sexta-feira, 25 de junho de 2010

Saramago está na Ilha Desconhecida

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Uma Leitura do “Conto da Ilha Desconhecida”, de José Saramago*

Por Sonia Camatta**


O Rei, que também é Rainha, somos nós, é o nosso Ego. Ele reina (até quando?) sobre o conjunto formado por todas as nossas “partes”. Ele reina enquanto o Amo, o Senhor, o Eu verdadeiro não vem. O suplicante, o homem que diz “Dá-me um barco” é o mensageiro do Amo, Senhor ou Eu verdadeiro. Em princípio, é frágil, infantil, sem poderes, diante do todo poderoso Rei-Ego, porém determinado. Dentro do Reino há muitos suplicantes, que vêm pedir coisas como comida, água, impressões (visuais, auditivas, olfativas, táteis, gustativas), sexo, honrarias, dinheiro, poder, etc. Todos batem à porta das petições. Há sempre alguém batendo nessa porta dentro de cada um de nós. Há outras portas, como a dos obséquios, a preferida do Rei-Ego. O Ego odeia dar e adora receber elogios, presentes, agradecimentos, o que seja. É fácil perceber dentro de nós o bater insistente dos pedintes, à porta das petições. No meu Reino o suplicante – o Eu – não veio pedir um barco, porque tendo nascido em Angustura, Minas Gerais e não conhecendo o mar, ele veio pedir ao Rei que lhe indicasse a Porta que se abre para o caminho que levará para fora dos domínios do Rei, para que encontre a Terra Desconhecida. Essa Terra Desconhecida é o verdadeiro Reino. O pedido do meu suplicante, é, pois, um Caminho. Mas, só há um jeito de qualquer suplicante – EU ser atendido: deitar atravessado na porta das petições do Rei e bater insistentemente, atormentá-lo, não lhe dar tréguas. E assim foi.

A mulher da limpeza, quem é ela? Há muitas interpretações para a presença feminina dentro do Reino ao lado do Rei. Ela é o lado direito do cérebro, do nosso cérebro, é a parte feminina e, como tal, como vivemos num mundo ainda patriarcal e ainda machista, ela é sempre destinada a tarefas menores – servir, limpar, lavar, passar, cozinhar, costurar. Ela é o “eu faço”.

E quanto ao diálogo do Rei com o suplicante que queria um barco? Duas frases se sobressaem: “A ti Rei, só te interessam as ilhas conhecidas”. O Ego só procura o que está na periferia. O centro, o interior, não é seu território. A Ilha Desconhecida é a metáfora do centro, do interior, da essência. A propósito dessa ilha, o pedinte disse: “Talvez essa não se deixe conhecer”. Nada é mais difícil do que chegar a essa ilha ou atravessar a porta e encontrar o caminho que leva para fora dos domínios do Rei – Ego.

O que significa: “Só estava a mulher da limpeza a olhar para ele com cara de caso”. A mulher da limpeza (o lado direito do cérebro, a parte feminina do ser), vê com alegria o suplicante que pede um barco ou um caminho. Tanto que virou-se e “saiu pela porta das decisões”, a porta mais difícil de ser cruzada, “mas quando o é, é”. Quantas vezes já passamos por ela? Eu, apenas duas. Para se cruzar a porta das decisões é preciso dar-se conta, de repente, do absurdo de uma vida de rotinas inúteis, de vazios, de mediocridade, de mesmice, de egocentrismo, de superficialidade. É muito difícil deixar o conhecido pelo desconhecido, mas, do lado de fora da porta das decisões está o caminho para a Ilha Desconhecida.

“Tem carta de navegação? Aprenderei no mar”. Sim, não é preciso tê-la, aprendemos no mar, da mesma forma que o caminhante aprende no caminho. “Saí do palácio pela porta das decisões”. Só por ela se pode sair. A intuição da mulher da limpeza fez com que ela descobrisse o barco antes do Homem. Em relação à profissão, ele diz: “Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero encontrar a Ilha Desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver”. “Se não sais de ti, não chegas a saber quem és”. “... que é necessário sair da Ilha para ver a Ilha, que não nos vemos se não saímos de nós próprios”.

