quinta-feira, 21 de abril de 2011

Epistemologia, história e estudos estratégicos: Clausewitz versus Keegan


Epistemologia, história e estudos estratégicos: Clausewitz versus Keegan

Contexto int. [online]. 2010, vol.32, n.1, pp. 39-90. ISSN 0102-8529.  doi: 10.1590/S0102-85292010000100002

Contesta-se a pertinência da afirmação de que Clausewitz seria um "filósofo da guerra". Examina-se aqui a cientificidade da teoria clausewitziana da guerra à luz dos critérios de cientificidade da epistemologia de Lakatos, o que nos leva a uma confrontação, com base em uma situação histórica, entre a teoria de Clausewitz e uma teoria rival - a teoria da guerra como fenômeno cultural, de Keegan. A construção de Clausewitz possibilita-nos esperar uma situação que não é permitida pela obra de Keegan. Com base nisso, realiza-se um estudo do caso do Israel antigo, entre meados do século XIII e do século X a.C. Esse exame afere e atesta a cientificidade da teoria clausewitziana da guerra. A partir daí, argúi-se pela fundamentação dos estudos estratégicos com base na teoria clausewitziana da guerra.
Palavras-chave : Estudos Estratégicos; Teoria da Guerra; Clausewitz; Epistemologia; Keegan. 

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Hobbes como um teórico de segurança internacional

Por que ler Hobbes como um teórico de segurança internacional?

Contexto int. [online]. 2010, vol.32, n.1, pp. 09-38. ISSN 0102-8529.  doi: 10.1590/S0102-85292010000100001

Thomas Hobbes tornou-se uma figura canônica para teorias de segurança internacional, ainda que seus escritos digam relativamente pouco acerca do que chamaríamos hoje de um sistema internacional. Este artigo sugere que Hobbes permanece importante para a análise de segurança internacional, assim como para a teoria política de modo mais geral, não por desenvolver qualquer teoria coerente de Relações Internacionais, mas sim porque sua consideração sobre a soberania de Estados particulares exige uma análise sobre as condições de possibilidade externas de tais Estados. Uma política após Hobbes precisa tratar dos efeitos constitutivos de sua filosofia da história particular. Assim, este artigo propõe uma leitura política de Hobbes, a qual enfatiza sua importância para o pensamento da política moderna e de suas condições de possibilidade; de suas origens e limites, que são também nossas origens e limites enquanto sujeitos modernos.

Palavras-chave : Hobbes; Política Moderna; Segurança Internacional; Filosofia da História.

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segunda-feira, 18 de abril de 2011

Paul Ricoeur - O sentido do tempo

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Obra-prima de Paul Ricoeur investiga relação entre experiência humana e narrativa

Resenha de 'Tempo e narrativa', de Paul Ricoeur

Tempo e narrativa, de Paul Ricoeur.
Tradução de Claudia Berliner.
1.208 páginas. R$ 156 (os três volumes)




Por Júlio Cesar Machado de Paula*

Vez por outra, o mercado editorial brasileiro nos dá razões de celebração, resgatando do limbo obras que, inexplicavelmente, lá permaneciam com o frustrante rótulo de “esgotadas”. É o caso da trilogia “Tempo e narrativa”, de Paul Ricoeur, que volta às livrarias em nova e bem cuidada edição da Martins Fontes.

Por mais ampla que seja a acepção em que o tomemos, o termo filósofo jamais será suficiente para recobrir o trabalho acadêmico de Paul Ricoeur, pensador múltiplo que abarcou em sua extensa produção, além da própria filosofia, textos de historiografia, teologia, psicanálise e teoria literária. Tendo iniciado sua formação no começo da década de 1930, manteve-se atento aos principais sistemas filosóficos europeus do século XX, sabendo colher de cada um deles, mesmo dos que divergiam de sua trajetória, elementos que lhe parecessem válidos para suas próprias análises. Tal procedimento, assumidamente assistemático, foi, por um lado, alvo de críticas por parte dos que o tinham como um pensador excessivamente eclético e, por vezes, incoerente; e, por outro, motivo de elogios por parte daqueles que, como o próprio Ricoeur, não se vexavam de buscar no trabalho do outro (mesmo daquele de quem se divergia) aquilo que o nosso pensamento isoladamente não seria capaz de atingir.

