quinta-feira, 31 de julho de 2008

Descoberto hipódromo na antiga Olímpia

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'Corrida de quadriga no hipódromo',
xilogravura baseada em desenho de Heinrich Leutemann,
em torno de 1865

Uma surpresa arqueológica: A localização do antigo hipódromo, no qual, entre outros, o imperador Nero venceu uma corrida olímpica, foi descoberta. A esta conclusão chegaram o historiador da Universidade de Mainz, Professor Norbert Müller; o arqueólogo do Museu do Esporte e Olimpismo da Alemanha, Dr. Christian Wacker e; o coordenador das escavações do Instituto Arqueológico Alemão em Olímpia, Dr. Reinhard Senff, após o termino de um projeto de pesquisa em meados de maio de 2008.

Até então, a existência do hipódromo era apenas conhecida através das fontes históricas, e nunca antes arqueologicamente comprovado. Isto surpreende, pois arqueólogos alemães pesquisam tradicionalmente este local dos antigos jogos olímpicos continuamente desde 1875, além de muitos outros arqueólogos do mundo todo que têm se preocupado com este enigma da arqueologia.

No segundo século d.C. o cronista romano Pausanias descreveu o antigo hipódromo, seus mecanismos de largada, as marcações de virada, os altares, em todos seus detalhes. Outra fonte histórica pouco conhecida do décimo-primeiro século d.C. menciona até as medidas e as proporções da construção.

Até então, pensava-se que não seria possível encontrar vestígios do hipódromo, pois a área indicada por Pausanias foi inundada, já nos tempos antigos, e posteriormente coberta por sedimentos do rio Alpheios. Nos mapas e nas descrições modernas lia-se simplesmente: “Vestígios do hipódromo inexistentes, por causa de inundações do período medieval”. Isto desafiava ainda mais os pesquisadores alemães. Pela primeira vez, e com a ajuda de métodos modernos geofísicos, a área foi sistematicamente investigada, na qual os especialistas Armin Gruber e Christian Hübner encontraram diversas irregularidades no subsolo, como por exemplo, córregos, trincheiras e paredes. De fato, também foram encontradas algumas estranhas estruturas em linha reta de aproximadamente 200 metros de extensão que os pesquisadores interligam com o estádio, localizado paralelamente ao hipódromo.

Alguns restos arquitetônicos que poderiam ser correlacionados com um santuário da deusa Demeter, e que está situado perto do hipódromo, já foram descobertos ao norte da área investigada no início do ano de 2007. Particularmente interessante mostrou-se uma estrutura circular de aproximadamente 10 metros de diâmetro que foi encontrado durante as pesquisas em meia altura do acesso norte da construção, por onde Pausanias teve acesso ao hipódromo e que poderia ser relacionada com algumas edificações sacras que este antigo cronista mencionou.

Com as investigações arqueológicas do terreno ao leste do santuário de Olímpia, financiadas através da Universidade de Mainz e pela Federação Eqüestre Internacional, foram obtidas primeiras referências concretas sobre a localização do hipódromo e de sua extensão geográfica. O Instituto Arqueológico Alemão (DAI), com sua sede em Atenas, tem prestado através de sua participação no projeto um grande serviço a história desportiva. O projeto pode ser considerado semelhante à escavação do antigo estádio de Olímpia há 50 anos (1956-61), uma nova atração para o mundo do esporte olímpico.

Fonte: Marcia De Franceschi Neto-Wacker - netomarcia@hotmail.com
recebido de Central de Notícias BrasilAlemanha
em July 30, 2008 1:36 AM


Descoberto o hipódromo onde Nero trapaceou os Jogos Olímpicos
25 de julho de 2008 - por Bruno Fiúza*

No ano de 67 d.C. os Jogos Olímpicos, então disputados na Grécia, contaram com a participação de um competidor ilustre: o lendário imperador romano Nero. Naquele ano, o imperador disputou a corrida de bigas e foi declarado vencedor mesmo tendo sido derrubado por seu cavalo e não completando o percurso. Obviamente, o imperador não foi reconhecido pelos seus talentos esportivos. Ele conquistou os louros olímpicos graças a um generoso suborno pago aos juízes que arbitravam a competição.

Após a proibição dos jogos pelo imperador romano e cristão Teodósio no século IV, porém, os vestígios do palco de uma das maiores fraudes olímpicas da Antigüidade começaram a desaparecer. Foi só no século XIX que arqueólogos alemães começaram a realizar escavações que revelaram as antigas instalações da cidade sagrada de Olímpia, onde eram realizados os jogos.

Desde 1875, os arqueólogos encontraram importantes construções, como o stadium e o templo de Zeus, mas até hoje a localização do hipódromo, onde eram realizadas as corridas de biga, continuava a ser um dos grandes mistérios de Olímpia. Segundo um comunicado divulgado no último dia 24 de julho por arqueólogos da Universidade Johannes Gutenberg, de Mainz, na Alemanha, o mistério finalmente foi revelado.

Segundo informações da agência de notícias Reuters, um grupo de pesquisadores alemães conseguiu localizar o hipódromo em maio ao realizar uma varredura geomagnética na região, que localizou uma longa pista retangular que corresponde às descrições do circuito presentes em fontes antigas. A dificuldade em localizar o hipódromo era que, ao longo dos séculos, a pista foi coberta pela lama que se acumulava nas várzeas do rio Alfeios, que passa por Olímpia.

*Bruno Fiuza É editor-assistente da revista História Viva.

extraído de


Arqueólogos alemães localizam hipódromo da antiga Olímpia

Local onde eram realizadas corridas de bigas e quadrigas da Antigüidade é determinado por cientistas alemães, que usaram modernas técnicas de geomagnetismo.

A localização do hipódromo da antiga Olímpia, na Grécia, onde se realizavam corridas de bigas e quadrigas na Antigüidade, foi determinada por arqueólogos alemães. Soterrado durante séculos, o local foi descoberto graças ao uso de técnicas modernas de rastreamento geomagnético.

A investigação numa área situada a leste do sítio arqueológico de Olímpia produziu os primeiros indícios concretos da localização da pista de corrida e das suas dimensões geográficas. Os trabalhos foram conduzidos pelo Instituto Alemão de Arqueologia (DAI), com a participação do Instituto de Ciências Esportivas da Universidade de Mainz e apoio da Associação Internacional de Hipismo.

A entrada do antigo estádio,
no sítio arqueológico de Olímpia

O hipódromo era uma imensa estrutura oval, semelhante ao Circus Maximus de Roma. Um participante constante de seus torneios era o polêmico imperador romano Nero, há cerca de 1.600 anos.

"Sem qualquer necessidade de escavação, as técnicas modernas de geomagnetismo nos deram claras indicações do local do hipódromo", disse o pesquisador Norbert Müller, da Universidade Johannes Gutenberg, de Mainz.

"Esta descoberta é uma sensação arqueológica", afirmou Müller. O hipódromo é conhecido apenas pelas descrições em textos antigos, em especial escritos do geógrafo Pausânias. Não há partes visíveis da sua estrutura.

A área onde o hipódromo foi encontrado nunca havia sido foco de investigações arqueológicas, mesmo tendo sido apontada pelos documentos antigos como o lugar de sua localização.

De acordo com as descrições de Pausânias, o hipódromo ficaria ao sul do já reconstruído estádio olímpico e deve estar vários metros abaixo da atual superfície. O relevo da região foi modificado, principalmente devido a inundações.

Foram detectadas estruturas retilíneas ao longo de uma distância de quase 1,2 quilômetro, o que cientistas acreditam ser a pista de corrida, em paralelo ao estádio.

"O DAI, com sua filial em Atenas, prestou grande serviço à história do esporte", disse Müller. Para ele, o projeto poderá se tornar uma nova atração no mundo esportivo, como as escavações no antigo estádio olímpico há 50 anos.

fonte: Agências (gr)

extraído de
(referência também para as fotos)
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terça-feira, 29 de julho de 2008

Brasil precisa formar 20 vezes mais professores de sociologia, filosofia e música

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(ouvir notícia - 1'32'' / 363 Kb) - Após o Congresso Nacional aprovar a obrigatoriedade das disciplinas de filosofia, sociologia e música na educação básica brasileira ficou constatado que o Brasil precisa de professores capacitados para lecionar as aulas. Dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) indicam que o Brasil precisará de aproximadamente 108 mil professores para cada disciplina. Para isso, será necessário formar 20 vezes mais professores por ano.

