quarta-feira, 4 de março de 2009

Metamorfoses do tempo



Metamorfoses do tempo

Fernando Rego
In memoriam

Terça, 3 de março de 2009, 07h52 Atualizada às 15h19


Dizem que o remoto cardeal Nicolas de Cusa (1401-1464) viu na circunferência um polígono dotado de um incontável número de ângulos e percebeu que a reta seria uma linha infinita e também um triângulo, um círculo e uma esfera. Tal metamorfose das configurações geométricas pode ser aplicada ao tempo que, inicialmente, talvez tenha se mostrado ao homem através dos grandes fenômenos naturais para, só depois, descortinar-se a morte e a solidão.

Conhecer as diversas representações do tempo exige um profundo significado, o início do Universo. Conhecê-lo, é penetrar no mecanismo da mente divina, detectando suas possibilidades. Mas é também o desejo de alcançar a imortalidade, marca inconteste do poder e de suas manifestações cosmogônicas e históricas. Compreendê-las é a chave para desvendar o messianismo, o apocalipse e as diferentes filosofias da história.

Mircea Eliade, em O mito do eterno retorno, constrói um estudo do ser para destacar a existência de uma ontologia arcaica entre os povos "pré-modernos", geradora de arquétipos. Dentre esses, o tempo e o espaço, modelos do tempo e espaço terrestres, elementos explicativos do nascimento das coisas. O homem repete, de diferentes maneiras, o ato da criação: seu calendário religioso comemora, no espaço de um ano, todas as cosmogonias que existiram ab origina.

A busca do tempo originário tem como finalidade, para Mircea Eliade, a abolição do tempo profano. O lançar-se do homem no tempo mítico ocorre em determinadas situações especiais, quando se apresenta a possibilidade de ser ele próprio: o que acontece nos momentos dos rituais e eventos marcantes, a exemplo dos atos de alimentar-se ou reproduzir-se. O que demonstra, de maneira direta ou indireta, como as experiências sociais, culturais e individuais - internas ou externas - interferem, sobremaneira, na apreensão e no entendimento do tempo e do espaço.

Impossível apreender, de uma única vez, tudo o que se dá no tempo, posto que, na arte ou na vida, as anexações são parciais e sucessivas. É o que Proust consegue mostrar ao utilizar-se da memória e do hábito. O sentimento de posse do tempo apresenta sua virulência e epifania na literatura. Avançar e recuar, contrair e dilatar são elementos que o narrador utiliza para construir um jogo onde, algumas vezes, inexistem paradigmas.

Dotar o tempo de objeto e sentimento é torná-lo consistente; é atribuir-lhe um centro de onde os momentos são irradiados. No entanto, mais importante do que essa exposição à Proust, é o processo mítico de abolir o tempo. É mediante este ato, segundo Mircea Eliade, que aos mortos é possibilitado o retorno, já que as barreiras entre eles e os vivos se desfazem. Nesse instante paradoxal, em que o tempo é suspenso, os mortos podem conviver com os vivos. Foi recuperada a contemporaneidade.

O aspecto inexorável do tempo obriga o homem a preocupar-se com sua própria condição na eternidade. E essa eternidade o conduzirá, em circunstâncias específicas, a contemplar o Nirvana. As distintas técnicas usadas pelo yoga têm como finalidade transcender a infinita série de sofrimentos a que ele está sujeito como ser temporal.

Os diferentes modelos de relacionamento entre o homem e o tempo demonstram a existência de duas posições distintas: impotência e poder. A impotência frente ao tempo encontra-se vinculada a um imperativo cósmico, demiúrgico ou jungido à imposição da vontade divina. Nessa perspectiva, a história de Roma adquire dimensões trágicas: os romanos sentiram, várias vezes, o terror de um fim iminente da cidade, cuja duração - segundo criam - teria sido decidida no momento mesmo de sua fundação, por Rômulo. Presságio depois combatido por Virgílio, na Eneida, ao mostrar que Roma é eterna e garantida por seu poder e expansão.

Os reis ocupavam seus postos e, nestes lapsos, encarnavam e representavam o tempo. Daí suas mortes assinalarem um período. Razão pela qual os interregnos deveriam ter a menor duração possível, visto que, entre um e outro, o tempo se detinha. Entretanto, dentre todos os homens que procuraram marcá-lo, reis ou filósofos, o mais bem-sucedido foi Cristo. Nesse aspecto, obteve mais êxito do que o próprio Deus.

Na filosofia antiga, a noção de tempo famosa é a de temporalidade/rio do filósofo grego Heráclito (544-483 a.C.).


...
Que rio é este cuja fonte é inconcebível?
Que rio é este que arrasta mitologias e espadas?
Corre no sono, no deserto, num porão.
O rio me arrebata e sou esse rio.

(J.L. Borges, Heráclito)

Necessário se faz notar que a visão grega preferida do tempo, talvez por uma possível influência oriental, é a visão cíclica. Nesta, o ano é tido como um ser redondo que engloba em si todas as coisas e que cria, ao girar em torno da Terra, também circular, a noção cósmica de tempo sem princípio ou fim.

Segundo observação feita por Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C), essa ideia tem como característica a volta sobre si mesma, que não apenas une fim e princípio, como confirma a negação de todo começo e do todo fim. Na forma cíclica do tempo, qualquer início hipotético pode ser considerado como término e qualquer término será considerado início.

