segunda-feira, 21 de abril de 2008

Povos Indígenas e a Soberania Nacional

Povos Indígenas e a Soberania Nacional

Felipe da Silva Freitas[1]

Nos últimos dias, os fatos ocorridos no Estado de Roraima chamaram a atenção dos espectadores e leitores mais atentos da imprensa brasileira. A liminar concedida pelo STF (Supremo Tribunal Federal) suspendendo a Operação da Polícia Federal que retiraria fazendeiros invasores de terras indígenas da Reserva Raposa Serra do Sol reascendeu o debate sobre a questão dos direitos dos povos indígenas e dos limites constitucionais ao direito a propriedade, chamando a atenção da sociedade brasileira quanto a grave situação em que vivem mulheres e homens indígenas naquele lugar tão esquecido do país.

A Reserva Raposa Serra do Sol é uma representação da luta histórica dos povos indígenas. Numa área contínua, povos Macuxi, Wapixana, Taurepang, Ingaricó lutam há anos pelo seu reconhecimento social e pelo atendimento aos seus direitos mais fundamentais, reivindicando o respeito as suas terras e a garantia de seus direitos de educação, saúde, saneamento básico e respeito a sua autonomia e diversidade étnico racial.

Em 2005, o movimento conquistou junto ao Governo Federal (após longas e controversas idas e vinda e inúmeras batidas às portas do Judiciário) a homologação da demarcação da Reserva em terras contínuas e a regularização fundiária através da FUNAI e do INCRA. Essa conquista, porém, não foi capaz de dar vazão ao conjunto de demandas que permeiam a vida daquelas mulheres e homens, mas, pelo contrário, representou o agravamento da situação, em especial quando, de maneira fascista e autoritária, rizicultores da região passaram a violenta e insistentemente invadir as terras indígenas.

Com o argumento de que a demarcação traria problemas à soberania do país e com a tese de que representaria um atraso ao desenvolvimento do Estado de Roraima, arrozeiros ingressaram no STF requerendo a revisão da Reserva e questionando o laudo produzido pelos técnicos da FUNAI. Tais ações, resultaram numa decisão em caráter liminar por parte do Supremo suspendendo a Operação da Polícia Federal que visava dar cumprimento à demarcação, retirando de lá os invasores. Nesse momento, foi reascendida toda a polêmica.

De um lado, os arrozeiros invasores querem a manutenção de seus privilégios e negam-se em admitir que aquela é terra indígena, de outro lado, os indígenas resistem, pois sabem que qualquer concessão significará o extermínio final de todo aquele povo. Esse é o impasse: a vida dos indígenas, ou os privilégios dos fazendeiros.

Na base desse debate, está a discussão sobre o conceito de raça/etnia e da sua persistência histórica relacionando-se com a questão fundiária no país. Ao questionar o direito à demarcação, o General Heleno, comandante Militar da Amazônia esteve, na verdade, desconsiderando toda uma história de genocídio perpetrada nesse país, descaracterizando as peculiaridades do modelo racial estabelecido e repetindo um velho e malfadado discurso da democracia racial.

Em palestra proferida recentemente o General, comandante Militar da Amazônia, fez a seguinte declaração: "Pela primeira vez estamos escutando coisas que nunca escutamos na história do Brasil. Negócio de índio e não índio? No bairro da Liberdade, em São Paulo, vai ter japonês e não-japonês? Só entra quem é japonês? Como um brasileiro não pode entrar numa terra porque é uma terra indígena?"

No Brasil, o conceito de raça é fundamental para compreender como se organiza o poder nesta sociedade. Dizer que indígenas e não indígenas, negros e não negros, explorados e exploradores são categoria ultrapassadas no estudo sociológico e na formulação das políticas públicas é, na verdade, uma maneira perversa e antiga para manter tudo como está e sacramentar os privilégios daqueles que historicamente oprimiram as imensas maiorias desse país.

Os indígenas constituem povos com culturas específicas, com tradições milenares, com histórias identitárias riquíssimas e, como povos brasileiros, são detentores de direitos que precisam ser assegurados sem subterfúgios por parte dos Poderes da República. No ano de comemoração do 20º Aniversário da Constituição, os que a defendem tão ardorosamente quando se fala em direito a propriedade e em outras coisas do interesse da elite nacional, poderiam aproveitar e, no bojo da Comemoração dos 20 anos da “Constituição Cidadã”, também lutar pela garantia do seu artigo 231, assegurando imediatamente a demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol e a vida de milhares de indígenas que lá habitam.

As declarações dos representantes do Governo do Estado de Roraima, a fala do Sr. Paulo César Quartiero, líder das manifestações contrárias à retirada de não-índios da Raposa/Serra do Sol, aliada as falas dos líderes do DEM e do PSDB representam a síntese do conservadorismo latifundiário, racista e oligarca que controla esse país. Ao alegarem fantasiosamente os riscos da entrega das terras amazônicas às ONGs internacionais por parte dos indígenas, esses líderes de direita estão, simplesmente, desenvolvendo uma grande mentira para assim continuarem a defender a especulação fundiária no norte do país.

