segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A indiferença da academia pelo presente

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A indiferença da academia pelo presente
A difícil crítica do presente



17 de junho de 2008 - Por Beatriz Resende[i]

No último maio, chegou ao fim a importante revista argentina Punto de Vista, depois de 30 anos de crítica combativa, servindo como referência decisiva em diversos momentos da vida latino-americana. Sua editora, intelectual que procurou sempre juntar literatura e política, Beatriz Sarlo, afirma que a revista – que sempre foi absolutamente independente não só em suas posições como em suas formas de sustentação –não passa por nenhuma dificuldade econômica. Provavelmente seu fechamento precipitou-se pelas crises internas que vive desde que dela se afastou Carlos Altamirando e outros, em 2004. Mas aqui, o que vem ao caso notar, são algumas das afirmações de Sarlo no editorial do número 90, o último: “Final”. Aí aparecem as dificuldades representadas pelo que foi também o grande mérito da publicação por todos estes anos: a sintonia crítica com o presente, com o imediato. Foi assim que se ocupou da literatura argentina em relação com a história recente, o que, segundo Sarlo, hoje não é novidade, mas o foi nos anos 80, quando a abordagem se tornou, para o grupo, uma chave interpretativa. Falaram de cidade e cultura quando o tema ainda não estava na moda e usaram como referência teórica Raymond Williams, Juan José Sauer e Sebald quando tais autores ainda não circulavam efetivamente no universo da crítica.

O que Beatriz Sarlo assegura ser decisivo para uma publicação dedicada à cultura e à política me parece ser decisivo para qualquer realização do exercício crítico. Diz a criadora da revista: “Pensé ( y pinso hasta hoy) que es preferible que uma revista se equivoque a que permanezca igual a si misma quando las cosas cambian o quando los temas se banalizan”.

Sem dúvida é este o risco e o fascínio, a possibilidade de equívoco ou de contribuição modificadora que a crítica literária corre quando se ocupa, sobretudo, de autores novos, alguns ainda em formação. É o risco de se deslocar do campo antes de mais nada seguro do cânone – não apenas para afirmá-lo, mas mesmo para questioná-lo – para uma zona de apostas, do perigoso jogo de tentar ler o futuro no presente que é se apresenta ao leitor iniciado. Porisso, talvez, a crítica acadêmica – justamente aquela que é praticada no espaço seguro das universidades, onde, convenhamos, temos hoje a liberdade de dizermos o que quisermos – pouco se ocupe no contemporâneo, do imediato. De que outros espaços dispomos, então? Revistas literárias, de crítica, de reflexão, praticamente inexistem. Aquelas que poderiam ter a segurança se estarem ligadas às universidades vivem dificuldades cotidianas que tornam sua publicação tão lenta que, ao circularem, aquele que aí visitar o novo, o que merece provocar o debate dentro da produção cultural do presente, já aparecerá atrasado. Ou ficará restrito ao pequeno âmbito de circulação a que a tiragem limitada obriga. Restam os suplementos dedicados à arte e cultura, uns pouco e heróicos sobreviventes, onde o número de caracteres destinados a cada colaborador diminui a cada número. É preciso sobreviver, competindo com os cadernos de automóveis, culinária e vinhos ou inutilidades, artigos bem mais vendáveis. E antes a culinária do que as celebridades!

A tendência crítica é ver o passado, seja pela memória seja pela história, como conflituoso, solicitando releituras ainda por serem feitas, e, por isso mesmo, fértil. E realmente o é. À produção literária do presente resta, o mais das vezes, a indiferença.

Não é apenas por acreditar na força da ficção brasileira contemporânea que penso que ela deve ser conhecida, lida, estudada, fruída, mas sim porque acredito que o jovem autor, aquele que busca uma experiência literária inovadora ou as vozes que apenas recentemente se apropriaram do texto literário – seja o que for que se entenda por literatura hoje –merecem e precisam do debate.

