina, evangélica, talvez diga a verdade. Sua posição é tão conservadora nesse aspecto quanto em relação às pesquisas com transgênicos ou células-tronco.

Mas o debate sobre a descriminalização do aborto não pode ser pautado pela corrida eleitoral. Algumas considerações desinteressadas são necessárias, ainda que dolorosas. A começar pelo óbvio: não se trata de ser a favor do aborto. Ninguém é. O aborto é sempre a última saída para uma gravidez indesejada. Não é política de controle de natalidade. Não é curtição de adolescentes irresponsáveis, embora algumas vezes possa resultar disso. É uma escolha dramática para a mulher que engravida e se vê sem condições, psíquicas ou materiais, de assumir a maternidade. Se nenhuma mulher passa impune por uma decisão dessas, a culpa e a dor que ela sente com certeza são agravadas pela criminalização do procedimento. O tom acusador dos que se opõem à legalização impede que a sociedade brasileira crie alternativas éticas para que os casais possam ponderar melhor antes, e conviver depois, da decisão de interromper uma gestação indesejada ou impossível de ser levada a termo.

Além da perda à qual mulher nenhuma é indiferente, além do luto inevitável, as jovens grávidas que pensam em abortar são levadas a arcar com a pesada acusação de assassinato. O drama da gravidez indesejada é agravado pela ilegalidade, a maldade dos moralistas e a incompreensão geral. Ora, as razões que as levam a cogitar, ou praticar, um aborto, raramente são levianas. São situações de abandono por parte de um namorado, marido ou amante, que às vezes desaparecem sem nem saber que a moça engravidou. Situações de pobreza e falta de perspectivas para constituir uma família ou aumentar ainda mais a prole já numerosa. O debate envolve políticas de saúde pública para as classes pobres. Da classe média para cima, as moças pagam caro para abortar em clínicas particulares, sem que seu drama seja discutido pelo padre e o juiz nas páginas dos jornais.

O ponto, então, não é ser a favor do aborto. É ser contra sua criminalização. Por pressões da CNBB, o ministro Paulo Vannuchi precisou excluir o direito ao aborto do recente Plano Nacional de Direitos Humanos. Mas mesmo entre católicos não há pleno consenso. O corajoso grupo das "Católicas pelo direito de decidir" reflete e discute a sério as questões éticas que o aborto envolve.

Conceito de "humano"

O argumento da Igreja é a defesa intransigente da vida humana. Pois bem: ninguém nega que o feto, desde a concepção, seja uma forma de vida. Mas a partir de quantos meses passa a ser considerado uma vida humana? Se não existe um critério científico decisivo, sugiro que examinemos as práticas correntes nas sociedades modernas. Afinal, o conceito de humano mudou muitas vezes ao longo da história. Data de 1537 a bula papal que declarava que os índios do Novo Continente eram humanos, não bestas; o debate, que versava sobre o direito a escravizar-se índios e negros, estendeu-se até o século 17.

A modernidade ampliou enormemente os direitos da vida humana, ao declarar que todos devem ter as mesmas chances e os mesmos direitos de pertencer à comunidade desigual, mas universal, dos homens. No entanto, as práticas que confirmam o direito a ser reconhecido como humano nunca incluíram o feto. Sua humanidade não tem sido contemplada por nenhum dos rituais simbólicos que identificam a vida biológica à espécie. Vejamos: os fetos perdidos por abortos espontâneos não são batizados. A Igreja não exige isso. Também não são enterrados. Sua curta existência não é imortalizada numa sepultura - modo como quase todas as culturas humanas atestam a passagem de seus semelhantes pelo reino desse mundo. Os fetos não são incluídos em nenhum dos rituais, religiosos ou leigos, que registram a existência de mais uma vida humana entre os vivos.

Ambiguidade da igreja católica

A ambiguidade da Igreja que se diz defensora da vida se revela na condenação ao uso da camisinha mesmo diante do risco de contágio pelo HIV, que ainda mata milhões de pessoas no mundo. A África, último continente de maioria católica, paupérrimo (et pour cause...), tem 60% de sua população infectada pelo HIV. O que diz o papa? Que não façam sexo. A favor da vida e contra o sexo - pena de morte para os pecadores contaminados.

Condenação à liberdade sexual das mulheres ou "mãe" não combina com sexo!

