Quinta-Feira, 12 de Junho de 2008 - O Estado de São Paulo – Opinião
As políticas sociais de cunho reformista e popular estão na mira da nova onda de reações da direita brasileira. É uma reação bem menos estabanada que o ''Cansei''. No entanto, o ''Cansei'' era mais legítimo.
O ''Cansei'' era um grito. Vinha da direita? E daí? Tudo bem! O que denunciava não era algo que não poderia ser endossado por outros, distantes da direita. Aproveitava o ''caos aéreo'' (que, aliás, não se resolveu) e as atitudes desrespeitosas de membros do governo para mirar no real calcanhar-de-aquiles da ''era Lula'': a corrupção institucionalizada.
Mas, e agora? Bem, neste momento a reação que, da minha parte, não tenho medo de identificar como ''vinda da direita'' tem outros protagonistas. Seus proponentes pegam nos tropeços de Lula e seus ''companheiros'' em relação à lei formal. O alvo são as cotas, bolsas e todo tipo de ação que visa a transferir recursos e poder para aqueles que Florestan Fernandes chamava ''os de baixo''. Essa reação é bem menos interessante que a do ''Cansei'', pois não une a oposição; ela pode até estar correta em alguns casos, mas tem o grave defeito de deixar transparecer a mesquinhez (falsa ou verdadeira) de seus proponentes.
O manifesto dos ''intelectuais não-racistas contra as cotas'' é o exemplo claro de uma investida errada dos setores conservadores. E o apoio de determinados juristas a tal manifesto é pior ainda, inclusive pelos argumentos utilizados. O erro é de estratégia, além de ser uma tolice por si só. Como estratégia, não pode unir ninguém. Como verdade, não se firma, pois tem a perna curta da mentira. Dizer que o branco está sendo discriminado por causa das cotas é uma mentira deslavada, além de ser algo que cria o ódio racial no coração até daquele afrodescendente que porventura nunca se tenha sentido discriminado.
As cotas para o ensino superior são políticas que podem ser aperfeiçoadas e estão sendo aplicadas de modos diferentes em cada universidade. São políticas para trazer o negro para dentro da universidade como um local que precisa ter negros, e não como algo que deve ser visto como política educacional ou como ''ressarcimento pela escravidão''. A política de cotas deve cumprir uma etapa na vida da Nação e, depois, ser extinta. Uma vez aperfeiçoada, pode-se tornar perfeitamente legal dentro do arranjo institucional de um Estado liberal-democrático. Os Estados Unidos não deixaram de ser a mais bem-sucedida democracia liberal do mundo por causa de cotas, ao contrário, isso ajudou a América a ser mais liberal ainda.
Todavia, a política da bolsa que distribui dinheiro diretamente às pessoas que estariam ''fora do mercado'', aí, sim, é algo que tem problema. Há um problema grave nesse caso, que as pessoas sérias da esquerda deveriam ter a coragem de enfrentar. Qual problema? O da dependência e da falta de contrapartida.
O governo criou um mecanismo que deverá ser de difícil extinção. Qual candidato à Presidência poderia ser franco e fazer uma campanha dizendo que iria reduzir as bolsas? Com vontade de vencer, nenhum. Sendo assim, a bolsa gera a forçosa mentira política. Só isso já deveria bastar para que olhássemos essa política de bolsa com desconfiança. Além disso, a bolsa não contém contrapartida. Quando essa política teve sua origem, no âmbito municipal, tanto no seio do PT quanto do PSDB, a idéia era a vinculação de ajuda financeira a famílias que viessem a garantir seus filhos na escola. Isso não está mais em pauta. Há estatísticas mostrando que, a cada quatro brasileiros, um recebe bolsa e não há uma política social para induzir certa responsabilidade com os filhos e com o futuro por conta desse dinheiro.
Não estou dizendo que, com o pouco dinheiro que recebe, o pobre deveria ter um ''personal manager'' para os seus investimentos. Há quem não tenha noção da miséria do povo brasileiro e, então, reclama dos gastos do pobre. Nada disso. Reclamo do fato de que a política de bolsa não está mais comprometida com sua proposta original: o bolsista precisa mostrar que seus filhos estão sendo cotidianamente encaminhados para a escola e, mais do que isso, precisa ter apoio do Estado para que essas crianças saibam que o desempenho delas na escola ajuda na despesa familiar, em vez de ser um problema familiar.
Outro problema da política de bolsas é sua universalização. Aliás, também a de cotas sofre do mesmo mal. Quando esse tipo de política é utilizado sem critérios, então é fácil ver a direita ter razão ao colocar no mesmo baú uma bolsa para a escola do pobre e uma bolsa de indenização por prejuízos pessoais durante o tempo da ditadura militar no Brasil. Até porque, neste segundo caso, há indenizações injustas por causa do pouco dinheiro que se pagou a quem realmente foi agredido de um modo que fere a consciência humana, e há indenizações injustas por causa do muito dinheiro que se pagou a quem ''lutou contra a ditadura'' fazendo todo dia um cartum - que era o seu serviço e foi pago na época.
Cada política social que se insurge contra a ordem liberal - bolsa, cotas etc. - deve ser bem estudada para que, uma vez posta no tabuleiro político, não venha a criar um Estado corporativo em vez de criar um Estado liberal com vista à social-democracia. Na história de nosso país nem sempre tivemos isso claro. Muitas vezes, fomos abraçar o populismo e o corporativismo para escapar de liberais conservadores. Outras vezes, fomos abraçar liberal-conservadores para escapar de braços autoritários de populistas e corporativistas. Está na hora de pesarmos cada caso, elaborarmos bem a fórmula legal da proposta em pauta e termos claro que tipo de democracia queremos com a lei que fazemos. Da minha parte, ainda aposto na democracia liberal associada a políticas sociais não-corporativas como um bom caminho para um Welfare State saudável.
Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo
Site: http://www.ghiraldelli.pro.br/
extraído de
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080612/not_imp188145,0.php
recebido de Carlos Medeiros - calmed64@yahoo.com.br,
em discriminacaoracial@yahoogrupos.com.br
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