quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Tragédia da vida cotidiana

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Reflexão sobre o crime de Roman Polanski no contexto mundial

Terça, 6 de outubro de 2009, 08h48
Christopher Hitchens
Do The New York Times


  • Assim que você percebe a existência do código de ética chamado "excepcionalismo de Hollywood", acaba enxergando-o em qualquer lugar. Paul Shaffer, o maestro do programa de David Letterman, em seu livro "We'll Be Here for the Rest of Our Lives" (Estaremos Aqui para o Resto de Nossas Vidas) - com o sugestivo subtítulo "Uma Vibrante Saga do Showbizz" - achou que precisava dizer algumas palavras sobre a notória condenação por assassinato (cuja vítima ninguém mais lembra o nome) cometido pelo produtor musical Phil Spector. Então ele resolve dizer o seguinte: "Eu lamento pela tragédia envolvendo Phil recentemente". Isso nem chega a ser um comentário, muito menos um comentário respeitoso.

A palavra "tragédia" também foi utilizada recentemente associada ao nome de Roman Polanski. Nesse caso, parece-me um pouco mais justificada. Polanski dirigiu diversas tragédias na tela e também foi vítima de algumas infelicidades privadas. Mas a mídia agora usa "tragédia" sempre que algo ruim ocorre com pessoas boas - ou pior: pessoas famosas.

  • Os tipos de tragédia que realmente merecem esse nome são dois: hegeliana e grega. Hegel dizia que a tragédia representava dois direitos que entram em conflito. Os gregos viam a tragédia como a situação em que o homem era vítima de uma armadilha do destino. A palavra que se tem do segundo tipo de tragédia, "húbris", se aplica de várias formas a Polanski. (Pessoalmente, acho um exemplo da húbris quando ele lançou uma adaptação da famosa tragédia de Shakespeare e chamou-a de "MacBeth, um filme de Roman Polanski".) O diretor também achou que seu status de celebridade lhe daria o direito de oferecer bebida a uma garota de 13 anos, seguida de Quaalude, uma droga relaxante muscular sobre cujos efeitos não gostamos nem de pensar. Temos que admitir que isso demonstra um certo desvio de caráter.

Mas a história não terminou por aí. Em julho de 2005, Polanski aproveitou as leis britânicas para processar meus colegas da revista Vanity Fair e colher os dividendos da sua indignação. Não importam as supostas acusações - de acordo com o artigo, ele teria seduzido uma modelo escandinava com a promessa de torná-la a próxima Sharon Tate - o que importa é o absurdo de sua ousadia ao processar uma publicação por algo que envolva seus parâmetros morais.

Ele declarou: "Acho que nenhum homem se portaria dessa forma". Como assim? A corte britânica sequer deu-se o trabalho de exigir que Polanski se apresentasse no país - onde, aliás, ele nunca morou. Permitiram que ele participasse através de videoconferência, antes de lhe depositarem o dinheiro.

Isso tudo já me deu um frio na espinha. Então, em dezembro, Polanski entrou na justiça para que o caso em que se declarou culpado de abuso sexual, em Los Angeles, na década de 1970, fosse sumariamente encerrado.

Na realidade, não me espanta que a promotoria tenha reaberto um caso tão antigo. O que me causa o maior espanto é que Polanski tenha ficado tanto tempo livre, solto por aí e colhendo os louros de processos por suposta difamação, zombando da justiça e da lei.

É perturbador também que a vítima de três décadas atrás o tenha perdoado e não deseje que o caso seja reaberto - mas não faria diferença alguma se ela tivesse a mesma atitude na época. A lei condena quem molesta crianças sexualmente e o faz, em parte, para evitar que mais crianças sejam molestadas. A partir de uma ocorrência individual, seja ela qual for, estabelecemos um precedente. E isso é uma bênção.

  • Há apenas três semanas, no Iêmen, a garota Fawziya Youssef, de 12 anos, sangrou até morrer quando tentava parir seu bebê natimorto. O parto agonizante durou horas. Ela havia se casado aos 11 anos com um homem com o dobro de sua idade. A tragédia de Fawziya não é um caso isolado no Iêmen, onde aproximadamente um quarto das mulheres casa até os 15 anos e muitas estão noivas bem antes disso.

O escândalo dessa garota - e veja que "escândalo" é um eufemismo, quando a situação envolve estupro, tortura, escravidão e incesto - também faz parte do cotidiano na Arábia Saudita e vários países da região onde, além disso, adiciona-se a mutilação da genitália feminina nos primeiros anos de vida. No Irã - onde a revolução islâmica diminuiu a idade mínima para o casamento a 9 anos - a idade legal agora é 13, mas não chega a ser uma lei respeitada pela Guarda Revolucionária ao pé da letra.

  • Quem assim desejar, pode apelar para o relativismo cultural - diferentes padrões para sociedades e tradições distintas - mas o fato é que o profeta Maomé foi prometido à esposa Aisha quando ela tinha 6 anos de idade, e casaram-se quando ela tinha 9, o que serve de "estímulo", para quem gosta desse tipo de coisa e faz de tudo para mantê-la dentro da lei. Enquanto isso, o principal líder da igreja católica norte-americana é cardeal no Vaticano e há décadas trabalha para encobrir e viabilizar o abuso sexual institucionalizado de menores. Eu preferiria viver num país em que as crianças fossem protegidas e seus algozes sujeitos às penas da lei ou, pelo menos, sofressem desaprovação - o que para Hollywood não parece ser a mesma coisa.

Christopher Hitchens é jornalista, escritor e colunista de Vanity Fair e Slate Magazine. É autor do livro "Deus não é Grande: como a religião envenena tudo". Artigo distribuído pelo The New York Times Syndicate.

Fonte: Terra Magazine
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