Um exemplo dessa busca pelo pensamento do outro pode ser dado pela experiência de Ricoeur na academia norte-americana, especialmente por seu contato com a filosofia analítica anglo-saxônica e sua inclinação por estudar não apenas a natureza ontológica de cada categoria, mas seus mecanismos de funcionamento e de interação com o mundo. “A metáfora viva”, de 1975, primeiro fruto desse contato, determinou uma mudança significativa na trajetória de Ricoeur, assinalada, dali em diante, pela convicção de que a linguagem não deve ser vista como um mero dispositivo simbólico que torna apreensível a experiência humana, mas como um dos principais elementos constitutivos dessa mesma experiência. E é o próprio Ricoeur quem nos alerta: concebidas em conjunto, “A metáfora viva” e “Tempo e narrativa” são obras gêmeas.

Em “Réflexion Faite”, sua autobiografia intelectual, Ricoeur evidencia a tese que orientou a escrita de “Tempo e narrativa”: a existência de uma “conexão significativa” entre a função narrativa e a experiência humana do tempo, já que “o tempo se torna tempo humano na medida em que está articulado de maneira narrativa”, e, em compensação, “a narrativa é significativa na medida em que desenha as características da experiência temporal.” De caráter circular, tal hipótese é posta à prova, no primeiro momento, por um inusitado diálogo entre o Livro XI das “Confissões” de Santo Agostinho e a “Poética” de Aristóteles. O primeiro acaba concluindo pela negação ontológica do tempo, já que ele não seria mais do que um trânsito entre um futuro que ainda não é e um passado que já não é mais.

Diante do impasse, Ricoeur vislumbra na dinamicidade do conceito aristotélico de mythôs, entendido como a criação de uma estrutura de sentido, e cerne, para ele, do processo de tessitura da narrativa, a possibilidade não de definir o tempo, mas de conferir-lhe justamente uma estrutura de sentido que o torne apreensível. É por meio da tessitura narrativa, portanto, que nossa experiência com o tempo se torna significativa.

Na sequência, Ricoeur se entrega à investigação desse processo na narrativa histórica, ainda no primeiro volume, e na narrativa de ficção, objeto do segundo volume. Livre das obrigações acadêmicas, o romance constituiria, para Ricoeur, “o grande laboratório no qual o homem experimenta relações possíveis com o tempo.” Em busca de tais relações, Ricoeur se dispõe a analisar, no segundo volume, a estruturação temporal de três romances, por ele classificados como fábulas do tempo: “Em busca do tempo perdido”, de Proust, “A montanha mágica”, de Thomas Mann, e “Mrs. Dalloway”, de Virginia Woolf.

No terceiro volume da trilogia, Ricoeur prossegue em seu método de entrecruzar vozes filosóficas, desta vez, trazendo à cena o pensamento fenomenológico de Kant, Heidegger e Husserl. A intenção (bem sucedida) de Ricoeur é demonstrar como as diferentes abordagens fenomenológicas do tempo não só não resolvem o intervalo que separa o tempo cosmológico do tempo da percepção, como acabam por ampliá-lo. Não resta alternativa, pois, senão insistir no preenchimento desse intervalo por meio da incessante elaboração narrativa.

O objetivo de Ricoeur, contudo, não é analisar as abordagens fenomenológicas em si, mas propor, a partir da paradoxal concepção husserliana de duração, que engloba, a um só tempo, mecanismos de permanência (retenção da memória) e de mutação (protensão da memória), o conceito de identidade narrativa.