De acordo com a Capes, em sociologia, existem pouco mais de 20 mil profissionais atuando. Destes, apenas 12%, cerca de 2,5 mil, são licenciados. No ensino de filosofia, temos pouco mais de 31 mil professores, porém, apenas 23% têm formação específica.

Enquanto o país não forma a quantidade necessária de professores, as escolas deverão recorrer aos docentes formados em áreas correlatas para cobrir as vagas, como história e ciência política.

O ensino de música deverá ficar a cargo dos professores de educação artística. Segundo a Capes, o número de profissionais existente é suficiente para suprir a demanda, mas nem todos atuam em sala de aula. Além de contratar professores, as escolas também precisarão construir ambientes específicos e adquirir instrumentos musicais.

As disciplinas de música, filosofia e sociologia deverão ser ofertadas para os três anos do ensino médio, atendendo a mais de 24 mil escolas.

De São Paulo, da Radioagência NP, Vinicius Mansur.

28/07/2008

fonte:

os grifos, em bold (negrito) e cor, são nossos.
imagem: O Pensador (de Angola)
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segunda-feira, 28 de julho de 2008

A Mentira Segundo Celso Lafer

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Mário Guerreiro - Em: 23/7/2008

Em nossas freqüentes visitas de mais de 30 anos a livrarias e sebos, deparamo-nos com um livro de ensaios de Celso Lafer intitulado Desafios: ética e política (São Paulo. Siciliano.1995) em que constava um erudito ensaio sobre a mentira. Gostamos tanto que achamos interessante fazer um comentário crítico sobre o mesmo. Em uma passagem, o referido autor – ao contrário de alguns kantianos empedernidos - parece estar de acordo com Benjamin Constant em sua polêmica com Kant:

A polêmica Kant/Benjamin Constant merece registro nesta exposição porque permite colocar a seguinte pergunta básica: Por que, na tradição do pensamento ocidental, só Santo Agostinho e Kant sustentavam sem vacilação o dever da veracidade? É porque existem dificuldades para a vigência plena de uma ética de princípios [a expressão grifada é de Lafer], como sabem os juristas, que verificam com base na experiência que na prática não há princípio que não esteja sujeito à exceção na sua aplicação em casos concretos (por exemplo: a legítima defesa como exceção ao princípio de não matar). (Lafer, 1995, p.19).

Temos boas razões para entender que o supracitado autor está chamando de “ética de princípios” o mesmo que Max Weber chamava de Gesinnungsethik (ética da convicção) e assim qualificava a ética kantiana considerada por nós rigidamente deontológica. Reforça o que afirmamos o fato de Lafer recorrer ao pensamento jurídico, de modo a justificar as exceções a uma norma, ao contrário de Kant que não reconhecia exceção nenhuma ao dever da veracidade.

Lafer oferece o caso da legítima defesa como exceção ao princípio de não matar, nós observamos que, para ser fiel à ética rigidamente deontológica de Kant, entre outros percalços, não se poderia distinguir um homicídio doloso de um culposo! Mas Lafer prossegue e parece estar dizendo o mesmo que já dissemos, apenas o faz com expressões diferentes...

A defesa dos critérios das exceções à regra, na hora do processo decisório, normalmente leva em conta uma prudente avaliação dos resultados destas exceções, provocando, assim, uma interpenetração de ética dos princípios e ética dos resultados. A ética dos resultados que, na formulação de Weber corresponde à ética da responsabilidade, não parte da racionalidade do valor consagrado no princípio, mas sim da racionalidade segundo o fim – o que quer dizer, da adequação dos meios aos fins perseguidos (Lafer, 1995, 19-20). [As expressões em itálicos são de Lafer]. (não aparecem no original, conforme fonte abaixo)

Ora, adequação dos meios aos fins perseguidos é o modo como Weber define o que ele entende por racionalidade prática, mas é preciso dizer que este conceito é axiologicamente neutro (Wertfrei) para Weber, de tal modo que uma ação humana poderia estar satisfazendo esse critério e, no entanto, ser eticamente reprovável, caso meios escusos estejam atrelados a boas finalidades. Não é preciso dizer que para que uma ação humana seja eticamente correta, tanto o meio empregado como o fim visado têm que ser igualmente bons. Reiteramos e não nos cansaremos de reiterar: Os objetivos não justificam os meios.

Como já vimos, a ética da responsabilidade (Verantwortungsethik) para Weber se caracteriza como assumidamente teleológica, pois o indivíduo que age de acordo com ela, antes de realizar uma ação examina todas as conseqüências podendo ser previstas por ele e, caso ele considere que estas podem produzir maus resultados, ele se abstém de realizá-la. Esta que é a diferença em relação à ética da convicção (Gesinungsethik) em que o indivíduo age de acordo com um princípio considerado correto e não concede o menor interesse às possíveis conseqüências da sua ação. Mas Lafer completa seu pensamento dizendo:

Dessa maneira o juízo sobre a ação boa ou má vai além da prudência e torna-se técnico – o que quer dizer kantianamente, que o imperativo categórico transforma-se num imperativo hipotético – e a relação entre meios e fins tratada como derivação da relação causa-efeito. (Lafer,1995, p.20).

Não entendemos por que razão uma avaliação das possíveis conseqüências das ações que serão desempenhadas por um agente moral e que devem ser feitas pelo mesmo antes de encetar um curso de ação “vai além da prudência”. Se entendermos por “prudência” uma virtude dianoética - como Aristóteles a entenderia - que consiste em ponderar seriamente os prós e contras em relação às conseqüências de uma ação, o juízo a que se refere Lafer não “vai além da prudência”: é parte constituinte da mesma.

Quanto ao imperativo categórico, Lafer tem razão ao dizer que ele se transforma em hipotético, ao menos para um agente moral que se permite avaliar as possíveis conseqüências de suas ações e, fazendo tal coisa, diz para si mesmo algo como: “Se eu fizer x, poderá ocorrer a conseqüência y”. E ao pensar assim, decide se deve ou não fazer x. Creio que Max Weber, bem como qualquer seguidor de uma ética conseqüencialista, concordaria que esse é o procedimento a ser adotado, mas Kant não poderia concordar com essa preocupação concernente à avaliação das conseqüências de uma ação. Mas é justamente aí que Lafer extrai em seguida uma importante conclusão a respeito da mentira:

Isso, do ponto de vista do uso da mentira, significa que, para uma ética de resultados, a derrogação do princípio de veracidade pode ser fundamentada na qualidade específica da pessoa e das dimensões técnicas de suas atividades, que ensejam as assim chamadas éticas profissionais, como é o caso da ética dos médicos que coloca o problema da mentira caridosa [a expressão grifada é de Lafer] – com a intenção de ajudar o paciente ou livrá-lo de algum mal maior – e também o da ética da política [a expressão grifada é de Lafer] que Weber entende como uma ética da responsabilidade. (Lafer, 1995, p.20).

Se rejeitarmos a ética rigidamente deontológica de Kant, não teremos o menor problema em introduzir exceções ao Princípio de Veracidade que, conforme já mostramos, estão plenamente justificadas pela razão e pelo bom senso, toda vez que dizer a verdade acarreta um mal maior do que mentir e/ou fere um valor mais elevado do que ser fiel à veracidade – a vida, no exemplo dado no caso de Benjamin Constant.

Uma vez abandonado o formalismo kantiano, extremamente distanciado das situações reais em que se encontram os agentes morais em seus efetivos cursos de ação, podemos então levar em consideração aquilo que Max Scheler (1966) denominou “ética material dos valores” e as assim chamadas éticas profissionais. Tal como fez Lafer, já examinamos o caso da mentira no contexto da ética médica. Segundo pensamos o procedimento, no caso da mentira, não difere em nada do que deve ser adotado em outros contextos: deve-se mentir toda vez que dizer a verdade pode acarretar um mal maior do que não dizer e/ou fere um valor mais elevado. Mas após ter reafirmado o valor da antikantiana ética da responsabilidade, Lafer tocou num ponto extremamente delicado:

Esta, como lei especial derrogaria a geral, e como lei superior derrogaria a inferior, na formulação de Maquiavel que preferia a salvação da pátria à salvação da sua alma. Esta formulação traduz-se num dualismo, vale dizer: na autonomia da política em relação à moral e, no limite, para o ator político, a redução da moral à política, pois nessa visão, para a ação política o que conta não são os princípios, mas os resultados – as gran cose [obs. nossa: “as grandes coisas” no italiano de Maquiavel] (Lafer, 1995, p.20).