Ou talvez esta não seja uma condenação ao sexo: só à recente liberdade sexual das mulheres. Enquanto a dupla moral favoreceu a libertinagem dos bons cavalheiros cristãos, tudo bem. Mas a liberdade sexual das mulheres, pior, das mães - este é o ponto! - é inadmissível. Em mais de um debate público escutei o argumento de conservadores linha-dura, de que a mulher que faz sexo sem planejar filhos tem que aguentar as consequências. Eis a face cruel da criminalização do aborto: trata-se de fazer, do filho, o castigo da mãe pecadora. Cai a máscara que escondia a repulsa ao sexo: não se está brigando em defesa da vida, ou da criança (que, em caso de fetos com malformações graves, não chegarão a viver poucas semanas). A obrigação de levar a termo a gravidez indesejada não é mais que um modo de castigar a mulher que desnaturalizou o sexo, ao separar seu prazer sexual da missão de procriar."

Extraído de Agência Patrícia Galvão

Os subtítulos são nossos, da postagem.
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Legalidade e Liberdade

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Legalidade e Liberdade

Escrito por Claudionor Mendonça dos Santos 24-Set-2010


Pontifica a Constituição Federal, iniciando o capítulo dos direitos e deveres coletivos e individuais, pela proclamação da igualdade perante a lei e da legalidade (artigo 5º, I e II).

A liberdade, enquanto finalidade, visa à realização da personalidade, devendo o cidadão democratizar o Estado, e não opor-se a ele.

Cidadania e dignidade são fundamentos da República, cabendo ao Ministério Público zelar para sua realização, através da concretização dos direito sociais, dentre os quais, a segurança, dever do Estado, onde se insere o Ministério Público, enquanto órgão essencial à função de um dos poderes da República, devendo ser afastada a figura de um adversário do acusado, participante de um duelo passional entre hábeis contendores numa visão privatista do processo penal. É partícipe, no sentido de garantir a imparcialidade do juiz.

Desde o início da persecução penal devem ser assegurados os direitos dos investigados e dos acusados, especialmente aqueles considerados básicos, como sua integridade física e moral, não submissão a tortura ou tratamento desumano ou degradante, a inviolabilidade de sua intimidade, vida privada, honra e imagem etc.

Assim, num Estado de Direito, a atuação dos poderes deve se pautar pela lei, princípio enunciado na obra de Montesquieu, insculpido no artigo 5º, da Declaração de 1789, no sentido de que tudo o que não é proibido pela lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que esta não ordena. Resplandece, assim, a regra da liberdade, como exceção a restrição.

A lei tem como função primordial a fixação dos limites da liberdade individual, tornando possível a coexistência das liberdades, segundo as exigências da vida em sociedade. Contudo, ela deve ser a expressão do justo, devendo proibir, tão somente, a ações nocivas à sociedade, assim consideradas aquelas que prejudicam os demais, inviabilizando a própria liberdade, sendo seu elemento formal a vontade geral e que, segundo jurista francês, "o legislador, enquanto tal, não tem vontade própria", devendo refletir a vontade dos representados.

Dessa forma, desde o século XVIII, asseguraram-se prerrogativas às pessoas e que lhes são inerentes, sendo uma delas a liberdade, ou seja, "o direito natural e intangível de pensar e exteriorizar o seu pensamento, isto é, de desenvolver sua atividade física, intelectual e moral" (Léon Diguit, Tratado de Direito Constitucional, 3ª ed. P.611).

Nessa linha de raciocínio, pode-se afirmar, indiscutivelmente, que todas as pessoas são livres e iguais em direitos, submetidas às mesmas obrigações, guardadas as devidas diferenças.



Claudionor Mendonça dos Santos é Promotor de Justiça e 1º secretário do Ministério Público Democrático.
Extraído de Correio da Cidadania

Educação: de Gutenberg à era dos computadores

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Desde a revolução de Gutenberg, não ocorria nada igual à internet
O futuro é a educação

Por Paulo Guedes
Publicado no jornal O Globo em 06/09/2010

Um engenheiro construiu aquedutos e catapultas na antiga Roma, castelos e catedrais na Idade Média, como constrói nos dias de hoje foguetes espaciais e plataformas marítimas para exploração de petróleo. Um exemplo de como o conhecimento transforma as profissões através dos séculos.

De carroças puxadas por bois às ferrovias, de caminhões a diesel aos aviões de carga, mesmo o passado recente registra o extraordinário impacto das inovações sobre os meios de transporte. Um exemplo de como o conhecimento também transforma de modo radical nossas atividades produtivas.

