segunda-feira, 19 de março de 2012

Os robôs vão substituir os jornalistas?


Os robôs vão substituir os jornalistas?

19/03/2012 - 07h00
por Evgeny Morozov*

Será que a tecnologia pode ser autônoma? Será que pode ter vida própria e operar independentemente da orientação humana? Do teólogo francês Jacques Ellul ao Unabomber, essa era uma visão amplamente aceita. Mas hoje a maioria dos historiadores e sociólogos da tecnologia descarta a ideia, classificando-a como ingênua e imprecisa.

Mas considere por um momento o mundo das finanças modernas, cada vez mais dependente de operações automatizadas, com sofisticados algoritmos que encontram e exploram irregularidades nos preços invisíveis para os operadores comuns.

A revista "Forbes", uma das mais veneráveis instituições do jornalismo financeiro, agora utiliza os serviços de uma companhia chamada Narrative Science para gerar artigos on-line automaticamente sobre o que esperar dos anúncios trimestrais de resultados de empresas. Basta inserir algumas estatísticas, e o software inteligente produz artigos altamente legíveis em questão de segundos. Ou, como define a "Forbes", "a Narrative Science, por meio de sua plataforma exclusiva de inteligência artificial, transforma dados em histórias e percepções".

Fonte da imagem: link na foto
Não deixe a ironia passar despercebida: plataformas automatizadas agora "escrevem" reportagens sobre empresas que ganham dinheiro com transações automatizadas. Essas reportagens terminam influenciando o sistema financeiro e ajudam os algoritmos a identificar transações ainda mais lucrativas. Em termos práticos, o que temos é jornalismo produzido por robôs e para robôs. O único lado positivo da história é que o dinheiro todo fica para os seres humanos.

A Narrative Science é uma das diversas companhias que estão desenvolvendo software automatizado para jornalismo. Essas empresas iniciantes trabalham primordialmente em nichos de mercado --esportes, finanças, imóveis-- nos quais as reportagens tendem a seguir padrões parecidos e giram em torno de estatísticas. Agora, começam a operar também no segmento de jornalismo político. A Narrative Service passou a oferecer artigos sobre como a campanha eleitoral norte-americana aparece nas mídias sociais e que questões e candidatos são mais e menos discutidos em um determinado Estado ou região. O sistema pode até incorporar ao artigo final citações dos tuítes mais populares e mais interessantes. Nada melhor que robôs para cobrir o Twitter.

É fácil perceber por que os clientes da Narrative Science --a companhia diz contar com 30 deles-- consideram seus serviços úteis. Primeiro, ela é muito mais barata do que pagar jornalistas humanos, que de vez em quando adoecem e sempre exigem respeito. Como o "New York Times" reportou em setembro passado, um dos parceiros da Narrative Science no setor de construção paga menos de US$ 10 por um artigo de 500 palavras, e não há funcionários para reclamar de péssimas condições de trabalho. Além disso, o artigo é "redigido" em apenas um segundo. Nem mesmo ChristoperHitchens conseguiria fechar nesse prazo.

Segundo, a Narrative Science promete ser mais abrangente --e objetiva-- que qualquer repórter humano. Poucos jornalistas têm tempo para encontrar, processar e analisar milhões de tuítes, mas a Narrative Science é capaz de fazê-lo com facilidade e, o mais importante, de forma instantânea. O objetivo não é apenas reportar estatísticas sofisticadas mas também compreender o que esses números significam e informar sua importância ao leitor. A Narrative Science teria sido capaz de desvendar o caso Watergate? Provavelmente não. Mas a maioria das reportagens tem tramas bem menos complexas a desenvolver.

Os fundadores da Narrative Science afirmam que desejam simplesmente ajudar --e não exterminar-- o jornalismo. Pode bem ser que sejam sinceros. Os repórteres provavelmente odiarão a companhia, mas algumas editoras sempre preocupadas com custos certamente aceitarão sua colaboração de braços abertos. Em longo prazo, porém, o impacto cívico dessas tecnologias --que estão apenas em sua infância-- pode se provar mais problemático.

Acima de tudo, existe uma tendência clara na forma de desenvolvimento que a internet vem seguindo hoje --o esforço por personalizar as experiências on-line dos usuários. Tudo que clicamos, lemos, buscamos e assistimos on-line resulta, cada vez mais, de um esforço delicado de otimização, pelo qual nossos cliques, buscas, indicações, compras e interações anteriores determinam aquilo que surge nas telas de nossos navegadores e apps.