O caminho para sair de nós... há tanto tempo o procuramos. “Um pão, queijo-de-cabra, azeitona, vinho”. Eis a refeição perfeita, completa, mediterrânea, sábia, grega, cretense, romana, turca... Com uma refeição dessas, nada mais é preciso, além do céu sobre a cabeça e a terra sob os pés. Esse alimento, sua forma, cheiro e gosto, nos remete às origens do homem ocidental. Todos os povos do Mediterrâneo são irmãos: um só povo, uma só cultura, uma só música, dança, vinho, pão, coração...

“Nunca me riria de quem me fez sair pela porta das decisões”. Tem grande importância para nós aquele ou aquela ou aquilo que nos deu coragem, ou nos empurrou pela porta das decisões.

A mulher da limpeza tentou seduzir o Homem que queria o barco, mas aquele ou aquela que quer encontrar a Ilha Desconhecida ou o caminho só tem olhos para isso e perde o interesse pelo sexo e por tudo o mais. “A mulher dorme a poucos metros e ele não soube alcançá-la”, quando é tão fácil ir de bombordo a estibordo. Há outra leitura para essa parte: dentro de nós há um Homem e uma Mulher; um a bombordo, outro a estibordo, um à direita, outro à esquerda. Em alguns de nós, esse encontro dos dois nunca se dá.

“Ocupam-se nas suas coisas de mulheres, ainda não chegou o tempo de se ocuparam doutras”. O tempo do lado direito do cérebro, o tempo feminino está chegando agora. Esse milênio será dominado por ele, isto é, por elas. Mas será preciso evitar outro desequilíbrio, outra desarmonia, porque só com os dois hemisférios cerebrais é possível chegar-se à Ilha Desconhecida.

Por que o barco começou a se comportar como se fosse a própria Ilha Desconhecida? Terra, plantas, germinação, aves, ninhos, searas, colheitas... Por que? Porque a viagem para a Ilha Desconhecida já é a chegada.

Por que muito tripulantes e marinheiros resolveram e exigiram descer na “primeira terra povoada que lhes apareça”, que tenha um porto, uma taberna, uma cama... uma ilha do mapa? Porque dentro de nós há personagens prontos a saltar e acampar no conhecido. Eles estão sempre prontos a trair o sonho do suplicante de encontrar a Ilha Desconhecida. São os personagens do Ego.

E o que podemos esperar da Ilha Desconhecida, caso a encontremos? O que podemos esperar de Ítaca, Shangri-lá, Avalon? Nada. Segundo a tradição sufi, nada, porque ela já nos deu tudo: deu-nos a viagem, a jornada e tudo o que ela representa. A viagem, o longo caminho de volta nos faz ricos e sábios. Sem a Ilha Desconhecida seríamos para sempre prisioneiros nos domínios do Rei-Ego. A Ilha Desconhecida já é o nosso Eu a procura de si mesmo.


* Título original da Autora.

**Sonia Maria Marinho Camatta
Professora
Centro Universitário de Barra Mansa – UBM
Comissão Própria de Avaliação - CPA do UBM
Rio de Janeiro - RJ


  • A SEAF agradece a Sonia Camatta a gentileza de emprestar sua reflexão (desde 1992) para que pudéssemos deixar uma homenagem a José Saramago.

  • As cinzas do Nobel de literatura português José Saramago, morto no último dia 18 (de junho de 2010), permanecerão em um jardim em frente à fundação mantida pelo escritor em Lisboa, na Casa dos Bicos, segundo anunciou nesta sexta-feira (25) o prefeito da cidade, Antonio Costa. (G1.Globo)
José Saramago, em foto de Sebastião Salgado
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4 comentários:

sagitario disse...

Saramago foi sempre uma pessoa boa e com caracter, por isso defendeu sempre as causas nobres.
Ele escrevia o que pensava e isso incomodou muita gente, o ministro da cultura não o deixou concorrer ao prémio nobel, só quando o governo mudou é que ele concorreu e ganhou mesmo o nobel da literatura em 1988, nessa altura Portugal tinha cá a Expo, por isso foi lindo irmos todos aplaudi-lo ao Centro Cultural de Belém, as palmas foram tantas até nos doerem as mãos.
Mas a obra e a memória dele ficarão para sempre nos corações dos portugueses e de tantos outros povos irmãos

Célio Roberto Pereira disse...

