Ceticismo bem brasileiro
Por Fábio de Castro
27/1/2010
Agência FAPESP – A importância do ceticismo para a história da filosofia é cada vez mais evidenciada por especialistas em todo o mundo. Mas, no Brasil, um grupo de pesquisadores foi além da exploração da dimensão histórica dessa corrente filosófica, colocando em pauta a discussão contemporânea sobre o tema e dando uma contribuição original para a teoria filosófica.
Durante quatro anos, o Projeto Temático “O significado filosófico do ceticismo”, apoiado pela FAPESP, articulou as reflexões contemporâneas sobre o tema, que ganharam corpo a partir de 1997, com a publicação do artigo O Ceticismo pirrônico e os problemas filosóficos, do filósofo Oswaldo Porchat – professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e fundador do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas –, que é considerado o marco fundador de uma vertente autenticamente brasileira do pensamento: o neopirronismo.
De acordo com o coordenador do projeto, Plínio Junqueira Smith, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em Guarulhos (SP), além da publicação de diversos artigos e da realização de encontros periódicos – que consolidaram uma rede de estudiosos do ceticismo no país –, uma das maiores conquistas do Temático foi a inserção internacional conseguida pelo grupo.
“Em filosofia, a escrita e a argumentação teórica são aspectos fundamentais da produção acadêmica e, por isso, a língua é uma barreira importante para atingir projeção internacional. Mesmo assim, fomos capazes de estabelecer um diálogo com a comunidade de filósofos de outros países”, disse Smith à Agência FAPESP.
Essa interação internacional foi possível, segundo ele, porque o grupo é bastante moderno do ponto de vista da pesquisa. “Nosso grupo, montado pelo professor Porchat, foi o primeiro no Brasil a ter uma pesquisa de ponta organizada, coletiva, com a organização de encontros sistemáticos. Foi uma iniciativa pioneira e hoje há vários grupos de alto nível no Brasil na área”, disse.
Smith, que teve sua tese de doutorado “O Ceticismo de Hume” defendida em 1991, sob orientação de Porchat, explicou que o Temático consolidou o grupo ao propor estudos em duas vertentes: a dimensão histórica e a discussão contemporânea sobre o ceticismo.
“Diferentemente das ciências, a filosofia trabalha muito com a história, alimentando-se dela. Mesmo as reflexões contemporâneas são herdeiras dos problemas trabalhados nessa perspectiva. A dimensão histórica do ceticismo vem se expandindo de maneira impressionante nos últimos 50 anos, com os estudos se multiplicando em todo o mundo. Por isso, uma das vertentes destacou esse aspecto”, explicou.
Por outro lado, o movimento iniciado com a contribuição original de Porchat – que atualizou o ceticismo tradicional à luz da filosofia analítica e da filosofia da ciência – proporcionou que os pesquisadores fossem além dos aspectos históricos.
“A filosofia não é só história e grande parte da discussão no Projeto Temático girou em torno das propostas originais de Porchat relacionadas ao neopirronismo. Essa vertente capitalizou o interesse de gente que não tinha, a princípio, interesse no ceticismo, mas estava disposta a desenvolver reflexões próprias e se aproximou do grupo ao ver que não estávamos fazendo apenas história”, disse Smith.
O neopirronismo, fundado por Porchat, é uma conciliação teórica entre o ceticismo e a filosofia analítica britânica. Isto é, trata-se de um pensamento capaz de trazer para a filosofia contemporânea as intuições básicas do antigo ceticismo pirrônico, aplicando o olhar cético sobre a cultura do mundo atual – em especial no que diz respeito a temas como a ciência moderna.
Com o neopirronismo, Porchat defende uma filosofia que acrescente algo à vida cotidiana, sob pena de se tornar um mero jogo de palavras. Essa releitura do pirronismo permite uma filosofia que, ligada ao discurso comum, permite o consenso objetivo em relação aos fenômenos. Assim, Porchat restitui à razão uma aplicação não-dogmática no domínio da experiência humana.