Se nos detivermos sobre a produção desta década, percebemos as múltiplas possibilidades que têm se afirmado com grande competência, mas também já podemos vislumbrar alguns impasses. O retorno dominante à narrativa da realidade já mostra as ciladas que oferece junto com o interesse imediato, a identificação fácil ou a possibilidade de um texto literário migrar com facilidade do livro para outras mídias mais rentáveis. O excesso de metalinguagem, a paródia que se revela com obviedade ameaçam mesmo autores de escrita sofisticada. A belle écriture do texto cansa tão rapidamente quanto a vulgaridade compulsivamente repetida. O texto de pouco fôlego é um intervalo curioso, mas perde a força se for uma constante. Por outro lado, a aposta em aspectos “profanadores”, para usar a expressão de Giorgio Agamben, muitas vezes cessa ao primeiro oferecimento de uma grande editora, aquela que se interessara justamente pelo valor da profanação.

Apontar impasses é a contribuição que a crítica pode oferecer. Para esse exercício político do fazer literário, no sentido que Jacques Rancière dá à política da literatura, como uma maneira de intervir na partilha do sensível que define o mundo que habitamos, é preciso, antes de tudo, correr o risco que falar do presente, do imediato, oferece.

Como sempre se perde e sempre se ganha alguma coisa a cada virada no mundo da cultura artística, se a crítica acadêmica perde espaço a cada recusa que um autor recebe ao exibir, quase como num gesto obsceno, seu volume de ensaios diante de um editor, outros espaços vêm surgindo no universo livre da web. Até agora, são principalmente os jovens (alguns já não tão jovens) autores que têm se utilizado desta ferramenta, para divulgar seus trabalhos, partilhar experiências e trocar críticas na formação de uma nova forma de “vida literária”. Por mais que o incomparável perfume do papel faça falta a nossos narizes viciados, vale a pena tentar ocupar esses novos espaços.No mínimo, os críticos logo terão respostas de algumas vozes arrogantes e outras carentes de diálogo, cairão na rede de discussões por vezes divertidas, receberão sugestões daquele mago da Amazon que lê nossas aspirações intelectuais mais íntimas e uma inevitável boa quota de spans.

[i] Beatriz Resende é coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, professora da UNIRIO e pesquisadora do CNPq.

às 22:54 Postado por Beatriz Resende em
http://ensaioscriticos.blogspot.com/2008/06/indiferena-da-academia-pelo-presente.html

para mais:
http://www.idelberavelar.com/archives/2008/04/adeus_a_uma_revista_fundamental.php

http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/espectaculos/2-9713-2008-04-06.html


Beatriz Sarlo
Tempo de crise: literatura e identidade argentina

Os ensaios de Beatriz Sarlo atravessam as fronteiras disciplinares: da literatura à sociologia, da filosofia ao urbanismo, passando pelas crises que abalaram seu país e a reflexão sobre o cenário cultural.

Beatriz Sarlo faz parte de uma geração da Argentina formada politicamente pelo peronismo e culturalmente por Jorge Luis Borges. Até 1976, ela, uma das mais importantes vozes na vida intelectual argentina, não pensava em se tornar crítica literária, ensaísta ou professora. Era uma militante política que resistia à ditadura militar do vizinho país. Após sobreviver ao dramático período, Beatriz voltou a ler textos de Gramsci, de Lenin, de Althusser, e teve contato com os estudos culturais e com autores que se tornaram seus companheiros inseparáveis como Walter Benjamin, Raymond Williams, Roland Barthes. De certa forma, eles a ajudaram a se constituir no que ela define como uma crítica da consciência filosófica anterior. “A crítica que eu gostaria de ser é aquela que descobre como são feitas as coisas e poder contar isso a outros”, disse Sarlo, certa vez, em entrevista.

Editora da revista Punto de Vista e do site BazarAmericano.com, Beatriz Sarlo dedica-se ao estudo da literatura, análises e história cultural, culturas urbanas e novas configurações da dimensão simbólica do social. Publicou em português Cenas da vida pós-moderna (Editora UFRJ, 1997), Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação (Editora USP, 2005), Tempo presente: notas sobre a mudança de uma cultura (José Olympio, 2005), A paixão e a exceção (Companhia das Letras, 2005) e Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva (Companhia das Letras, 2007).