A verdade é que a educação, ao possibilitar a evolução e a transmissão do conhecimento ao longo da história humana, modificou profissões, trouxe novas tecnologias e transformou atividades produtivas, mas recebeu relativamente pouco em troca. Seus métodos de transmissão permaneceram os mesmos por milênios.

Não me refiro evidentemente ao conteúdo educacional ou à qualidade dos métodos científicos modernos em comparação às investigações filosóficas dos antigos. E sim à "tecnologia de transmissão", com alguns tutores e muita saliva. Os ensinamentos de Aristóteles para o jovem Alexandre da Macedônia foram transmitidos por aulas expositivas, diálogos e estímulo à leitura, técnicas que em pouco diferiam das atuais.

É com essa perspectiva que avaliamos o impacto das novas tecnologias sobre a educação. Desde a revolução de Gutenberg, não ocorria nada igual à chegada da internet, a globalização efetiva da informação.

A onda de inovações aplicáveis à transmissão do conhecimento está causando uma revolução no setor. Há uma convergência de novas tecnologias que permitirá a superação do maior de todos os desafios: a universalização do ensino de qualidade.

A oportunidade de criação de valor na moderna sociedade do conhecimento por meio dessa universalização de um conteúdo antes acessível a poucos, com uma dramática redução de custos pela aplicação das novas tecnologias, está produzindo, por sua vez, uma onda de fusões, aquisições e associações entre empresas de internet, da indústria de telecomunicações, da mídia convencional e do setor de educação propriamente dito.

A convergência das novas tecnologias está derrubando as muralhas antes existentes entre esses diversos setores, redefinindo fronteiras e criando novas oportunidades de investimento. E, pela primeira vez, o maior beneficiário será a educação.


* Paulo Guedes é sócio – fundador e CEO do grupo financeiro BR Investimentos. Economista com Ph.D. pela Universidade de Chicago, foi um dos sócios - fundadores e diretor do Banco Pactual. Foi Sócio e CEO do IBMEC, uma das principais escolas de negócios do país, que veio a ser um marco no ensino de negócios do Brasil. É colunista semanal do jornal O Globo e escreve a cada duas semanas para a revista Época.

7/9/2010

Extraído de A Voz do Cidadão
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terça-feira, 7 de setembro de 2010

Fim do livro? Nem pensar!

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Eletrônicos duram 10 anos; livros, 5 séculos, diz Umberto Eco

Ensaísta e escritor italiano fala em entrevista exclusiva de seu novo trabalho, 'Não Contem com o Fim do Livro'

13 de março de 2010 | 9h 33
jornal
O Estado de São Paulo - Estadão



O bom humor parece ser a principal característica do semiólogo, ensaísta e escritor italiano Umberto Eco. Se não, é a mais evidente. Ao pasmado visitante, boquiaberto diante de sua coleção de 30 mil volumes guardados em seu escritório/residência em Milão, ele tem duas respostas prontas quando é indagado se leu toda aquela vastidão de papel. "Não. Esses livros são apenas os que devo ler na semana que vem. Os que já li estão na universidade" - é a sua preferida. "Não li nenhum", começa a segunda. "Se não, por que os guardaria?"



Na verdade, a coleção é maior, beira os 50 mil volumes, pois os demais estão em outra casa, no interior da Itália. E é justamente tal paixão pela obra em papel que convenceu Eco a aceitar o convite de um colega francês, Jean-Phillippe de Tonac, para, ao lado de outro incorrigível bibliófilo, o escritor e roteirista Jean-Claude Carrière, discutir a perenidade do livro tradicional. Foram esses encontros ("muito informais, à beira da piscina e regados com bons uísques", informa Umberto Eco) que resultaram em Não Contem Com o Fim do Livro, que a editora Record lançou na segunda quinzena de abril 2010.