A concepção do tempo retornando sobre si mesmo é distinta da concepção unidimensional. Nesta, de um ponto qualquer do presente, é possível dirigir-se ao passado ou ao futuro. A infinitude é aqui representada pelas duas direções em seus ilimitados prolongamentos. Mas, de uma reta podemos pensar no seu ponto inicial e no seu ponto final, sem cairmos em contradição: um começo e um fim absolutos. Hipótese inadmissível para os gregos. Para estes, a vicissitude cíclica do tempo é a expressão mais consistente de sua eternidade: sem princípio nem fim, não gerado. Concepção presente nas correntes especulativas imbuídas de ¬religiosidade, a exemplo do orfismo que defende estar a alma humana obrigada a uma série de vidas, pelo destino da transmigração a que é submetida, em virtude de um pecado. A essa pena, imposta pelo tempo, a alma só pode libertar-se ao retomar sua forma primitiva, a pureza.

Aristóteles diz que, sem movimento, é impossível existir o tempo. Este seria eterno e contínuo, o mesmo ocorrendo com o movimento que é seu fundamento. Ao movimento real corresponde o tempo real, ao movimento ideal ou imaginário corresponde o tempo ideal ou imaginário. Portanto, existem tantos tempos quantos são os movimentos e inteligências que os comparem ou estabeleçam medidas. Mas todos podem estar contidos no movimento geral dos céus. O Universo e os corpos nele existentes são limitados e finitos.

Alguns filósofos do século XVIII dedicaram grande parte de suas análises à intenção de explicar o espaço e o tempo. Recorreram, então, a toda escala da existência "subjetiva" e "objetiva". No aspecto "subjetivo" consideraram esses dois conceitos como produtos de percepção direta interior ou da percepção exterior. Outras vezes, como criações abstratas do pensamento, ou gerados por associações de ideias.

Do ponto de vista "objetivo", o espaço e o tempo foram considerados substantivamente, com existência independente ou ainda como relações objetivas entre as coisas. A busca de um desfecho entre essas diferentes correntes do filosofar será o pensamento dominante da primeira crítica kantiana.

Martin Heidegger, na obra inconclusa Ser e Tempo, retoma o pensar grego, a investigação do tempo finito originário. Procura, assim, assegurar a gênese das formas do tempo ligadas à existência cotidiana - tanto no seu aspecto objetivo quanto no subjetivo - que determina o tempo comum. Este, ao ser dependente das diferentes formas temporais, criadas pela temporalidade imprópria, é índice da infinitude e irá abarcar os entes intramundanos, possibilitando a impressão de que deles surgiu. Esta temporalidade, que Heidegger chama de intratemporal, é datável, é extensível e é significativa ao apresentar-se "na dança infindável dos momentos" e nos referenciais reguladores: o sol ou o relógio, por exemplo. A existência cotidiana é assim conduzida desta forma: nascimento e morte, criação e destruição. Ressurge, assim, a concepção grega de Cronos.

No transformismo de Lamarck (1744-1829), os seres obedecem a uma cadeia disposta em uma sequência linear do tempo. A série de mudanças é pensada por intermédio do contínuo do espaço. Para agrupar os corpos desse mundo não basta, pois, reconhecer-lhes simplesmente similitudes no espaço; necessário precisar-lhes a sucessão no tempo.

Deve-se observar que, para alguns pensadores do século XVIII, era o tempo da Terra com seus cataclismos, suas variações de calor e mutações, que perturbavam a ordem dos seres submetidas à monotonia de um multiplicar-se sem história. Para Lamarck, ao contrário, era o tempo próprio dos seres que criava a progressão dos viventes. O tempo das circunstâncias só ocasionalmente interferia com o tempo da Terra, permitindo aos seres adaptarem-se ao meio ambiente. Portanto, dois tempos independentes e separados, com propriedades e efeitos adequados.

No século XIX, essa concepção sofre mudança, não pode haver mais que um tempo único para o conjunto do Universo. A história dos seres entrelaça-se inextrincavelmente com a Terra. Inaugura-se a era da Arqueologia e da Geologia.

O filósofo Fichte (1762-1814) afirmou em algum momento de sua vida: "Vê como nasce para ti o tempo, e verás como nasce tudo". Nos dias atuais, o astrofísico inglês Stephan Hawking, visando demonstrar a possibilidade da expansão do Universo e de um modelo do saber físico, afirma:

- Se conhecêssemos o estado inicial de nosso Universo, saberíamos toda sua história.

O tempo, então, pode ser apropriado de diferentes modos e com técnicas específicas, literárias, filosóficas ou científicas, funcionando muitas vezes como unificador dos elementos da hipótese com que se trabalha e se faz presente na aplicação prática que ela possa suscitar.

Hoje, a ciência física deixa claro muitas das ocorrências a que nosso planeta está submetido e as que nele se processam - por ação humana - são explicadas e detectadas de "pontos" fora da Terra. Isto vem determinando o povoamento acelerado do céu por artefatos criados pelo homem...

De diferentes maneiras, busca-se o tempo e dentre tantas, é provável que exista uma que explique quem é o homem e torne inteligível como ele irá comportar-se ao defrontar-se com o fim - início de muitas fábulas.

Fernando Rego, baiano de Salvador, foi filósofo. Deu aulas na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia por 25 anos. Seus ensaios compõem o livro História Noturna da Filosofia (2006, Quarteto Editora). 19 dez. 1943 - 16 jul. 2005

Mais: » Fernando Rego: pensador profundo, humano incomum

fonte da foto: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3365886-EI6581,00.html

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