Todos sabem que os povos indígenas não representam nenhum risco à soberania nacional e, muito pelo contrário, colaboram com a sociedade brasileira na medida em que, através as suas práticas ancestrais, incentivam a preservação da fauna e da flora e desenvolvem práticas de medicina alternativa e de resignificação das relações com a natureza.

Mais ao fundo do debate chefiado pelo Sr. Paulo Quartiero (líder dos arrozeiros) está a tentativa desesperada da elite nacional de conter a organização indígena e as suas conquistas, impedindo o reconhecimento de seus direitos e defendendo (de maneira perversa e por meio de estratégias fascista) os interesses do latifúndio improdutivo.

Aos que defendem o Estado Democrático de Direito há, ainda, uma grave violação e inversão das lógicas quando se observa a decisão liminar do Supremo e a formação das milícias dos fazendeiros. A pressão do poder econômico, aliada com a formação de grupos paramilitares, foi capaz de promover uma decisão liminar que, ao invés de assegurar direitos constitucionais (como são os direitos dos povos indígenas) coopera para intensificar a relação belicosa na região, pois, ampliam-se as notícias de formação de bandos de capangas de fazendeiros para empreender resistência a uma possível decisão judicial de mérito favorável à manutenção da reserva.

Segundo o Presidente da República, ancorado na fala do Presidente da FUNAI (Márcio Meira) e nas declarações dos representantes da bancada do Partido dos Trabalhadores, todo o esforço será empreendido para manter a demarcação e retirar os arrozeiros ilegais. A fala do Presidente, entretanto, não é suficiente para acalmar as lideranças indígenas que sabem que, dentro do próprio Governo, ainda há muita dubiedade na compreensão do que seja uma reserva indígena e muitos interesses profundamente articulados com o poder econômico da região.

O grande temor do movimento indigenista, e de todos(as) os que querem construir uma igualdade e justiça nesse país, é de que essa liminar do Supremo abra caminho para maiores violação com relação aos direitos dos povos tradicionais (e aos indígenas em particular), que o país continue a consagrar um perverso modelo racial excludente e que mais povos indígenas sejam exterminados.

É importante compreender que, ao se reivindicar a peculiaridade da demarcação territorial para os povos indígenas (assim como ao se reivindicar uma educação contextualizada para as populações rurais, ou se reivindicar um tratamento específico para a população negra nos vestibulares) não se está criando uma cisão inconseqüente, ou um privilégio injustificado. Pelo contrário, ao se reconhecer a necessidade da demarcação dos territórios indígenas se quer garantir a necessidade de defendê-los enquanto povos com identidades diferenciadas e organização social própria.

O grande desafio ao qual deveriam estar se preocupando todos os Poderes da República, ao invés de atacarem os direitos dos povos indígenas, é o desafio da defesa dos direitos de toda população. A garantia do caráter multiétnico e pluricultural do Estado brasileiro, assim como o combate a toda desigualdade, a promoção da justiça e da função social de toda propriedade, são componentes inseparáveis do próprio conceito de Estado Democrático Soberano e devem, esses sim, ser perseguidos por todos.

No Congresso Nacional, por exemplo, existe uma proposta de emenda a Constituição que prevê o limite máximo à propriedade da terra no Brasil, proposta formatada com o suor e a dedicação de milhares de lutadores e lutadoras sociais e que poderia colaborar significativamente na Reforma Agrária e na democratização do acesso a terra. Já no STF, existem milhares de ações que solicitam a anulação do leilão fraudulento da Companhia Siderúrgica Vale do Rio Doce, privatizada pelas estratégias lesa pátria dos Tucanos do Governo FHC. Aprovar essa PEC e anular o leilão da Vale seriam bons caminhos para os Poderes de República começaram a defender, de fato, a soberania do país.

Por fim, é importante perceber que nesse debate político está colocada uma disputa de conceitos entre a autonomia e a tutela, entre o respeito e a mera retórica, entre a efetividade e a aparência. Como bem salientaram as comunidades indígenas da Raposa Serra do Sol, avaliando o que representa esse trágico momento:

Chega de tanto sofrimento, já esperamos demais! Tivemos calma, muita paciência e confiança nas autoridades, mas agora basta! Podemos decidir sobre o nosso futuro e tomar providências, com a união do nosso povo, estamos pedindo gentilmente que os outros invasores que já receberam suas indenizações e aqueles que estão com suas indenizações depositadas em juízo, deixem a nossa terra livre.

Também queremos trabalhar e desenvolver para contribuir com o crescimento sócio-econômico do estado de Roraima e do Brasil. Chega de sermos acusados de atrapalhar o desenvolvimento do Estado de Roraima! Chega de tanta discriminação e preconceito contra os povos indígenas de Roraima. Somos cidadãos brasileiros em pleno exercício dos nossos direitos.


[1] Felipe da Silva Freitas: estudante de Direito e membro do Núcleo de Estudantes Negros e Negras da Universidade Estadual de Feira de Santana / BA - fsfreitas13@hotmail.com
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