A conclusão é óbvia: tal qual a roda, o livro é uma invenção consolidada, a ponto de as revoluções tecnológicas, anunciadas ou temidas, não terem como detê-lo. Qualquer dúvida é sanada ao se visitar o recanto milanês de Eco, como fez o Estado (Estadão) na última quarta-feira. Localizado diante do Castelo Sforzesco, o apartamento - naquele dia soprado por temperaturas baixíssimas, a neve pesada insistindo em embranquecer a formidável paisagem que se avista de sua sacada - encontra-se em um andar onde antes fora um pequeno hotel. "Se eram pouco funcionais para os hóspedes, os longos corredores são ótimos para mim pois estendo aí minhas estantes", comenta o escritor, com indisfarçável prazer, ao apontar uma linha reta de prateleiras repletas que não parecem ter fim. Os antigos quartos? Transformaram-se em escritórios, dormitórios, sala de jantar, etc. O mais desejado, no entanto, é fechado a chave, climatizado e com uma janela que veda a luz solar: lá estão as raridades, obras produzidas há séculos, verdadeiros tesouros. Isso mesmo: tesouros de papel.

Conhecido tanto pela obra acadêmica (é professor aposentado de semiótica, mas ainda permanece na ativa na Faculdade de Bolonha) como pelos romances (O Nome da Rosa, publicado em 1980, tornou-se um best-seller mundial), Eco é um colecionador nato; além de livros, gosta também de selos, cartões-postais, rolhas de champanhe. Na sala de seu apartamento, estantes de vidro expõem tantos os livros raros - que, no momento, lideram sua preferência - como conchas, pedras, pedaços de madeira. As paredes expõem quadros que Eco arrematou nas visitas que fez a vários países ou que simplesmente ganhou de amigos - caso de Mário Schenberg (1914-1990), físico, político e crítico de arte brasileiro, de quem o escritor guarda as melhores recordações.

Aos 78 anos, Eco - que tem relançado no País Arte e Beleza na Estética Medieval (Record, 368 págs., R$ 47,90, tradução de Mario Sabino) - exibe uma impressionante vitalidade. Diverte-se com todo tipo de cinema (ao lado de seu aparelho de DVD repousa uma cópia da animação Ratatouille), mantém contato com seus alunos em Bolonha, escreve artigos para jornais e revistas e aceita convites para organizar exposições, como a que o transformou, no ano passado, em curador, no Museu do Louvre, em Paris. Lá, o autor teve o privilégio de passear sozinho pelos corredores do antigo palácio real francês nos dias em que o museu está fechado. E, como um moleque levado, aproveitou para alisar o bumbum da Vênus de Milo. Foi com esse mesmo espírito bem-humorado que Eco - envergando um elegante terno azul-marinho, que uma revolta gravata da mesma cor tratava de desalinhar; o rosto sem a característica barba grisalha (raspada religiosamente a cada 20 anos e, da última vez, em 2009, também porque o resistente bigode preto o fazia parecer Gengis Khan nas fotos) - conversou com a reportagem do Sabático.

O livro não está condenado, como apregoam os adoradores das novas tecnologias?

O desaparecimento do livro é uma obsessão de jornalistas, que me perguntam isso há 15 anos. Mesmo eu tendo escrito um artigo sobre o tema, continua o questionamento. O livro, para mim, é como uma colher, um machado, uma tesoura, esse tipo de objeto que, uma vez inventado, não muda jamais. Continua o mesmo e é difícil de ser substituído. O livro ainda é o meio mais fácil de transportar informação. Os eletrônicos chegaram, mas percebemos que sua vida útil não passa de dez anos. Afinal, ciência significa fazer novas experiências. Assim, quem poderia afirmar, anos atrás, que não teríamos hoje computadores capazes de ler os antigos disquetes? E que, ao contrário, temos livros que sobrevivem há mais de cinco séculos? Conversei recentemente com o diretor da Biblioteca Nacional de Paris, que me disse ter escaneado praticamente todo o seu acervo, mas manteve o original em papel, como medida de segurança.

Qual a diferença entre o conteúdo disponível na internet e o de uma enorme biblioteca?


A diferença básica é que uma biblioteca é como a memória humana, cuja função não é apenas a de conservar, mas também a de filtrar - muito embora Jorge Luis Borges, em seu livro Ficções, tenha criado um personagem, Funes, cuja capacidade de memória era infinita. Já a internet é como esse personagem do escritor argentino, incapaz de selecionar o que interessa - é possível encontrar lá tanto a Bíblia como Mein Kampf, de Hitler. Esse é o problema básico da internet: depende da capacidade de quem a consulta. Sou capaz de distinguir os sites confiáveis de filosofia, mas não os de física. Imagine então um estudante fazendo uma pesquisa sobre a 2.ª Guerra Mundial: será ele capaz de escolher o site correto? É trágico, um problema para o futuro, pois não existe ainda uma ciência para resolver isso. Depende apenas da vivência pessoal. Esse será o problema crucial da educação nos próximos anos.


