quarta-feira, 9 de julho de 2008

O Ensino Laico

-
Jean Jaurès*

(Trechos do discurso de Castres, de 30 de julho de 1904. Trad.: JCTA)


Democracia e laicidade são dois termos idênticos. O que é a democracia? Royer-Collard, que limitou arbitrariamente a aplicação do princípio, mas dele teve ume excelente visão, deu a definição decisiva: "A democracia nada é senão a igualdade de direitos". Mas não há igualdade de direitos se a adesão deste ou daquele cidadão a esta ou aquela crença, a esta ou aquela religião, é para ele uma causa de privilégio ou uma causa de desgraça. A democracia não permite, em nenhum ato da vida civil, política ou social, que intervenha, legalmente, a questão religiosa. A democracia respeita e garante a total e necessária liberdade de todas as consciências, de todas as crenças, de todos os cultos, mas não faz de nenhum dogma a regra e o fundamento da vida social. A democracia não pergunta à criança que acabou de nascer, para reconhecer seu direito à vida, a que crença religiosa ela pertence, nem a inscreve de ofício em nenhuma Igreja. Não pergunta aos cidadãos que querem estabelecer uma família, para lhes reconhecer e garantir todos os direitos a ela relacionados, em qual religião eles fundamentam seu lar, e nem mesmo se têm uma. Não exige do cidadão, quando ele quer (...) depositar seu voto na urna, qual é seu culto e se ele tem um. (...) Não exige, dos que recorrem à justiça, que reconheçam, além do Código Civil, um código religioso e confessional. Não proíbe de modo algum o acesso à propriedade, nem a prática desta ou daquela profissão, àqueles que se recusam a assinar este ou aquele formulário e a confessar esta ou aquela ortodoxia. Protege igualmente a dignidade de todos os funerais, sem indagar se os que morreram atestaram, antes de morrer, sua esperança imortal ou se, satisfeitos com a tarefa cumprida, aceitaram a morte como o supremo e legítimo repouso . E quando soa o toque do sino da pátria em perigo, a democracia envia todos os seus filhos, todos os seus cidadãos, para enfrentar o mesmo perigo nos mesmos campos de batalha, sem se perguntar se, contra a angústia da morte que paira, eles irão buscar, no fundo do coração, um consolo nas promessas da imortalidade cristã, ou se farão apelo tão-somente àquela magnanimidade social pela qual o indivíduo se subordina e se sacrifica a um ideal superior, àquela magnanimidade natural que despreza o medo da morte como a mais degradante servidão.

E se a democracia não faz uso de nenhum sistema religioso para fundamentar todas as suas instituições, todo o seu direito político e social, família, pátria, propriedade, soberania; se ela se apóia tão-somente na igual dignidade das pessoas humanas, chamadas aos mesmos direitos e convidadas a um respeito recíproco; se ela se conduz sem nenhuma intervenção dogmática e sobrenatural, mas apenas pelas luzes da consciência e da ciência; se ela não espera o progresso senão do progresso da consciência e da ciência, vale dizer, de uma interpretação mais ousada do direito das pessoas e de um mais eficaz domínio do espírito sobre a natureza; se é assim, tenho então todo o direito de dizer que ela é fundamentalmente laica, laica tanto na sua essência quanto nas suas formas, tanto no seu princípio quanto nas suas instituições, tanto na sua moral quanto na sua economia. Ou melhor, tenho o direito de repetir que democracia e laicidade são idênticas. Mas se laicidade e democracia são indivisíveis, e se só na laicidade a democracia pode realizar sua essência e cumprir seu dever, que é o de assegurar a igualdade dos direitos, por qual contradição mortal, por qual abandono de seu direito e de todo direito, a democracia renunciaria a fazer penetrar a laicidade na educação, isto é, na instituição mais essencial, naquela que domina todas as outras, e na qual as outras tomam consciência de si mesmas e de seus princípios? De que modo a democracia, que faz circular o princípio da laicidade em todo o organismo político e social, permitiria que o princípio contrário se instalasse na educação, vale dizer, no coração mesmo do organismo? Que os cidadãos completem, individualmente, com esta ou aquela crença, com este ou aquele ato ritual, as funções laicas, o estado civil, o casamento, os contratos, é direito deles, é o direito à liberdade. Que igualmente completem, através de um ensino religioso e de práticas religiosas, a educação laica e social, é direito deles, é o direito à liberdade. Mas, do mesmo modo que constituiu sobre bases laicas o estado civil, o casamento, a propriedade, a soberania política, é sobre bases laicas que a democracia deve constituir a educação. A democracia tem o dever de educar a criança; e a criança tem o direito de ser educada segundo os princípios mesmos que assegurarão mais tarde a liberdade do homem. Não cabe a ninguém, seja indivíduo, família ou congregação, interpor-se entre esse dever da nação e esse direito da criança. Como poderá a criança estar preparada para exercer sem receio os direitos que a democracia laica reconhece ao homem, se a ela própria não lhe foi consentido exercer, de forma laica, o direito essencial que lhe reconhece a lei, o direito à educação? Como, mais tarde, levará ela a sério a distinção necessária entre a ordem religiosa, que só depende da consciência individual, e a ordem social e legal, que é essencialmente laica, se ela mesma, no exercício do primeiro direito que lhe é reconhecido e na realização do primeiro dever que lhe é imposto pela lei, é abandonada a um ataque confessional, enganada pela confusão da ordem religiosa e da ordem legal? Quem diz obrigação, quem diz lei, diz necessariamente laicidade. Do mesmo modo que não é permitido ao monge ou ao padre substituir os servidores do estado civil na escrituração dos registros, na constatação social dos casamentos, do mesmo modo que eles não podem tomar o lugar dos magistrados civis na administração da justiça e na aplicação do Código, também não podem, no cumprimento do dever social da educação, tomar o lugar dos delegados civis da nação, representantes da democracia laica. (...)