Para Ricoeur, a noção corrente de identidade é problemática, pois negligencia o fato de que, na origem, eram dois os termos latinos capazes de expressar tal ideia, idem e ipse, cujos valores semânticos, ainda que próximos, não se confundiam. No primeiro caso, o sentido que se destaca é o da manutenção pura e simples dos caracteres ao longo do tempo, resultando em um princípio denominado por Ricoeur de “mesmidade”. Do segundo termo, ipse, decorreria, paradoxalmente, um modelo fluido de identidade, constituído pela linguagem e regido por um princípio de “ipseidade”. Tal princípio se caracterizaria por mecanismos capazes de estabelecer compromissos com o tempo por meio da palavra, como a promessa e a profecia. Ocorre que tais mecanismos, sujeitos às intermitências da palavra, não asseguram ao sujeito a constituição de uma identidade em moldes essencialistas. Do mesmo modo, portanto, como a dinamicidade do mythôs nos leva a pensar não em uma estrutura definitiva da narrativa, mas em um processo constante de estruturação, o que a identidade narrativa salienta não é uma identidade pré-definida e estática, mas um processo constante e inconclusivo de identificação.

E é a partir justamente da identidade narrativa que Ricoeur elabora, quase transformando a trilogia em um quarteto, “O si-mesmo como um outro”, livro que aguarda, em língua portuguesa, tradução e edição à altura de sua importância. Resta torcer para que o mercado editorial nos dê mais este motivo de celebração.

* Júlio Cesar Machado de Paula é professor adjunto da Universidade Federal do Amazonas

Extraído de O Globo - Prosa & Verso
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quinta-feira, 14 de abril de 2011

Tragédia em Realengo se transforma em circo de horrores dissociado de reflexão social

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Tragédia em Realengo se transforma em circo de horrores dissociado de reflexão social

Duarte Pereira*
13-Abr-2011

"Alô, alô, Realengo:
Aquele abraço!"
(Gilberto Gil, no samba-exaltação Aquele abraço,
ao partir para o exílio, forçado pela ditadura militar)

Vêm à lembrança as advertências de Engels e de
Rosa Luxemburgo de que o declínio da civilização capitalista poderia ser seguido não por um salto socialista,
mas por uma regressão à barbárie.


A dor pelas mortes e pelos ferimentos, brutais e gratuitos, das crianças e pré-adolescentes da Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro do Realengo, na cidade do Rio de Janeiro, não deve obscurecer nossa consciência crítica.

Nada que é humano é somente individual. É individual e social. Mesmo a loucura e suas consequências.

Em que exemplos de violência e insensibilidade, reais e fictícios, o rapaz Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, ex-aluno da escola atingida, buscou inspiração? Onde conseguiu informações sobre o manejo de armas e o planejamento de massacres? Como adquiriu os dois revólveres e a farta munição que utilizou? Por que Wellington, filho de uma paciente psiquiátrica, arredio desde criança, e que já apresentava há vários meses, após o falecimento dos pais adotivos, sinais perceptíveis de descontrole e decadência pessoal, foi esquecido sozinho numa casa herdada, sem apoio nem assistência?

A forma capitalista de vida social, sobretudo em seus traços contemporâneos, engendra um individualismo cada vez mais exacerbado e uma perda crescente de atenção e solidariedade das pessoas entre si. Não é possível outra forma de sociabilidade humana, que reduza tragédias como a que ensanguentou ontem pela manhã o bairro carioca de Realengo?

Estou cada vez mais estarrecido com a cobertura predominantemente passional e facciosa da tragédia ocorrida em escola municipal do Rio de Janeiro, no bairro do Realengo.