Não é possível prever o futuro da internet?


Não para mim. Quando comecei a usá-la, nos anos 1980, eu era obrigado a colocar disquetes, rodar programas. Hoje, basta apertar um botão. Eu não imaginava isso naquela época. Talvez, no futuro, o homem não precise escrever no computador, apenas falar e seu comando de voz será reconhecido. Ou seja, trocará o teclado pela voz. Mas realmente não sei.

Como a crescente velocidade de processar dados de um computador poderá influenciar a forma como absorvemos informação?


O cérebro humano é adaptável às necessidades. Eu me sinto bem em um carro em alta velocidade, mas meu avô ficava apavorado. Já meu neto consegue informações com mais facilidade no computador do que eu. Não podemos prever até que ponto nosso cérebro terá capacidade para entender e absorver novas informações. Até porque uma evolução física também é necessária. Atualmente, poucos conseguem viajar longas distâncias - de Paris a Nova York, por exemplo - sem sentir o desconforto do jet lag. Mas quem sabe meu neto não poderá fazer esse trajeto no futuro em meia hora e se sentir bem?


É possível existir contracultura na internet?


Sim, com certeza, e ela pode se manifestar tanto de forma revolucionária como conservadora. Veja o que acontece na China, onde a internet é um meio pelo qual é possível se manifestar e reagir contra a censura política. Enquanto aqui as pessoas gastam horas batendo papo, na China é a única forma de se manter contato com o restante do mundo.

Em um determinado trecho de 'Não Contem Com o Fim do Livro', o senhor e Jean-Claude Carrière discutem a função e preservação da memória - que, como se fosse um músculo, precisa ser exercitada para não atrofiar.


De fato, é importantíssimo esse tipo de exercício, pois estamos perdendo a memória histórica. Minha geração sabia tudo sobre o passado. Eu posso detalhar sobre o que se passava na Itália 20 anos antes do meu nascimento. Se você perguntar hoje para um aluno, ele certamente não saberá nada sobre como era o país duas décadas antes de seu nascimento, pois basta dar um clique no computador para obter essa informação. Lembro que, na escola, eu era obrigado a decorar dez versos por dia. Naquele tempo, eu achava uma inutilidade, mas hoje reconheço sua importância. A cultura alfabética cedeu espaço para as fontes visuais, para os computadores que exigem leitura em alta velocidade. Assim, ao mesmo tempo que aprimora uma habilidade, a evolução põe em risco outra, como a memória. Lembro-me de uma maravilhosa história de ficção científica escrita por Isaac Asimov, nos anos 1950. É sobre uma civilização do futuro em que as máquinas fazem tudo, inclusive as mais simples contas de multiplicar. De repente, o mundo entra em guerra, acontece um tremendo blecaute e nenhuma máquina funciona mais. Instala-se o caos até que se descobre um homem do Tennessee que ainda sabe fazer contas de cabeça. Mas, em vez de representar uma salvação, ele se torna uma arma poderosa e é disputado por todos os governos - até ser capturado pelo Pentágono por causa do perigo que representa (risos). Não é maravilhoso?


No livro, o senhor e Carrière comentam sobre como a falta de leitura de alguns líderes influenciou suas errôneas decisões.


Sim, escrevi muito sobre informação cultural, algo que vem marcando a atual cultura americana que parece questionar a validade de se conhecer o passado. Veja um exemplo: se você ler a história sobre as guerras da Rússia contra o Afeganistão no século 19, vai descobrir que já era difícil combater uma civilização que conhece todos os segredos de se esconder nas montanhas. Bem, o presidente George Bush, o pai, provavelmente não leu nenhuma obra dessa natureza antes de iniciar a guerra nos anos 1990. Da mesma forma que Hitler devia desconhecer os relatos de Napoleão sobre a impossibilidade de se viajar para Moscou por terra, vindo da Europa Ocidental, antes da chegada do inverno. Por outro lado, o também presidente americano Roosevelt, durante a 2.ª Guerra, encomendou um detalhado estudo sobre o comportamento dos japoneses para Ruth Benedict, que escreveu um brilhante livro de antropologia cultural, "
O Crisântemo e a Espada". De uma certa forma, esse livro ajudou os americanos a evitar erros imperdoáveis de conduta com os japoneses, antes e depois da guerra. Conhecer o passado é importante para traçar o futuro.