Entendendo que, por “esta”, Lafer faz referência indireta à ética na política e a contrapõe à ética da responsabilidade, ele se limita a expor a concepção de Maquiavel, que considerava sua pátria um valor mais elevado do que sua própria alma. Em outras palavras, tal como o Fausto de Goethe - ainda que visando a outra finalidade - Maquiavel estaria disposto a vender sua alma para o Diabo, se isto fosse a única maneira de salvar sua pátria. Para um indivíduo baseado na sensatez e na moderação, isto é um abominável fanatismo, porém de outra cepa diferente da do fanatismo de princípios de Kant: trata-se de um fanatismo de fins. Por exemplo: o de Stalin, que para garantir o desenvolvimento econômico da URSS, deixou 30 milhões de camponeses morrerem de fome e para quem “a morte de um indivíduo é uma tragédia, a de milhões uma estatística”.

Pensamos, no entanto, que Lafer interpreta corretamente Maquiavel quando atribui a este a autonomia da ação política em relação à ação moral e até mesmo a redução desta àquela. Ora, esta é uma inevitável conseqüência da adoção da máxima maquiavélica – tenha ele a formulado explicitamente ou não - de que Os objetivos justificam os meios. Segundo pensamos, trata-se de uma grave distorção de uma ética teleológica, como as éticas de Benjamin Constant e a de Weber. Quando se diz por exemplo que, num dilema ético, devemos sacrificar o valor menos elevado em nome do mais elevado, é porque não há uma terceira alternativa e, neste caso, optamos pela que pode produzir um mal menor.

Mas neste caso o objetivo visado não estaria justificando o meio adotado? Não, pois nos casos em que se adota tal procedimento, fica caracterizada uma atitude defensiva e preservativa de um valor mais elevado. Desse modo, quando um assaltante vocifera para nós: “A bolsa ou a vida?!”, devemos entregar nosso patrimônio (o dinheiro) com vistas a preservar nossa vida, porque a vida é mais valiosa do que o patrimônio. No entanto, não é eticamente aceitável assaltar um banco para distribuir o dinheiro entre os pobres, não porque o fim não seja louvável, mas sim o meio empregado é reprovável.

Contudo, é preciso não perder de vista que uma coisa é como os políticos agem de facto, outra, notadamente distinta, como eles devem agir de jure. A confusão do ser com o dever ser e/ou do plano da efetiva ação humana com o plano valorativo-normativo é uma das piores que se podem fazer. Se o que está em jogo é uma descrição de como os políticos se comportam no cenário político, não temos a menor dúvida de que a ética fica geralmente reduzida à política e não necessariamente em nome das “grandes coisas”, como dizia Maquiavel, porém em nome de interesses corporativos e pessoais.

Mas se o que está em jogo é uma valoração de como eles se comportam, não temos a menor dúvida em afirmar que, na maioria das vezes, eles costumam fazer coisas que nunca deveriam ter feito. E ainda que todo mundo faça determinadas coisa abomináveis, o fato de que as fazem não justifica eticamente fazê-las, nem muito menos nos obriga a fazê-las, para estar de acordo com a maioria, mas não podendo evitar que sejamos considerados indivíduos incapazes de pensar com suas próprias cabeças e adotar seus próprios valores - caindo no popular: um bando de Maria-vai-com-as-outras.

Outros artigos desse autor:
A Mentira Segundo Celso Lafer
Por que a igualdade destrói a liberdade? [Parte 3]
Por que a igualdade destrói a liberdade? [Parte 2]
Por que a Igualdade Destrói a Liberdade?
Ainda sobre essa estranhíssima coisa chamada “coincidência”
Um jogo de mostra-e-esconde
Joe Navarro, o temível pegador de cascateiros
Um direito de mentir?
Sindicalismo, peleguismo & pugilismo
A Vale vale o que vale
O supremo com a faca no pescoço
A verdadeira causa da impunidade no Brasil
Discriminação às avessas
PAC: Plano de Adiamento do Crescimento
SDF: Supremo Desatino Federal

extraído de
http://www.avozdocidadao.com.br/detailArtigo.asp?ID=288&SM=6%2321&pagina=&por=M%E1rio%20Guerreiro
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A era dos direitos

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A era dos direitos, Norberto Bobbio

Editora Campus, Rio de Janeiro, 1992

Norberto Bobbio, nascido em Turim em 1909 e morto na mesma cidade em 2004, foi um dos maiores filósofos políticos, além de historiador do pensamento político de uma cultura italiana, que por si mesma é rica neste campo do conhecimento. Para além de ter sido uma testemunha importante das três principais ideologias do século XX: o nazi-fascismo, o comunismo e a democracia liberal. Sistemas políticos e concepções doutrinárias que acabaram por resultar na divisão do mundo em dois blocos políticos, militares e ideológicos que subsistiu até 1989, com a queda do muro de Berlim.

A própria cultura política italiana foi representativa no confronto de idéias entre três pensadores das referidas correntes: o filósofo Giovanni Gentile (1875-1944), que apoiou o regime fascista; o historiador Benedetto Croce (1866-1952), personagem maior do liberalismo italiano e senador vitalício da república; e o pensador marxista Antonio Gramsci (1891-1937), escritor e líder do partido comunista. Desde cedo Bobbio colocou-se ao lado da resistência antifascista, rejeitando Gentile, mas tentando realizar a síntese entre os outros dois: Croce e Gramsci. Sobre a tradição da filosofia política italiana, vale remarcar que desde fins da Idade Média, se refletem na Itália as questões mais essenciais deste campo da filosofia, que tem como fim investigar a legitimação e a justificação do Estado e do governo. Desde os limites da organização do Estado frente ao indíviduo, com Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu e Rousseau; passando pelas relações gerais entre sociedade, Estado e moral, com Maquiavel, Augusto Comte e Antonio Gramsci; as relações entre a economia e política, com Marx, Engels e Max Weber; o poder como constituidor do indivíduo, com Foucault; até as questões sobre a liberdade, em Benjamin Constant, John Stuart Mill, Isaiah Berlin, Hannah Arendt, Raymond Aron e o próprio Norberto Bobbio; as questões sobre justiça e Direito, com Kant, Hegel, John Rawls e Jürgen Habermas; e as questões sobre participação e deliberação, com Carole Pateman, Habermas, Joshua Cohen.

Mas voltando a esta obra em epígrafe, a era dos direitos percorre os antecedentes do principal marco de conscientização dos direitos humanos e difusos, que foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem, assinada em Paris em 1948, depois do cataclisma da Segunda Grande Guerra. Logo na introdução, Bobbio nos assegura que os direitos sempre existiram, mesmo em regimes feudais, onde súditos, muito antes do advento dos cidadãos, já tinham direitos à segurança da nobreza. No capítulo sobre os fundamentos dos direitos do homem, Bobbio retorna a Kant quando define a liberdade como o mais fundamental entre os direitos fundamentais da vida, da propriedade e da justiça, esta última a própria garantia da liberdade. Reafirma também a precedência dos direitos civis e políticos diante dos direitos econômicos e sociais e acompanha Marshal na definição historiográfica obrigatória dos direitos de primeira (civis), segunda (políticos), terceira (econômicos e sociais) e quarta gerações (direitos difusos do meio-ambiente e da genética). Nesta perspectiva há que se ressaltar a corajosa tomada de posição de Bobbio quando afirma: “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas políticos”.