Descrentes por definição
O ceticismo é uma corrente filosófica que teve início com Pirro de Élis (360-275 a.C.), contemporâneo de Aristóteles (384-322 a.C.). Seu último grande representante foi Sexto Empírico, que viveu entre os séculos 2 e 3 da era cristã.
“Foi uma corrente importante e duradoura, que depois ressurgiria com força no Renascimento. Desde então, tornou-se uma preocupação constante para boa parte dos grandes filósofos”, disse Smith, mencionando os exemplos de Michel de Montaigne (1533-1592), René Descartes (1596-1650), Blaise Pascal (1623-1662), David Hume (1711-1776), Immanuel Kant (1724-1804) e Johann Fichte (1762-1814).
“Também para a chamada filosofia analítica – corrente basicamente de língua inglesa que se desenvolveu ao longo do século 20 – o ceticismo acabou sendo central. Em especial para a filosofia do conhecimento”, explicou.
Originalmente de cunho filosófico, o termo “ceticismo” caiu, mais tarde, no senso comum, com uma acepção que se contrapõe à religião. Embora essa acepção não esteja completamente fora da realidade, ela não dá conta do que é realmente o ceticismo em termos filosóficos.
“A ideia de ceticismo se relaciona, de fato, a uma forma de agnosticismo. Mas a relação entre ceticismo e religião não é muito clara e esse é justamente um dos nossos campos de investigação. Mesmo porque no século 17 alguns filósofos tentaram usar o ceticismo em defesa da religião, no que chamavam de ‘fideísmo cético’. No século 18, a aproximação com o agnosticismo e o ateísmo é muito mais forte”, disse.
A posição cética, segundo Smith, corresponde a uma descrença, mas não propriamente ao ateísmo. “Na caracterização mais geral, o cético é aquele que suspende o juízo e não acredita em nada a priori nas questões filosóficas. Ele examina os dois lados da questão criticamente e não opta por nenhum deles. Essa posição tem consequências religiosas, já que não afirma a existência ou inexistência de Deus”, apontou.
O ceticismo, então, critica a capacidade da razão humana em estabelecer provas filosóficas. Ele se opõe, portanto, não à religião, mas ao dogmatismo. “Dogma, em grego, significa ‘acreditar’. Caracterizar alguém como dogmático não tem nenhum sentido pejorativo, mas apenas descritivo: dogmático é aquele que aceita uma doutrina filosófica qualquer”, disse Smith.
Pensadores como o britânico Richard Dawkins, que defende o ateísmo em seus livros, não são considerados céticos, de acordo com Smith. “Dawkins se caracteriza como dogmático ao defender a tese de que Deus não existe. O cético não admite essa doutrina, já que não são apresentadas provas da inexistência de Deus”, afirmou.
Um dos aspectos trabalhados pelo Temático consistiu em mostrar que o ceticismo é uma forma de empirismo. “Nem todo empirista é cético, pois o cético não crê na verdade das coisas. Mas em relação a teorias científicas, ele pode aceitar uma explicação científica como mais adequada que outras, no aspecto empírico. Isto é, ele não sabe se Deus existe. Mas admite que as explicações da física para a origem da matéria são muito mais plausíveis que os argumentos religiosos”, disse.
A relação entre o ceticismo e a teoria do conhecimento é uma das discussões contemporâneas abordadas pelo grupo. “O papel do ceticismo no contexto da produção científica foi uma das discussões mais interessantes. A compreensão da própria natureza do conhecimento científico hoje passa pela questão de ceticismo. Questões como o grau de liberdade do cientista foram tratadas a fundo. O ceticismo como perspectiva para avaliar o papel da ciência também foi discutido: nos perguntamos até que ponto a verdade é um valor fundamental”, destacou o professor da Unifesp.
Houve ainda outros eixos de discussões atuais sobre o ceticismo: sua relação com a moral e a política, por exemplo. “Publicamos artigos nessa direção, que é muito pouco explorada historicamente. É relevante, atualmente, discutir que tipo de posição política o cético adota em relação à cidadania, ou às várias formas de governo e posições no espectro político”, disse.
Agencia FAPESP
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