Diversos historiadores apontam os ataques terroristas contra os americanos em 11 de setembro de 2001 como definidores de um novo curso para a humanidade. O senhor pensa da mesma forma?


Foi algo realmente modificador. Na primeira guerra americana contra o Iraque, sob o governo de Bush pai, havia um confronto direto: a imprensa estava lá e presenciava os combates, as perdas humanas, as conquistas de território. Depois, em setembro de 2001, se percebeu que a guerra perdera a essência de confronto humano direto - o inimigo transformara-se no terrorismo, que podia se personificar em uma nação ou mesmo nos vizinhos do apartamento ao lado. Deixou de ser uma guerra travada por soldados e passou para as mãos dos agentes secretos. Ao mesmo tempo, a guerra globalizou-se; todos podem acompanhá-la pela televisão, pela internet. Há discussões generalizadas sobre o assunto.


Falando agora sobre sua biblioteca, é verdade que ela conta com 50 mil volumes?


Sim, de uma forma geral. Nesse apartamento em Milão, estão apenas 30 mil - o restante está no interior da Itália, onde tenho outra casa. Mas sempre me desfaço de algumas centenas, pois, como disse antes, é preciso fazer uma filtragem.


Por que o senhor impediu sua secretária de catalogá-los?


Porque a forma como você organiza seus livros depende da sua necessidade atual. Tenho um amigo que mantém os seus em ordem alfabética de autores, o que é absolutamente estúpido, pois a obra de um historiador francês vai estar em uma estante e a de outro em um lugar diferente. Eu tenho aqui literatura contemporânea separada por ordem alfabética de países. Já a não contemporânea está dividida por séculos e pelo tipo de arte. Mas, às vezes, um determinado livro pode tanto ser considerado por mim como filosófico ou de estética da arte; depende do motivo da minha pesquisa. Assim, reorganizo minha biblioteca segundo meus critérios e somente eu, e não uma secretária, pode fazer isso. Claro que, com um acervo desse tamanho, não é fácil saber onde está cada livro. Meu método facilita, eu tenho boa memória, mas, se algum idiota da família retira alguma obra de um lugar e a coloca em outro, esse livro está perdido para sempre. É melhor comprar outro exemplar (risos).


Um estudioso que também é seu amigo, Marshall Blonsky, escreveu certa vez que existe de um lado Umberto, o famoso romancista, e de outro Eco, professor de semiótica.


E ambos sou eu (risos). Quando escrevo romances, procuro não pensar em minhas pesquisas acadêmicas - por isso, tiro férias. Mesmo assim, leitores e críticos traçam diversas conexões, o que não discuto. Lembro de que, quando escrevia "
O Pêndulo de Foucault", fiz diversas pesquisas sobre ciência oculta até que, em um determinado momento, elas atingiram tal envergadura que temi uma teorização exagerada no romance. Então, transformei todo o material em um curso sobre ciência oculta, o que foi muito bem-feito.

Por falar em 'O Pêndulo de Foucault', comenta-se que o senhor antecipou em muito tempo O Código de Da Vinci, de Dan Brown.


Quem leu meu livro sabe que é verdade. Mas, enquanto são os meus personagens que levam a sério esse ocultismo barato, Dan Brown é quem leva isso a sério e tenta convencer os leitores de que realmente é um assunto a ser considerado. Ou seja, fez uma bela maquiagem. Fomos apresentados neste ano em uma première do Teatro Scala e ele assim se apresentou: "
O senhor não me admira, mas eu gosto de seus livros." Respondi: "Não é que eu não goste de você - afinal, eu criei você" (risos).

Em seu mais conhecido romance, O Nome da Rosa, há um momento em que se discute se Jesus chegou a sorrir. É possível pensar em senso de humor quando se trata de Deus?


De acordo com Baudelaire, é o Diabo quem tem mais senso de humor (risos). E, se Deus realmente é bem-humorado, é possível entender por que certos homens poderosos agem de determinada maneira. E se ainda a vida é como uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, como Shakespeare apregoa em Macbeth, é preciso ainda mais senso de humor para entender a trajetória da humanidade.


Como foi a exposição no Museu do Louvre, em Paris, da qual o senhor foi curador, no ano passado?