Se mesmo os direitos fundamentais são relativizados pela história, como a menor importância que se passou a dar ao direito da propriedade, desde o século XIX, em face da maior importância ao direito da vida, entendendo-se aí uma ameaça ao direito mais intrínseco à humanidade, que é a liberdade, como não argüir que a garantia fundamental de todos os direitos é a justiça e o estado de direito? Não serão estas as “verdades evidentes em si mesmas” a que se referia Jefferson na declaração de independência americana de 1776? Bobbio retorna a Kant que identifica a liberdade com autonomia, o direito natural do homem de obedecer apenas à lei de que ele mesmo é autor e, neste sentido, obrigar outros à esta mesma faculdade moral do homem, a este direito inato que lhe é transmitido pela sua própria natureza. A opção neste caso pela determinação do coletivo pelo individual é evidente, uma vez que a cada cidadão, um juízo e um voto, fundamento da própria democracia. Se nos estados despóticos, os indivíduos só têm deveres e quase nenhum direito e nos estados monárquicos os indivíduos só têm direitos privados, nos estados de direito os indivíduos vão dispor de direitos privados e também públicos, pois estes são estados de cidadãos. Cidadãos com plenos direitos garantidos pelo estado e, entre os quais, o direito de questionar o próprio estado, transformando-os desta forma em cidadãos do mundo. Se na Pax Perpetua, Kant afirma que se trata de um bem forçosamente universal, da mesma forma a plena cidadania é planetária e para além do próprio Estado. Antes de Kant, Locke já garantia a liberdade como igualdade diante da lei que, por sua vez, é a única forma de se garantir a segurança e a vida diante de poderes ilimitados do próprio Estado. Aqui, vale lembrar a citação de Milton Friedman, economista americano prêmio Nobel de 1976: a sociedade que coloca a igualdade à frente da liberdade irá terminar sem igualdade e sem liberdade. Quando Kant define a liberdade numa passagem da Pax Perpetua como “a liberdade jurídica e faculdade de só obedecer a leis externas às quais pude dar o meu assentimento”, teoriza sobre a Revolução Francesa e liberta definitivamente o homem de toda forma de poder patriarcal. Tomas Paine, grande articulador da revolução americana, em seu livro Common Sense (1776), já expressa a concepção de que a sociedade é boa por natureza e o Estado um mal necessário: "a sociedade é produzida pelos nossos carecimentos; o governo, pela nossa maldade. A primeira promove a nossa felicidade positivamente, unindo em conjunto os nossos afetos; o segundo, negativamente, freando nossos vicios".

Só a partir da Declaração de Independência americana é que os direitos do homem prevalecem sobre os deveres diante do Estado. Até 1776, seguindo a tradição dos códigos morais de Hamurabi, da Torá e das Doze Tábuas, as regras codificadas são mais das obrigações do que dos direitos. Mesmo os artigos da Carta Magna, de 1215, e do Bill of Rights, de 1689, estabelecem direitos concedidos pelo soberano, o que é totalmente inverso do espírito da Declaração americana que afirma uma democracia como soberania dos cidadãos, a partir da afirmação do princípio da maioria e da vontade/voto individual. Se a concepção individualista da sociedade for eliminada, não será mais possível justificar a democracia como uma boa forma de governo.

No último capítulo, Bobbio faz uma profissão de fé no progresso iluminista do Estado democrático de direito quando analisa a supremacia da tolerância mesmo em face da abolição crescente da pena de morte como direito justificado e razão de Estado.


extraído de http://www.avozdocidadao.com.br/a_era_dos_direitos.asp

mais:
O socialismo liberal de Norberto Bobbio
Legados de Norberto Bobbio - Miguel Reale
http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=117
http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u614.jhtm
http://www.erasmo.it/gobetti/
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quarta-feira, 23 de julho de 2008

O que as cotas podem dar ao Brasil

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Questionamentos à procuradora Roberta Fragoso Kaufmann

Bajonas Teixeira de Brito Junior*

Ao ler a entrevista da procuradora Roberta Fragoso Kaufmann ao Congresso em Foco (veja aqui), confesso ter sentido certo choque. Esse choque se deveu a alguns pressupostos bastante agudos em seu pensamento e que, por assim dizer, encontram-se submersos mas próximos à superfície, como os corais de Abrolhos. Quem está habituado a navegar sobre a sinuosidade dos textos, talvez não tenha como não alarmar-se com os riscos encobertos em suas palavras. Todo pensamento, como insistia o filósofo Martin Heidegger, possui um certo impensado sobre o qual se sustenta. Da minha parte, creio que alguns pensamentos são translúcidos como córregos em que se pode ver nitidamente o fundo, outros exigem que nos mantenhamos o mais alerta possível se não quisermos naufragar neles. Decida o leitor, a que tipo pertencem os argumentos apresentados pela procuradora em sua entrevista.

A palavra alemã para o verbo julgar é urteilen. Esta significa uma divisão originária, pela qual se reparte e distingue entre o justo e o injusto. O que a história brasileira apresenta hoje é a possibilidade de separar o joio do trigo. Ninguém se incomodava com os negros quando eles eram culpados do atraso brasileiro. Ninguém via problema quando se praticava o racismo dissimulado, aquele que não dá uma vaga ou um cargo ao negro não porque ele seja negro, longe disso, mas porque não é qualificado; aquele que o fazia vítima da violência policial não porque era negro, isso nunca, mas porque parecia bandido. A procuradora Kaufmann não se apercebe que, em referendando o racismo dissimulado, é a essas práticas que ela se mostra favorável:

"A adoção de cotas estimula uma discriminação reversa, em que um grupo de pessoas, no caso, os estudantes que tentam ingressar nas universidades públicas, sofre o ônus. Vivemos em uma sociedade onde o preconceito não é escancarado. As pessoas que são racistas têm vergonha de dizer que o são. Conseguimos superar a escravidão sem ter uma sociedade com ódio racial. Implementar raça como fator de segregação pode acabar com esse frágil equilíbrio."

Roberta Kaufmann acredita que se as pessoas têm vergonha de dizer que são racistas, isso não é pior, mas sim melhor. Ora, se for assim, temos que admitir que se fazem a exclusão sem dizer que estão excluindo; se maltratam sem dizer por que estão maltratando; se punem sem dizer por que estão punindo, então está tudo muito bem. O que não pode haver é ódio racial explícito. Se o preconceito existe, mas não é escancarado, muito bem. Ótimo. Não é preciso vergonha de praticar o racismo, mas sim vergonha de demonstrar racismo. Ou seja, em última instância, é necessário que as vítimas do nosso racismo continuem sem saber que elas são vítimas e que nós somos racistas. É preciso, como ela diz, sustentar essa situação de "frágil equilíbrio".

Mas, vamos perguntar, por que esse equilíbrio é frágil assim? Seria porque milhões de negros e mestiços são mantidos na condição de neoescravos? Seria porque vivem em péssimas condições de educação, saúde, moradia, segurança, alimentação, etc.? Seria porque, em vivendo assim, a qualquer momento, podem se dar conta da situação abjeta e nos brindarem com uma revolta de vastas proporções?

O sistema de cotas seria inconstitucional? Argumentar contra as cotas com a Constituição na mão é fácil, mas sabemos todos que a partir da Constituição é possível argumentar na direção contrária, apontando os diversos direitos que não são implementados, e cujos efeitos são mais danosos sobre os negros e mestiços, por serem os mais destituídos em um país de 90% de destituídos. E aí se inclui a educação básica de qualidade. Então, para ser coerente, é preciso que a procuradora argumente que o Brasil, a sociedade brasileira, é um sistema inconstitucional. Um país excessivo. Em sendo assim, porém, a exceção das cotas pertence à regra, e, portanto, à nossa constituição.

Mas, para piorar ainda mais as coisas, a procuradora Roberta Kaufmann cria um vilão oportunista e aproveitador, o negro rico. Ela não se pergunta se ele existe ou pode existir, ou seja, se para além dos delírios verbais, a situação sócio-econômica brasileira criou verdadeiramente uma camada social que possa ser designada como a dos negros ricos. Não se pergunta também se, em existindo, este grupo social seria imoral ao ponto de se aproveitar das cotas. Ao invés de refletir sobre isso, ela já nos convida a pensar que esta camada existe, e que está a espreita pronta para se apropriar delas — “Essas cotas favorecem que negros ricos entrem na universidade”. Veja-se por aí o absurdo a que está disposta a procuradora em sua argumentação: as cotas se destinavam a amenizar precariamente a situação de marginalidade dos negros que vivem na miséria, mas, como descobriu a procuradora, servirá apenas para um grupo de malandros aproveitadores, os negros ricos, se dar bem.

Mas ainda há algo pior. Este algo é a matriz de todo esse raciocínio da procuradora: que os negros, mesmo ricos, não têm capacidade para entrar na universidade pública por mérito próprio e, por isso, vão se aproveitar das Cotas. Isso, para o bom entendedor, é dito em alto e bom som. E é fácil entender. Se existem negros ricos, ou melhor, se existissem, por que não fariam estudos prévios sólidos capazes de garantirem o acesso seguro à Universidade Pública? Por que precisariam sorrateiramente valer-se da brecha das Cotas para entrarem na Universidade Pública?