Professora de Literatura por vinte anos na Universidade de Buenos Aires e com passagens por universidades americanas como Columbia e Berkeley, Beatriz Sarlo, uma das mais argutas críticas literárias da Argentina, tem encontro marcado com o Fronteiras do Pensamento Copesul Braskem 2008, no dia 7 de julho, no salão de Atos da UFRGS.

Beatriz Sarlo mostra-se capaz de uma autocrítica que vai além de nacionalismos às vezes tão presentes na imagem que freqüentemente recebemos dos argentinos. “Eu sou bastante pessimista em termos culturais e educativos. A Argentina tem que aprender a ser segundo, terceiro, quarto e quinto, coisa com que nunca tinha sonhado. A princípio, tem que aprender a ser segundo do Brasil, o que é algo que não está incorporado na cabeça dos argentinos”, disse Sarlo, em entrevista a uma revista brasileira. Segundo ela, o país hermano teria estado preso a um mito cultural, no qual perdura o reflexo convencido de que na América Latina a Argentina tinha uma liderança incontestável, mas isso acabou para sempre com a globalização. “Isso é algo que, como choque cultural, é muito forte Uma transformação cultural no sentido de situar-se de novo no mundo”, disse.

Com uma visão das identidades que foge de essencialismos e substancialismos, Beatriz Sarlo pensa que a identidade argentina se baseava em três elementos: ser completamente alfabetizado, ter o trabalho garantido e ser cidadão. Esta era inclusive a base sobre a qual os argentinos se sentiam diferentes e, injustamente ou não, superiores ao resto da América Latina. A Argentina teve ditaduras horríveis que de alguma maneira puseram em questão a identidade. “Além disso, os argentinos ainda têm que fazer um balanço por terem se transformado numa espécie de monstros nacionalistas quando a ditadura militar invadiu as Ilhas Malvinas e terem pensado que derrotaríamos a Inglaterra dirigidos por um general bêbado. Isto é uma ferida que ainda não foi processada”, denuncia a escritora. Segundo ela, o fundamental da identidade do argentino típico, que aparecia nas piadas na América Latina, era o convencido, seguro de si mesmo porque era cidadão, porque ninguém ia poder dizer para ele “você não sabe com quem está falando”; essa era uma frase que os argentinos pensavam que era possível no Brasil ou no Chile. “Na Argentina, esta frase dirigida a um pobre ou a um inferior era impossível porque havia direito de cidadania incorporado. Tinha-se uma escola que fazia com que as crianças sempre tivessem dois ou três anos a mais de escolaridade que seus pais. E o emprego estava garantido”, disse Sarlo. O estado de bem-estar quebrou e a sociedade argentina entrou na crise que acompanhamos ao longo das últimas décadas. “Então temos uma sociedade cujo único traço que conserva com muita força na cultura das camadas médias é o antiautoritarismo, que se aprendeu depois das ditaduras militares, o que não é pouco, mas também não é suficiente para a constituição de uma identidade. Daí a questão de como aprender a ser cidadão de um país secundário”, destaca. Em relação à cultura e à arte no sentido mais restrito do termo, Beatriz Sarlo mostra-se mais otimista. “A Argentina ainda tem um interessante contingente de escritores que vão surgindo a cada dez ou quinze anos. O campo cultural nesse sentido ainda mostra uma mobilidade e uma dinâmica muito fortes”, reconhece.

Especialista no estudo sobre as obras de Cortázar, Sarmiento e Borges, Beatriz Sarlo consegue decodificar escritores de diversas épocas e fazer uma leitura do presente a partir da literatura e da arte, leitura que já tem sua data marcada em Porto Alegre.

extraído de:
http://www.agin.com.br/clientes/fronteirasdopensamento/revista-fronteiras/perfil/

foto de Beatriz Sarlo:
http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/espectaculos/2-9713-2008-04-06.html

capa Punto de Vista:
http://www.idelberavelar.com/archives/2008/04/adeus_a_uma_revista_fundamental.php
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