Há quatro anos, o museu reserva um mês para um convidado (Toni Morrison foi escolhida certa vez) organizar o que bem entender. Então, me convidaram e eu respondi que queria fazer algo sobre listas. "
Por quê?", perguntaram. Ora, sempre usei muitas listas em meus romances - até pensei em escrever um ensaio sobre esse hábito. Bem, quando se fala em listas na cultura, normalmente se pensa em literatura. Mas, como se trata de um museu, decidi elaborar uma lista visual e musical, essa sugerida pela direção do Louvre. Assim, tive o privilégio (que não foi oferecido a Dan Brown) de visitar o museu vazio, às terças-feiras, quando está fechado. E pude tocar a bunda da Vênus de Milo (risos) e admirar a Mona Lisa a apenas 20 centímetros de distância.

O senhor esteve duas vezes no Brasil, em 1966 e 1979. Que recordações guarda dessas visitas?


Muitas. A primeira, em São Paulo, onde dei algumas aulas na Faculdade de Arquitetura (da USP), que originaram o livro "
A Estrutura Ausente". Já na segunda fui acompanhado da família e viajamos de Manaus a Curitiba. Foi maravilhoso. Lembro-me de meu editor na época pedindo para eu ficar para o carnaval e assistir ao desfile das escolas de samba de camarote, o que não pude atender. E também me recordo de imagens fortes, como a da moça que cai em transe em um terreiro (para o qual fui levado por Mario Schenberg) e que reproduzo em "O Pêndulo de Foucault."

Extraído de Estadão


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terça-feira, 31 de agosto de 2010

O factóide como método

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CREDIBILIDADE
O factóide como método

Por Muniz Sodré*
em 31/8/2010

Sinal de coisa nova: no final do aviso, o alto-falante do aeroporto agradece pela atenção. Talvez não seja novidade importante, mas de qualquer forma é sintoma do valor crescente dessa mercadoria pela qual hoje se trabalha ou se briga na esfera pública: a atenção. Era ela o pano de fundo do programa do Observatório da Imprensa (TV Brasil) sobre um factóide do qual participamos semanas atrás (ver "A construção da mentira". Há, entretanto, algo mais a se dizer sobre o assunto, que parece ter uma incidência mais ampla na sociedade contemporânea.

Para quem não assistiu ou não se lembra, vale recordar detalhes do fato. Como roteiro de seu filme sobre a apuração insuficiente dos acontecimentos por parte da mídia jornalística, um profissional de imprensa inventa uma organização não-governamental inglesa destinada a abraçar pessoas. Um representante dessa imaginária "ONG do abraço" posta-se no centro de São Paulo, abraçando passantes. A mídia acorre em peso à novidade, sem que um repórter sequer se dignasse a apurar a veracidade do fato, isto é, a real existência da ONG.

No programa comandado pelo mestre Alberto Dines, nós levantamos, de forma muito breve, duas hipóteses. A primeira, inspirada no livro da professora da UFRJ Raquel Paiva (Histeria na Mídia, Editora Mauad), aponta, como característica principal da mídia contemporânea, a histeria, que é uma doença da representação. Evidentemente, não são diretamente aplicáveis as categorias nosográficas do funcionamento mental do indivíduo a instituições ou organizações. Mas, além da psiquiatria, é possível trabalhar a analogia entre a disfunção individual e o excesso discursivo típico do falatório midiático, que voa nervosamente como mosca sobre grandes e pequenas fontes de excitação.

Repórter fisicamente agredida

A segunda hipótese tem terminologia inglesa. Trata-se do flash-mob (mob como diminutivo de mobilization), designação do fenômeno midiático de produção de fatos, reais ou imaginários, capazes de mobilizar instantaneamente, ainda que por um instante (flash) a atenção do público. Acontece com frequência na internet, em especial nas chamadas redes sociais (twitters, blogs etc.), mas pode se dar em qualquer faixa do longo espectro comunicativo hoje coberto pela mídia. A "ONG do abraço" era dessa natureza.

Mas era um flash-mob metódico. Em outras palavras, um recurso para dissertar mais longamente sobre a falta de cuidado investigativo para com os acontecimentos noticiáveis, mas também a excitação (histérica?) por eventos de escasso interesse social, embora exóticos ou insólitos. Em meio à massa de fatos graves e de conhecimento importante para a boa formação da cidadania, é penoso aceitar a enorme atenção da mídia para algo tão banal quanto abraçar pessoas.