Assim, a procuradora cria uma categoria imaginária de negros que: 1) tem dinheiro mas não quer gastá-lo com estudo; 2) tem chance de estudar mas não o faz (Por preguiça? Por incapacidade para aprender? Por acomodação? Por imoralidade congênita?); 3) não se vexa de, mesmo sabendo que as cotas se destinam aos destituídos, se aproveitar da oportunidade de usufruir delituosamente delas; 4) sequer possui qualquer solidariedade com os outros negros, sendo capazes de tomar deles o que seria um direito.

Não é difícil tirar essas conclusões. Elas não revelam nada de sofisticado e sutil. Ao contrário, o que desvelamos aqui são (pré)conceitos bastante toscos. Contudo, as viseiras desses mesmos preconceitos impedem a procuradora de percebê-los. Encabrestada pelos seus preconceitos, que pululam à tona do seu discurso, a procuradora não realiza os passos prévios de reflexão e consideração intelectual da matéria que sirvam para, com antecedência crítica, separar os argumentos dos preconceitos. Por isso, não posso chamar o procedimento dela senão de cegueira, uma cegueira que tem sido a tônica da argumentação da classe média no Brasil contra as cotas. É ao ler argumentos como esses, cujo fundo é formado apenas pelo lodo dos preconceitos, que concluo que mesmo com falhas a política de Cotas será, no Brasil, mais frutífera que as soluções aparentemente mais inclusivas ou democráticas dos que são contra elas. Aliás, já está sendo, nos fazendo ver como pseudos argumentos se montam exclusivamente a partir de preconceitos raciais.

São esses os pressupostos ocultos em seu discurso, quando afirma que “Essas cotas favorecem que negros ricos entrem na universidade”. São essas conseqüências que formam o seu impensado, estando em seu centro este personagem, espécie de vilão de novela, inventado para o uso ad hoc. De onde provêm tudo isso? De algo muito nosso: do arquétipo constituído na sociedade brasileira segundo o qual cada um deve estar no seu lugar. Cada macaco no seu galho. O branco deve ficar na sua e se dar o respeito porque algo muito feio é o “branco no samba”; negros e mestiços devem respeitar seu lugar, aqueles das pinturas de Portinari (e também das de Tarsila), corpo enorme e cabeça atrofiada, porque se não fazem isso caem nas categorias do “mulato pernóstico”, do “mulato sabido” ou “mulato frajola”.



Do ponto de vista da lógica social, a idéia é que quando um inferior cobiça a posição superior ele se torna mais inferior do que quando aceita sua inferioridade como natural. A fantasia argumentativa de um grupo perverso de “negros ricos” não diz outra coisa. Quem, com a seriedade necessária, se detiver a refletir sobre os impasses da sociedade brasileira, seu horror crônico à mudança, verá que esta lógica — que incrimina aqueles que querem elevar-se na escala social — é a trava que imobiliza uma sociedade muito armada contra a ascensão social. Ao desmontá-la, estaremos liberando energia para um possível devir histórico para além das ignomínias atuais. É isso que querem os defensores das Cotas.

Ao fim, na verdade, a procuradora acaba mostrando, para quem tem olhos para ver, um racismo que não é um “racismo ao contrário”, nem um “racismo reverso”, mas um que sai da clandestinidade para mostrar um furor da imaginação que, começando por ser contra as cotas, vai além, contra negros imaginários e imorais, inventando por conta própria uma camada social completa que ninguém encontrará empiricamente, nem o cientista social mais talentoso. Creio que a procuradora Roberta Kaufmann, ao fazer isso, contribui com pinceladas próprias para delinear um retrato do negro carregado nas tintas do preconceito. A suposição implícita em suas afirmações de que negros com dinheiro se aproveitariam das cotas é ofensiva e, creio, deve ser objeto de um pedido de desculpas formal, claro e inequívoco aos afrodescendentes.

Geralmente no Brasil quando somos surpreendidos no que ocultamos reagimos como ofendidos, como se não os nossos argumentos mas a nossa honra tivesse sido refutada. Assim, ao invés de estudar com atenção os que nos censuram e evitar repetir os mesmos despautérios, tendemos a vir com quatro pedras nas mãos. É o espírito do bate-boca ou da polêmica vazia que conhecemos muito bem. Estou seguro de que, até por dever de ofício, não será essa a reação da procuradora.

A procuradora crê que os brancos pobres não podem pagar pelos efeitos da escravidão porque não são culpados. De fato. A quem ocorreria pensar diferente? Num país em que, como mostrou o Ipea há poucos dias, 10% da população concentram 75% da renda, seria ignóbil pensar de outro jeito. Os brancos pobres não podem pagar porque, afinal, eles são também vítimas. Contudo, encarando o assunto com a seriedade que ele merece, faria sentido procurar por culpados, apontá-los com o dedo e responsabilizá-los pela situação dos negros hoje? Certamente que não. Supor que os defensores das cotas estão caçando culpados para jogar sobre os ombros deles o ônus de séculos de infâmia, é absurdo. Contudo, fica fácil levantar argumentos quando se enfrentam não os adversários reais mas as caricaturas desses adversários. E me parece que, em cada um de seus argumentos, a procuradora nada mais faz que rabiscar algumas mal-traçadas caricaturas, como o nosso recém-comentado “negro rico”.

Em relação a um dos critérios de inclusão nas cotas, ela afirma: “Que legitimidade tem comissões como essas? Querer que uma terceira pessoa diga a que raça eu pertenço é uma política nazista. Isso é um absurdo num sistema que tenta dar uma identificação objetiva para um critério que nunca foi objetivo.” A acusação de nazista mostra uma disposição da parte dela de raciocinar pelo paradoxo, afinal, os defensores das cotas, que pretendem estar ao lado de um grupo inferiorizado durante séculos, terminariam irmanando-se com os nazistas, para os quais a única raça legítima era a ariana. Ao fazer essa aproximação violenta, se pode dizer que a procuradora raciocina não apenas pelo paradoxo, mas também pelo paroxismo, visto que ninguém foi mais extremadamente racista que os promotores do holocausto. Muito bem.

Faz sentido essa identificação? Para revelar seu absurdo não temos mais que refletir. Em primeiro lugar, é preciso considerar que toda ideologia nazista tinha por fundo a distinção hierárquica bestial entre uma suposta raça superior e o que entendiam por raças inferiores. Fazer essa acusação aos defensores das cotas, seria um crime. O que pretendem é, muito pelo contrário, abrir caminhos de promoção àqueles que, durante séculos, foram alijados pelos que os julgavam inferiores. E aqui chegamos a um segundo ponto: quando os nazistas distinguiam entre arianos, por um lado, e eslavos, judeus, ou ciganos, por outro, não era para abrir espaços a estes últimos, e insistir na sua libertação social, mas sim para encaminhá-los às câmaras de gás e aos fornos crematórios. Portanto, não só é paradoxal e paroxista o argumento levantado pela procuradora mas é ainda, sobretudo, disparatado. Ou, dito de outro modo, é leviano, uma vez que afirmar que são nazistas os que atuam no sentido de combater as distinções de raça e classe é agredir os conceitos e desrespeitar as distinções elementares das coisas.

Penso que, de modo geral, a questão das cotas sofre em suas mãos um estreitamento que a desfigura, uma vez que o que ela entende por “reparação histórica” é algo como uma compensação mecânica. Como se se tratasse apenas de tirar de uns para dar para outros. De, por exemplo, puxar o minúsculo e puído cobertor dos brancos pobres para cobrir os negros, inclusive os “negros ricos”. Ela estreita o raciocínio para uma ação de ressarcimento de danos, que perde de vista totalmente a História. Esquece que não estamos num balcão da defensoria do consumidor, nem num juizado de pequenas causas. Estamos no palco de um julgamento muito mais complexo, e que, portanto, apresenta um arco bem mais vasto e exige uma penetração muito particular. É ele que nos obriga a concluir que cortar o nó górdio que imobiliza os negros na herança escravista é pôr em movimento a roda da História no Brasil. Ninguém se iluda: a história não começou no Brasil quando os prédios substituíram as casas-grandes. Nem, muito menos, quando as favelas tomaram o lugar das senzalas. Esse é o ponto. E é em relação a ele que o país inteiro tem a ganhar com as cotas.

*Bajonas Teixeira de Brito Junior é doutor em Filosofia, autor do ensaio, traduzido pelo filósofo francês Michael Soubbotnik, Aspects historiques et logiques de la classification raciale au Brésil (Cf. na Internet), e do livro Lógica do disparate.