Até recentemente, muitos críticos da internet temiam que essa personalização da rede gerasse um mundo no qual leríamos apenas artigos que refletem nosso interesses existentes, sem que jamais tivéssemos de abandonar aquilo com que nos sentimos confortáveis. A mídia social, com sua sequência ininterrupta de links e minidebates, tornou obsoletas algumas dessaspreocupações. Mas a ascensão do "jornalismo automatizado" pode um dia apresentar um desafio novo e diferente, que os excelentes mecanismos de descoberta da mídia social ainda não são capazes de resolver: e se clicarmos no mesmo link, que em teoria conduz ao mesmo artigo, mas terminarmos lendo textos muito diferentes?

Como isso funcionaria? Imagine que meu histórico on-line sugira que eu tenho um diploma avançado e que passo muito tempo nos sites da "Economist" ou da "New York Review of Books"; como resultado, verei uma versão mais sofisticada, desafiadora e informativa da história, enquanto meu vizinho, leitor do "USA Today", recebe uma versão simplificada. Se for possível inferir que também estou interessado em notícias internacionais e em Justiça mundial, um artigo computadorizado sobre Angelina Jolie pode terminar mencionando seu novo filme sobre a guerra na Bósnia. Já o meu vizinho, obcecado por celebridades, poderia ler a mesma reportagem, mas acrescida de uma fofoca suculenta sobre Brad Pitt.

Produzir e alterar histórias instantaneamente, personalizadas de maneira a se enquadrar aos interesses e hábitos intelectuais de um dado leitor, é exatamente o que o jornalismo automatizado permite. E esse é o motivo para que nos preocupemos com a questão. Os anunciantes e as editoras adoram essa personalização, que pode convencer os usuários a passar mais tempo em seus sites. Mas as implicações sociais são bastante dúbias. No mínimo, existe o perigo de que algumas pessoas fiquem aprisionadas em um círculo vicioso de notícias, consumindo apenas junk food informativa e tendo pouca indicação de que existe um mundo diferente, e mais inteligente, ao seu alcance. E a natureza comunal da mídia social confirmaria a essas pessoas que na verdade não estão perdendo coisa alguma de importante. Naturalmente, isso também poderia ser o próximo passo na evolução das muito odiadas "fazendas deconteúdo", exemplificadas pela Demand Media.

Considerem o que pode acontecer se, como parece provável, grandes empresas de tecnologia ingressarem nesse segmento e começarem a ocupar o espaço aberto por pequenas empresas como a Narrative Science. A Amazon serve de exemplo. Seu leitor eletrônico Kindle permite que usuários procurem palavras desconhecidas em um dicionário eletrônico e que marquem suas frases favoritas em um texto. Isso poderia ser útil quando a Amazon decidir criar um serviço de notícias personalizadas completamente automático. Afinal, a Amazon já sabe que jornais leio, de que tipo de frase gosto, que palavras eu considero difíceis. E eu já tenho o aparelho deles, no qual poderia ler essas notícias --de graça!

Ou pense no Google. Não só a companhia conhece meus hábitos de consumo de informação melhor que ninguém --ainda mais depois da unificação de suas normas de privacidade--, como opera o Google News, um serviço sofisticado para agregar notícias, o que permite que a empresa acumule um conhecimento amplo sobre os assuntos correntes. E graças ao altamente popular serviço Google Translate, ela também sabe como montar sentenças legíveis.

Considerando tudo isso, a ideia de que uma maior automação poderia salvar o jornalismo parece míope. No entanto, inovadores como a Narrative Science não são culpados; se usadas de maneira estreita, suas tecnologias podem economizar custos e talvez permitir que alguns jornalistas --desde que mantenham seus empregos!-- desenvolvam projetos analíticos mais interessantes, em lugar de reescreverem a mesma matéria a cada semana.

A verdadeira ameaça vem de nossa recusa em investigar as consequências sociais e políticas de viver em um mundo no qual ler anonimamente se torna quase impossível. É um mundo que os anunciantes --e empresas como Google, Amazon e Facebook-- mal podem esperar que surja, mas também um mundo no qual o pensamento crítico, erudito e heterodoxo pode se tornar mais difícil de promover e preservar.


* Evgeny Morozov é pesquisador-visitante da Universidade Stanford e analista da New America Foundation. É autor de "The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom" (a ilusão da rede: o lado sombrio da liberdade na internet). Tem artigos publicados em jornais e revistas como "The New York Times", "The Wall Street Journal", " Financial Times" e "The Economist". Lançará em 2012 o livro "Silicon Democracy" (a democracia do silício). Escreve [na FSP] às segundas-feiras, a cada quatro semanas.

Tradução de Paulo Migliacci

Extraído de FSP

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