Mas por que esses a quem chamamos crentes, esses que propõem ao homem fins misteriosos e transcendentes, uma fervorosa e eterna vida na verdade e na luz, por que se recusariam eles a aceitar integralmente esta civilização moderna que, pelo direito proclamado da pessoa humana e pela fé na ciência, é a afirmação soberana do espírito? Por mais divina que seja para o crente a religião que professa, é em uma sociedade natural e humana que essa religião evolui. Essa força mística será apenas uma força abstrata e vã, sem influência e sem virtude, se não estiver em comunicação com a realidade social; e suas esperanças mais elevadas secarão, se não mergulharem suas raízes nessa realidade, se não chamarem a si todas as seivas da vida. É certo que, quando o cristianismo primeiro se insinuou e depois se instalou no mundo antigo, ele se levantava com paixão contra o politeísmo pagão e contra o furor enorme de apetites desenfreados. Mas, por mais imperioso que fosse seu dogma, não podia repudiar toda a vida do pensamento antigo; estava obrigado a levar em conta as filosofias e os sistemas, com todo o esforço de sabedoria e de razão, com toda a audácia inteligente do helenismo; e, consciente ou inconscientemente, incorporava à sua doutrina a substância mesma do livre-pensamento dos Gregos. Não recrutou seus adeptos com artifícios, isolando-os, enclausurando-os, sob uma disciplina confessional. Tomava-os em plena vida, em pleno pensamento, em plena natureza, e os cativava não por uma educação automática e exclusiva qualquer, mas por uma prodigiosa embriaguez de esperança que transfigurava, sem as abolir, as energias de suas almas inquietas. E, mais tarde, no século XVI, quando os reformadores cristãos pretenderam regenerar o cristianismo, e quebrar, como diziam, a idolatria da Igreja, que havia substituído a adoração do Cristo pela adoração de uma hierarquia humana, repudiaram eles o espírito da ciência e da razão, que se manifestava então no Renascimento? Da Reforma ao Renascimento, há certamente muitos antagonismos e contradições. Os severos reformadores censuravam aos humanistas, aos espíritos livres e flutuantes do Renascimento, seu semiceticismo e uma espécie de frivolidade. Recriminavam-nos, em primeiro lugar, por só lutar contra o papismo com ironias e críticas ligeiras, e de não ter coragem de romper revolucionariamente com uma instituição eclesiástica viciada, que mesmo as mais vivas zombarias não curariam. Recriminavam-nos, em seguida, por se deleitar tanto e perder tanto tempo com a beleza redescoberta das letras antigas, que quase voltavam ao naturalismo pagão e se ofuscavam, como curiosos e como artistas, com uma luz que deveria servir sobretudo, segundo a Reforma, para a renovação da vida religiosa e a depuração da crença cristã. Mas, apesar de tudo, apesar dessas reservas e dessas dissensões, é o espírito do Renascimento que respiravam os reformadores. Eram os humanistas, eram os helenistas que se apaixonavam pela Reforma; parecia-lhes que, durante os séculos da Idade Média, uma mesma barbárie, feita de ignorância e de superstição, havia obscurecido a beleza do gênio antigo e a verdade da religião cristã. Queriam, em todas as coisas divinas e humanas, livrar-se de intermediários ignorantes ou sórdidos, limpar a ferrugem escolástica e eclesiástica das efígies do gênio humano e da caridade divina, repudiar, para todos os livros, para os livros dos homens e para os livros de Deus, os comentários fraudulentos ou ignorados, retornar diretamente aos textos de Homero, de Platão e de Virgílio, assim como ao texto da Bíblia e do Evangelho, e reencontrar o caminho de todas as fontes, as fontes sagradas da beleza antiga, as fontes divinas da nova esperança, que uniriam sua dupla virtude na unidade viva do espírito renovado. O que significa isso? Que nunca, nem nos primeiros séculos, nem no século XVI, nem na crise das origens, nem na crise da Reforma, e por mais transcendente que fosse sua afirmação, por mais poder de anátema que sua doutrina contivesse contra a natureza e a razão, nunca pôde o cristianismo cortar suas comunicações com a vida, ou se recusar ao movimento das seivas, ao livre e profundo trabalho do espírito.

Mas, em troca do grande esforço que vai da Reforma à Revolução, o homem fez duas conquistas decisivas: reconheceu e afirmou o direito da pessoa humana, independente de toda crença, superior a toda fórmula; e organizou a ciência metódica, experimental e indutiva, que a cada dia estende seus poderes sobre o universo. Sim, o direito da pessoa humana de escolher e de afirmar livremente sua crença, qualquer que seja ela, a autonomia inviolável da consciência e do espírito e, ao mesmo tempo, o poder da ciência organizada que, pela hipótese verificada e verificável, pela observação, a experimentação e o cálculo, interroga a natureza e nos transmite suas respostas, sem mutilá-las e sem deformá-las para satisfazer a uma autoridade, a um dogma ou a um livro, eis aí as duas novidades decisivas que resumem toda a Revolução; eis os dois princípios essenciais, eis as duas forças do mundo moderno. (...)

*Jean Jaurès, político, filósofo, historiador e teórico socialista francês, nasceu em Castres, França, no dia 3 de setembro de 1859, e faleceu em Paris, no dia 31 de julho de 1914.

extraído de:
-
Os grifos, em negrito, são nossos.
-

Um comentário:

santiago disse...

eu creio que si o ensino e laico nao podemos falr de crença

a criaçao e uma crença, mais a evoluçao tambem

intao porque tem professores ensinando evoluçao

isso e crime