A resposta da procuradora Roberta Fragoso Kaufmann a Bajonas:
Pró-cotas fingem desconhecer história do país, diz procuradora

Mais:
Cotas estimulam discriminação reversa, diz procuradora
Frei David: “As cotas estão desmascarando o vestibular”
Cotas raciais enfrentam resistência silenciosa

extraído de

Os grifos, em "bold" (negrito), são nossos.
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A reação conservadora

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Paulo Ghiraldelli Jr.

Quinta-Feira, 12 de Junho de 2008 - O Estado de São Paulo – Opinião

As políticas sociais de cunho reformista e popular estão na mira da nova onda de reações da direita brasileira. É uma reação bem menos estabanada que o ''Cansei''. No entanto, o ''Cansei'' era mais legítimo.

O ''Cansei'' era um grito. Vinha da direita? E daí? Tudo bem! O que denunciava não era algo que não poderia ser endossado por outros, distantes da direita. Aproveitava o ''caos aéreo'' (que, aliás, não se resolveu) e as atitudes desrespeitosas de membros do governo para mirar no real calcanhar-de-aquiles da ''era Lula'': a corrupção institucionalizada.

Mas, e agora? Bem, neste momento a reação que, da minha parte, não tenho medo de identificar como ''vinda da direita'' tem outros protagonistas. Seus proponentes pegam nos tropeços de Lula e seus ''companheiros'' em relação à lei formal. O alvo são as cotas, bolsas e todo tipo de ação que visa a transferir recursos e poder para aqueles que Florestan Fernandes chamava ''os de baixo''. Essa reação é bem menos interessante que a do ''Cansei'', pois não une a oposição; ela pode até estar correta em alguns casos, mas tem o grave defeito de deixar transparecer a mesquinhez (falsa ou verdadeira) de seus proponentes.

O manifesto dos ''intelectuais não-racistas contra as cotas'' é o exemplo claro de uma investida errada dos setores conservadores. E o apoio de determinados juristas a tal manifesto é pior ainda, inclusive pelos argumentos utilizados. O erro é de estratégia, além de ser uma tolice por si só. Como estratégia, não pode unir ninguém. Como verdade, não se firma, pois tem a perna curta da mentira. Dizer que o branco está sendo discriminado por causa das cotas é uma mentira deslavada, além de ser algo que cria o ódio racial no coração até daquele afrodescendente que porventura nunca se tenha sentido discriminado.


As cotas para o ensino superior são políticas que podem ser aperfeiçoadas e estão sendo aplicadas de modos diferentes em cada universidade. São políticas para trazer o negro para dentro da universidade como um local que precisa ter negros, e não como algo que deve ser visto como política educacional ou como ''ressarcimento pela escravidão''. A política de cotas deve cumprir uma etapa na vida da Nação e, depois, ser extinta. Uma vez aperfeiçoada, pode-se tornar perfeitamente legal dentro do arranjo institucional de um Estado liberal-democrático. Os Estados Unidos não deixaram de ser a mais bem-sucedida democracia liberal do mundo por causa de cotas, ao contrário, isso ajudou a América a ser mais liberal ainda.

Todavia, a política da bolsa que distribui dinheiro diretamente às pessoas que estariam ''fora do mercado'', aí, sim, é algo que tem problema. Há um problema grave nesse caso, que as pessoas sérias da esquerda deveriam ter a coragem de enfrentar. Qual problema? O da dependência e da falta de contrapartida.

O governo criou um mecanismo que deverá ser de difícil extinção. Qual candidato à Presidência poderia ser franco e fazer uma campanha dizendo que iria reduzir as bolsas? Com vontade de vencer, nenhum. Sendo assim, a bolsa gera a forçosa mentira política. Só isso já deveria bastar para que olhássemos essa política de bolsa com desconfiança. Além disso, a bolsa não contém contrapartida. Quando essa política teve sua origem, no âmbito municipal, tanto no seio do PT quanto do PSDB, a idéia era a vinculação de ajuda financeira a famílias que viessem a garantir seus filhos na escola. Isso não está mais em pauta. Há estatísticas mostrando que, a cada quatro brasileiros, um recebe bolsa e não há uma política social para induzir certa responsabilidade com os filhos e com o futuro por conta desse dinheiro.

Não estou dizendo que, com o pouco dinheiro que recebe, o pobre deveria ter um ''personal manager'' para os seus investimentos. Há quem não tenha noção da miséria do povo brasileiro e, então, reclama dos gastos do pobre. Nada disso. Reclamo do fato de que a política de bolsa não está mais comprometida com sua proposta original: o bolsista precisa mostrar que seus filhos estão sendo cotidianamente encaminhados para a escola e, mais do que isso, precisa ter apoio do Estado para que essas crianças saibam que o desempenho delas na escola ajuda na despesa familiar, em vez de ser um problema familiar.

Outro problema da política de bolsas é sua universalização. Aliás, também a de cotas sofre do mesmo mal. Quando esse tipo de política é utilizado sem critérios, então é fácil ver a direita ter razão ao colocar no mesmo baú uma bolsa para a escola do pobre e uma bolsa de indenização por prejuízos pessoais durante o tempo da ditadura militar no Brasil. Até porque, neste segundo caso, há indenizações injustas por causa do pouco dinheiro que se pagou a quem realmente foi agredido de um modo que fere a consciência humana, e há indenizações injustas por causa do muito dinheiro que se pagou a quem ''lutou contra a ditadura'' fazendo todo dia um cartum - que era o seu serviço e foi pago na época.

Cada política social que se insurge contra a ordem liberal - bolsa, cotas etc. - deve ser bem estudada para que, uma vez posta no tabuleiro político, não venha a criar um Estado corporativo em vez de criar um Estado liberal com vista à social-democracia. Na história de nosso país nem sempre tivemos isso claro. Muitas vezes, fomos abraçar o populismo e o corporativismo para escapar de liberais conservadores. Outras vezes, fomos abraçar liberal-conservadores para escapar de braços autoritários de populistas e corporativistas. Está na hora de pesarmos cada caso, elaborarmos bem a fórmula legal da proposta em pauta e termos claro que tipo de democracia queremos com a lei que fazemos. Da minha parte, ainda aposto na democracia liberal associada a políticas sociais não-corporativas como um bom caminho para um Welfare State saudável.

Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo
Site: http://www.ghiraldelli.pro.br/

extraído de
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080612/not_imp188145,0.php

recebido de Carlos Medeiros - calmed64@yahoo.com.br,
em discriminacaoracial@yahoogrupos.com.br

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quarta-feira, 9 de julho de 2008

Sob o Signo da Ilegalidade

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Esses símbolos utilizam o aparelho estatal para fazer apologia de um credo religioso com o dinheiro público, ferem a liberdade de consciência e crença, violam princípios da igualdade e da impessoalidade e legalidade da administração pública...

Daniel Sottomaior*

De nossos cinco séculos de existência, quatro se deram sob reinados cuja única justificativa vinha de um alegado direito religioso e hereditário ao poder. Infelizmente, a solidez dessa herança ainda não nos abandonou.

Ao menos no papel, o Estado brasileiro atualmente é laico, o que significa que suas instituições políticas são legitimadas principalmente pela soberania popular, e não por elementos religiosos. Como reflexo disso, e para garantir a plena liberdade religiosa, implantou-se a separação Igreja-Estado, atualmente expressa no art.19 da CF, que proíbe não só a ingerência do Estado sobre organismos religiosos, como também a interferência destes naquele.

A religião certamente conseguiu sua independência. Mas o Estado, não. Na prática, os grandes atores da cena religiosa continuam moldando políticas e ações de governo tanto no plano simbólico como no concreto, e não têm medo de dizer isso com todas as letras. Esse jogo vem interferindo diretamente na discussão legislativa e judiciária de grandes temas da sociedade e do Direito, como aborto, eugenia, células-tronco, direitos reprodutivos, homofobia, direitos da comunidade GLBT e o utros.

O direito ao divórcio, por exemplo, que pode parecer absolutamente banal, não tem sequer 21 anos no país. E o motivo não é outra senão a prevalência de pressupostos religiosos, geralmente disfarçados de "moral pública" (porque se fazem prevalecer pela pressão da maioria religiosa), por sobre os princípios elementares de direitos humanos.