O factóide foi, portanto, revelador.

O mesmo se dá com uma "pegadinha" recente do programa televisivo CQC. Em pé na porta de entrada do Congresso Nacional, com uma tabuleta na mão, uma moça pedia a deputados e a senadores que assinassem a folha de apoio a uma suposta "PEC" (proposta de emenda constitucional) relativa à importação de produtos básicos para jovens brasileiros. Um desses produtos era a cachaça. Todos os parlamentares abordados (menos um, a bem da verdade) apuseram as suas firmas ao documento, que não ou mal leram. Ato contínuo, uma repórter do programa interpelava o parlamentar, perguntando-lhe o que exatamente havia apoiado. O constrangimento era geral. De fato, ninguém conhecia o teor do documento e aquele que sabia ao menos o nome da PEC não tinha se inteirado do item "cachaça". Um deles, antes mesmo de ouvir a pergunta da repórter, agrediu-a fisicamente, quebrando o microfone e vociferando insultos grosseiros.

Uma vez mais, o factóide como método resultou muito informativo.

O querelante contumaz

No primeiro caso, ficamos informados sobre o déficit de credibilidade do noticiário jornalístico, cada vez mais acionado por uma pressa avessa à apuração da veracidade dos fatos e pela insignificância exótica, cujo espectro editorial vai desde os pormenores da vida pessoal de celebridades (ao modo do reality show), até os acontecimentos miúdos ou insólitos do cotidiano, como a "ONG do abraço". No segundo caso, não se põe em questão o velho "quarto poder", e sim, um dos poderes reais da república, que é o Legislativo. O déficit de credibilidade dos parlamentares pode ser aferido pela inequívoca demonstração de atenção deficiente. Assina-se sem saber o que se está assinando.

Em ambos os casos, a mídia comparece seja como objeto, seja como sujeito da investigação. Mas o que propomos chamar de "síndrome social da desatenção" vai muito além da dimensão técnica da mídia, pois parece indicar uma contaminação de determinadas instituições pelos efeitos perversos do dispositivo informacional.

Por exemplo, um episódio recente que acompanhamos de perto. Um querelante contumaz (a Polícia, o Ministério Público, o Judiciário, os gabinetes de vereadores e deputados vivem assediados por esse tipo de personagem, que oscila entre o hospital-dia psiquiátrico e agremiações sindicais paranóides) denuncia junto a uma ONG uma autoridade que supostamente "violou um direito civil".

A mercadoria mais cara da sociedade midiática

Como preliminar, é preciso ter em mente um fenômeno novo na paisagem urbana brasileira: há ONGs cujo sentido social caducou, dispostas a qualquer coisa para não desaparecerem do mapa. Pois bem, a denúncia do querelante é infundada, delirante, mas a ONG a acolhe num primeiro momento, sem sequer consultar ou avisar a parte denunciada.

Até aí, se pode pensar em erro, engano e alvitrar uma retificação. Mas de repente se descobre que ninguém leu atentamente, ou não soube ler os termos da denúncia ou não prestou a devida atenção ao discurso delirante do personagem. Em outras palavras, patrocinou-se um factoide sem se saber direito o que estava fazendo. O déficit de atenção equivale aqui à mesma leviandade institucional da mídia ou dos parlamentares interpelados pelo CQC.

E de repente, não mais que de repente, um sério e competente magistrado revela-nos alarmado que, em seu meio profissional, "ninguém parece estar lendo mais nada" – a desatenção é a regra. É como se, submersas na enxurrada dos signos – que provêm tanto da mídia quanto da liberdade democrática do questionamento e da demanda – as instituições estivessem, elas próprias, à beira de se tornarem factóides institucionais, se é que o termo tem validade.

Disso tudo, não há o que concluir de modo definitivo. Há, por um lado, o sintoma de uma crescente liquefação da responsabilidade social. Por outro, o contágio virótico da imagem-sensação, que leva ao trânsito fácil do factóide em toda a sua gama de significações – da notícia sem apuração até a denúncia delirante.

No centro está a luta pela atenção, a mercadoria mais cara da sociedade midiática, onde tudo o que nos parecia sólido de fato tende a se desmanchar no ar.


* Muniz Sodré é professor da Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) é o atual presidente da Fundação Biblioteca Nacional (FBN).

Extraído de Observatório da Imprensa
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