Como podemos sentir saudades de uma pessoa que nem conhecemos?
É o conhecimento agindo na gente, trazendo um pesar pela perda ilustre, sem contos, sem histórias, o silêncio toma conta do mundo em solidariedade àquele que nunca se calou.
Parabéns mais uma vez SEAF pelo ótimo post.

SEAF disse...

Este comentário chegou a nós, como sinal de dignidade e reconhecimento. Por autorização da autora, fazemos a postagem:

Cara Professora Sonia,

A princípio quero lhe dizer que me sinto orgulhosa, de verdade, por estar no seu grupo de amigos merecedores de compartilhar um texto tão rico.

A ler o seu texto me senti impelida a comentar a impressão que me causou. Confesso que do José Saramago li apenas alguns pequenos trechos de seus escritos, porém sabia quem ele era, sua origem pobre, seu prêmio Nobel de Literatura, sua obra mais famosa, Ensaio sobre a Cegueira, e também que era ateu.

Já admirava a senhora e já conhecia seu talento com as palavras, mas fiquei realmente encantada com este texto! Eu não leio tanto quando gostaria [...], mas a leitura pra mim é algo muito valioso. Se hoje escrevo e me comunico relativamente bem é porque sempre gostei de ler e, graças a Deus, meu filho também adora ler. Me encanto quando vejo em palavras toda a expressão de conceitos e sentimentos de uma pessoa. É como se fosse um retrato, uma escultura! Fico imaginando, às vezes, quando um texto me impressiona, como foi o momento daquela "criação", como se sentia o escritor, como ele arrancou de dentro de si a "materialização" da ideia que queria partilhar. Porque, ao escrevermos, entendo que nos expomos mais do que falando. A escrita é pensada, refletida, e com ela vai um pouco da nossa alma.

Mas, voltando ao texto, não sei se vou conseguir traduzir o que de fato senti mas vou tentar.

Dentro do meu "universo cultural", um pouco mais distante do seu, consegui compreender o "essencial" do texto, apesar de palavras e expressões ainda desconhecidas por mim. Gosto do seu estilo, que está bem implícito neste trecho:

"...Quantas vezes já passamos por ela? Eu, apenas duas. Para se cruzar a porta das decisões é preciso dar-se conta, de repente, do absurdo de uma vida de rotinas inúteis, de vazios, de mediocridade, de mesmice, de egocentrismo, de superficialidade. É muito difícil deixar o conhecido pelo desconhecido, mas, do lado de fora da porta das decisões está o caminho para a Ilha Desconhecida..."

Seu estilo me demonstra a fusão do texto poético com a linguagem prática, voltada para o didático. [...] seu texto me passou isso, força e leveza. A expressão da mulher que é mãe, esposa, mas também é "trabalhadora da educação".

A propósito, que grande verdade neste trecho! Já parei muitas vezes pra refletir sobre como perdemos tempo com "rituais" inúteis. O Padre Léo falava muito disso. Quantas esposas deixam de lado seus maridos e filhos por uma busca insana pelo brilho do chão e das panelas!

Enfim, como enriquecemos quando descobrimos que a felicidade está na busca, no caminho! Cada dia vivido plenamente, cada pequena vitória. O crescer dos filhos, a companhia dos amigos, o contato com pessoas que nos engrandecem...

"...E o que podemos esperar da Ilha Desconhecida, caso a encontremos? O que podemos esperar de Ítaca, Shangri-lá, Avalon? Nada. Segundo a tradição sufi, nada, porque ela já nos deu tudo: deu-nos a viagem, a jornada e tudo o que ela representa. A viagem, o longo caminho de volta nos faz ricos e sábios. Sem a Ilha Desconhecida seríamos para sempre prisioneiros nos domínios do Rei-Ego. A Ilha Desconhecida já é o nosso Eu a procura de si mesmo..."

Obrigada, Professora, por compartilhar seu talento e sabedoria...!

Um grande abraço, Alba - alba.carvalho@ubm.br

Gilda disse...

Homenagear José Saramago único português a ganhar um
Prêmio Nobel de Literatura foi oportuno e significativo.
A SEAF tem o privilégio de contar com a professora Sonia Camatta,
colaboradora brilhante que em sua reflexão, elucida metáforas e desperta o interesse para conhecer a obra original.
Excelente!