Não é de se admirar que muitos cidadãos, incluindo renomados juristas, minimizem a importância da separação entre Igreja e Estado, ou afirmem que ela não deve ser absoluta, obviamente que com vistas a não largar o osso que aqui morderam quando declararam que esta seria a Terra de Vera Cruz.

Como se vê, temos uma longa tradição de abuso de direitos elementares com as mais diversas desculpas, inclusive depois da instauração da República. Por isso - como se não bastasse a injunção constitucional - é da maior importância agir com rigor no que diz respeito a uma efetiva laicidade de Estado.

Caso emblemático é o da presença de símbolos religiosos afixados em repartições públicas, notadamente no judiciário. O fato de constituírem uma tradição não lhes dá sustento jurídico em nosso ordenamento legal. Quaisquer justificativas a esse costume passam necessariamente por julgamentos de valor de motivação religiosa ("Jesus foi um grande defensor dos direitos humanos", "é uma lembrança do maior erro jurídico da história", "é um símbolo de paz, amor e justiça", etc.), portanto contrárias à laicidade do Estado.

Esses símbolos utilizam o aparelho estatal para fazer apologia de um credo religioso com o dinheiro público, ferem a liberdade de consciência e crença, violam princípios da igualdade e da impessoalidade e legalidade da administração pública, e no entanto continuam firmes e fortes em sua plena ilegalidade, plenamente ignorados até pelo Ministério Público, a despeito de demandas em contrário por quase cento e vinte anos. Cabe aos operadores de direito do futuro enfrentar essa situação com determinação e coragem, e não se render à ilegalidade da maioria, mesmo que pertençam a ela.

* Daniel Sottomaior é criador da iniciativa "Brasil para Todos" (http://www.brasilparatodos.org/), que objetiva remover todos os símbolos religiosos afixados em repartições públicas no território nacional.

extraído de
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O Ensino Laico

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Jean Jaurès*

(Trechos do discurso de Castres, de 30 de julho de 1904. Trad.: JCTA)


Democracia e laicidade são dois termos idênticos. O que é a democracia? Royer-Collard, que limitou arbitrariamente a aplicação do princípio, mas dele teve ume excelente visão, deu a definição decisiva: "A democracia nada é senão a igualdade de direitos". Mas não há igualdade de direitos se a adesão deste ou daquele cidadão a esta ou aquela crença, a esta ou aquela religião, é para ele uma causa de privilégio ou uma causa de desgraça. A democracia não permite, em nenhum ato da vida civil, política ou social, que intervenha, legalmente, a questão religiosa. A democracia respeita e garante a total e necessária liberdade de todas as consciências, de todas as crenças, de todos os cultos, mas não faz de nenhum dogma a regra e o fundamento da vida social. A democracia não pergunta à criança que acabou de nascer, para reconhecer seu direito à vida, a que crença religiosa ela pertence, nem a inscreve de ofício em nenhuma Igreja. Não pergunta aos cidadãos que querem estabelecer uma família, para lhes reconhecer e garantir todos os direitos a ela relacionados, em qual religião eles fundamentam seu lar, e nem mesmo se têm uma. Não exige do cidadão, quando ele quer (...) depositar seu voto na urna, qual é seu culto e se ele tem um. (...) Não exige, dos que recorrem à justiça, que reconheçam, além do Código Civil, um código religioso e confessional. Não proíbe de modo algum o acesso à propriedade, nem a prática desta ou daquela profissão, àqueles que se recusam a assinar este ou aquele formulário e a confessar esta ou aquela ortodoxia. Protege igualmente a dignidade de todos os funerais, sem indagar se os que morreram atestaram, antes de morrer, sua esperança imortal ou se, satisfeitos com a tarefa cumprida, aceitaram a morte como o supremo e legítimo repouso . E quando soa o toque do sino da pátria em perigo, a democracia envia todos os seus filhos, todos os seus cidadãos, para enfrentar o mesmo perigo nos mesmos campos de batalha, sem se perguntar se, contra a angústia da morte que paira, eles irão buscar, no fundo do coração, um consolo nas promessas da imortalidade cristã, ou se farão apelo tão-somente àquela magnanimidade social pela qual o indivíduo se subordina e se sacrifica a um ideal superior, àquela magnanimidade natural que despreza o medo da morte como a mais degradante servidão.

E se a democracia não faz uso de nenhum sistema religioso para fundamentar todas as suas instituições, todo o seu direito político e social, família, pátria, propriedade, soberania; se ela se apóia tão-somente na igual dignidade das pessoas humanas, chamadas aos mesmos direitos e convidadas a um respeito recíproco; se ela se conduz sem nenhuma intervenção dogmática e sobrenatural, mas apenas pelas luzes da consciência e da ciência; se ela não espera o progresso senão do progresso da consciência e da ciência, vale dizer, de uma interpretação mais ousada do direito das pessoas e de um mais eficaz domínio do espírito sobre a natureza; se é assim, tenho então todo o direito de dizer que ela é fundamentalmente laica, laica tanto na sua essência quanto nas suas formas, tanto no seu princípio quanto nas suas instituições, tanto na sua moral quanto na sua economia. Ou melhor, tenho o direito de repetir que democracia e laicidade são idênticas. Mas se laicidade e democracia são indivisíveis, e se só na laicidade a democracia pode realizar sua essência e cumprir seu dever, que é o de assegurar a igualdade dos direitos, por qual contradição mortal, por qual abandono de seu direito e de todo direito, a democracia renunciaria a fazer penetrar a laicidade na educação, isto é, na instituição mais essencial, naquela que domina todas as outras, e na qual as outras tomam consciência de si mesmas e de seus princípios? De que modo a democracia, que faz circular o princípio da laicidade em todo o organismo político e social, permitiria que o princípio contrário se instalasse na educação, vale dizer, no coração mesmo do organismo? Que os cidadãos completem, individualmente, com esta ou aquela crença, com este ou aquele ato ritual, as funções laicas, o estado civil, o casamento, os contratos, é direito deles, é o direito à liberdade. Que igualmente completem, através de um ensino religioso e de práticas religiosas, a educação laica e social, é direito deles, é o direito à liberdade. Mas, do mesmo modo que constituiu sobre bases laicas o estado civil, o casamento, a propriedade, a soberania política, é sobre bases laicas que a democracia deve constituir a educação. A democracia tem o dever de educar a criança; e a criança tem o direito de ser educada segundo os princípios mesmos que assegurarão mais tarde a liberdade do homem. Não cabe a ninguém, seja indivíduo, família ou congregação, interpor-se entre esse dever da nação e esse direito da criança. Como poderá a criança estar preparada para exercer sem receio os direitos que a democracia laica reconhece ao homem, se a ela própria não lhe foi consentido exercer, de forma laica, o direito essencial que lhe reconhece a lei, o direito à educação? Como, mais tarde, levará ela a sério a distinção necessária entre a ordem religiosa, que só depende da consciência individual, e a ordem social e legal, que é essencialmente laica, se ela mesma, no exercício do primeiro direito que lhe é reconhecido e na realização do primeiro dever que lhe é imposto pela lei, é abandonada a um ataque confessional, enganada pela confusão da ordem religiosa e da ordem legal? Quem diz obrigação, quem diz lei, diz necessariamente laicidade. Do mesmo modo que não é permitido ao monge ou ao padre substituir os servidores do estado civil na escrituração dos registros, na constatação social dos casamentos, do mesmo modo que eles não podem tomar o lugar dos magistrados civis na administração da justiça e na aplicação do Código, também não podem, no cumprimento do dever social da educação, tomar o lugar dos delegados civis da nação, representantes da democracia laica. (...)

Mas por que esses a quem chamamos crentes, esses que propõem ao homem fins misteriosos e transcendentes, uma fervorosa e eterna vida na verdade e na luz, por que se recusariam eles a aceitar integralmente esta civilização moderna que, pelo direito proclamado da pessoa humana e pela fé na ciência, é a afirmação soberana do espírito? Por mais divina que seja para o crente a religião que professa, é em uma sociedade natural e humana que essa religião evolui. Essa força mística será apenas uma força abstrata e vã, sem influência e sem virtude, se não estiver em comunicação com a realidade social; e suas esperanças mais elevadas secarão, se não mergulharem suas raízes nessa realidade, se não chamarem a si todas as seivas da vida. É certo que, quando o cristianismo primeiro se insinuou e depois se instalou no mundo antigo, ele se levantava com paixão contra o politeísmo pagão e contra o furor enorme de apetites desenfreados. Mas, por mais imperioso que fosse seu dogma, não podia repudiar toda a vida do pensamento antigo; estava obrigado a levar em conta as filosofias e os sistemas, com todo o esforço de sabedoria e de razão, com toda a audácia inteligente do helenismo; e, consciente ou inconscientemente, incorporava à sua doutrina a substância mesma do livre-pensamento dos Gregos. Não recrutou seus adeptos com artifícios, isolando-os, enclausurando-os, sob uma disciplina confessional. Tomava-os em plena vida, em pleno pensamento, em plena natureza, e os cativava não por uma educação automática e exclusiva qualquer, mas por uma prodigiosa embriaguez de esperança que transfigurava, sem as abolir, as energias de suas almas inquietas. E, mais tarde, no século XVI, quando os reformadores cristãos pretenderam regenerar o cristianismo, e quebrar, como diziam, a idolatria da Igreja, que havia substituído a adoração do Cristo pela adoração de uma hierarquia humana, repudiaram eles o espírito da ciência e da razão, que se manifestava então no Renascimento? Da Reforma ao Renascimento, há certamente muitos antagonismos e contradições. Os severos reformadores censuravam aos humanistas, aos espíritos livres e flutuantes do Renascimento, seu semiceticismo e uma espécie de frivolidade. Recriminavam-nos, em primeiro lugar, por só lutar contra o papismo com ironias e críticas ligeiras, e de não ter coragem de romper revolucionariamente com uma instituição eclesiástica viciada, que mesmo as mais vivas zombarias não curariam. Recriminavam-nos, em seguida, por se deleitar tanto e perder tanto tempo com a beleza redescoberta das letras antigas, que quase voltavam ao naturalismo pagão e se ofuscavam, como curiosos e como artistas, com uma luz que deveria servir sobretudo, segundo a Reforma, para a renovação da vida religiosa e a depuração da crença cristã. Mas, apesar de tudo, apesar dessas reservas e dessas dissensões, é o espírito do Renascimento que respiravam os reformadores. Eram os humanistas, eram os helenistas que se apaixonavam pela Reforma; parecia-lhes que, durante os séculos da Idade Média, uma mesma barbárie, feita de ignorância e de superstição, havia obscurecido a beleza do gênio antigo e a verdade da religião cristã. Queriam, em todas as coisas divinas e humanas, livrar-se de intermediários ignorantes ou sórdidos, limpar a ferrugem escolástica e eclesiástica das efígies do gênio humano e da caridade divina, repudiar, para todos os livros, para os livros dos homens e para os livros de Deus, os comentários fraudulentos ou ignorados, retornar diretamente aos textos de Homero, de Platão e de Virgílio, assim como ao texto da Bíblia e do Evangelho, e reencontrar o caminho de todas as fontes, as fontes sagradas da beleza antiga, as fontes divinas da nova esperança, que uniriam sua dupla virtude na unidade viva do espírito renovado. O que significa isso? Que nunca, nem nos primeiros séculos, nem no século XVI, nem na crise das origens, nem na crise da Reforma, e por mais transcendente que fosse sua afirmação, por mais poder de anátema que sua doutrina contivesse contra a natureza e a razão, nunca pôde o cristianismo cortar suas comunicações com a vida, ou se recusar ao movimento das seivas, ao livre e profundo trabalho do espírito.

Mas, em troca do grande esforço que vai da Reforma à Revolução, o homem fez duas conquistas decisivas: reconheceu e afirmou o direito da pessoa humana, independente de toda crença, superior a toda fórmula; e organizou a ciência metódica, experimental e indutiva, que a cada dia estende seus poderes sobre o universo. Sim, o direito da pessoa humana de escolher e de afirmar livremente sua crença, qualquer que seja ela, a autonomia inviolável da consciência e do espírito e, ao mesmo tempo, o poder da ciência organizada que, pela hipótese verificada e verificável, pela observação, a experimentação e o cálculo, interroga a natureza e nos transmite suas respostas, sem mutilá-las e sem deformá-las para satisfazer a uma autoridade, a um dogma ou a um livro, eis aí as duas novidades decisivas que resumem toda a Revolução; eis os dois princípios essenciais, eis as duas forças do mundo moderno. (...)

*Jean Jaurès, político, filósofo, historiador e teórico socialista francês, nasceu em Castres, França, no dia 3 de setembro de 1859, e faleceu em Paris, no dia 31 de julho de 1914.

extraído de:
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Os grifos, em negrito, são nossos.
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Ao arrepio da lei


10 de julho - DIA MUNDIAL DA LEI

Léo Lince*
Dom, 06 de julho de 2008 16:40

O repto terrível que Dostoievski lançou sobre o relativismo moral dos tempos modernos - “Se Deus não existe, tudo é permitido” - paira sobre os acontecimentos que, a partir do Morro da Providência, inquietam a consciência digna do cidadão brasileiro. Guardadas as proporções, a máxima poderia ser reformulada com a seguinte indagação: se as mais altas autoridades da República operam ao arrepio da lei, o que esperar de um jovem tenente do Exercito?


A cada dia que passa, na medida em que o novelo se desenrola, os jornais estampam notícias que mostram a seqüência de desacertos praticados por diferentes instituições dos três níveis do Estado brasileiro. Governos de mascates, partidos de negócios, políticos oportunistas são os ingredientes de um modelo que privatiza o poder público e afronta os valores da democracia.

O presidente da República agiu ao arrepio da lei. Quando chancelou a liberação de verba pública para uma obra de interesse eleitoral e permitiu o uso dos militares do Exército no papel de polícia e de “obreiros” do senador-candidato, ele sabia não haver amparo legal para tais procedimentos. Agora, pelo que se lê nos jornais, ele diz que não sabia que a execução da obra fora entregue a uma empresa privada. Está indignado, como se tal detalhe pudesse alterar o desfecho da tragédia.

O governador, no intervalo das múltiplas viagens, faz cara de paisagem e declarações vazias. O seu secretário de Segurança também não sabia, ou se sabia fez vista grossa, que o Exército policiava uma parte do território que, pela lei, é da sua responsabilidade. O poder público privatizado se fragmenta em hordas que não estabelecem contatos entre si.

O prefeito, que vive na “blogosfera”, ordenou a um secretário de seu precário governo que fornecesse explicações, embora tardias, interessantes. Convidada no início, a Prefeitura se recusou a participar do projeto. Além de caro e incorreto (pinta fachadas e não cuida dos banheiros), não atendia aos mais necessitados e era escancaradamente eleitoreiro. Essa mesma denúncia, que a promiscuidade política protelou, feita na época da recusa poderia ter alterado a sorte dos acontecimentos.

A Justiça Eleitoral, por conta de uma denúncia anônima, já sabia do crime eleitoral em curso na Providência. A tragédia, por certo, acelerou a decisão do embargo. Parabéns. Antes tarde do que nunca. Como a obra embargada prejudica também às vítimas da manipulação, talvez o mais correto fosse embargar a candidatura do indigitado senador. Além de estender o mesmo rigor aos que praticam transgressão semelhante nos chamados “centros sociais” e nos palanques do PAC.

O Exército, antes com boa imagem, também deve explicações. Não apenas sobre o procedimento da cadeia de comando na obra e no dia fatídico. Causa espanto uma nota no painel da FSP, intitulada “reboco de Deus”, que cita documentos do Exército segundo os quais o objetivo da malfadada obra seria “blindar 782 casas com argamassa à prova de balas de fuzil”, daí o preço alto. O mesmo jornal, ainda com base em documentos militares, fala de “cadastro e mapeamento dos moradores” e de um possível “experimento psico-social” dos militares na comunidade. Coisas misteriosas, secretas e evocativas de uma "pagina infeliz de nossa história".

As notícias recolhidas a esmo nos jornais mostram que o cidadão tem razões de sobra para se preocupar. Ainda não se sabe no que vai resultar de tamanha encalacrada. O revelado até agora, no entanto, está carregado de maus prenúncios. O episódio trágico do Morro da Providência é um retrato doloroso do atual momento político brasileiro, onde autoridades e instituições operam ao arrepio da lei.


* Léo Lince é sociólogo e mestre em ciência política pelo IUPERJ.

extraído de:
http://www.socialismo.org.br/portal/seguranca-pessoal-e-direitos-humanos/179-artigo/460-ao-arrepio-da-lei
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