O jovem Wellington de Oliveira, autor dos disparos que mataram e feriram alunos inocentes da escola, foi chamado de "meliante" nas primeiras declarações do policial que o abateu e continua sendo indigitado como "assassino" por quase toda a mídia, embora já se saiba que sofria de esquizofrenia desde criança. A mídia negligencia as informações de que Wellington, quando era aluno da escola, passou por vexames e humilhações por causa de sua introversão e bizarrices. Não aborda a falta de acompanhamento e tratamento adequados de um paciente diagnosticado de esquizofrenia desde criança, o que agravou a evolução de sua enfermidade. Não trata das informações sobre atentados e manejo de armas que podem ser acessadas facilmente na internet. Não reavalia a divulgação maciça, cotidiana e acrítica dos mais variados atos e formas de violência praticadas por grandes potências e contumazes delinquentes, reproduzidos em filmes de sucesso e até mesmo em jogos eletrônicos. Não esclarece como Wellington conseguiu as armas e as munições, sem as quais não poderia ter feito seus disparos cruéis e desvairados. Não alerta para a atmosfera envenenada de individualismo e competição em que a infância e a juventude vêm sendo forjadas.

Com essa cobertura irresponsável e superficial, a maioria da mídia apenas acirra a dor e as reações equivocadas dos parentes das vítimas e de um amplo setor popular. E, nesse clima irracional, as autoridades policiais já alertam para possíveis ataques de represália a familiares do jovem atirador.

São poucos também os professores e mais reduzidas ainda as entidades do magistério que têm vindo a público para lembrar a violência que se tornou endêmica nas escolas, principalmente nas escolas públicas, rebatendo a ideia de que a tragédia do Realengo possa ser considerada um fato isolado e imprevisível. Surpreende também que os movimentos de saúde, sobretudo os de saúde mental, não se empenhem em repor a apreciação do trágico acontecimento num quadro mais objetivo e multilateral, que leve em conta a condição do autor dos disparos, a falta de acompanhamento e tratamento de seu padecimento mental e as circunstâncias finais de abandono e solidão que precederam seu gesto de sofrida insanidade. Preocupa também que juristas de indiscutíveis convicções democráticas não se pronunciem para reclamar o tratamento jurídico adequado que merece um jovem esquizofrênico, mesmo que pratique atos de grande crueldade.

Abalados pelo acontecimento, que não conseguem entender satisfatoriamente, muitos parecem retroceder à Idade Média, quase pregando a condenação dos loucos como endemoninhados e bruxos e seu justiçamento nas chamas de fogueiras.

Vêm à lembrança as advertências de Engels e de Rosa Luxemburgo de que o declínio da civilização capitalista poderia ser seguido não por um salto socialista, mas por uma regressão à barbárie. É preciso insistir, portanto, na necessidade de lutar pela alternativa de uma civilização superior, socialista, baseada não apenas no poder democrático dos trabalhadores, na propriedade social dos meios de produção, no planejamento das atividades econômicas ou em serviços públicos universais e de qualidade, principalmente nas áreas de saúde, educação e previdência, mas também em valores de respeito, solidariedade e ajuda mútua no convívio social.

Questões que não querem calar

O programa “Fantástico” transmitido pela Rede Globo na noite de domingo exibiu novas reportagens sobre a tragédia que se abateu sobre a Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro do Realengo, na cidade do Rio de Janeiro. As reportagens devem ter suscitado novas preocupações nos espectadores atentos.

1) É legal e admissível que a polícia carioca repasse imagens e documentos da investigação para a Rede Globo com exclusividade, discriminando os outros veículos de comunicação?

2) Segundo as imagens transmitidas, as professoras das duas salas de aula invadidas pelo atirador foram as primeiras a fugir, deixando para trás as crianças e adolescentes pelos quais eram responsáveis. Por que a entrevistadora não questionou esse comportamento? Por que as autoridades educacionais do Rio de Janeiro não apuram, nem discutem com as famílias dos alunos, a conduta da direção, dos professores e dos funcionários da escola no episódio, até mesmo para estabelecer padrões de reação escolar na eventual repetição de ocorrências semelhantes? Segundo regra conhecida, o comandante de uma embarcação que naufraga deve ser o último a abandoná-la.

3) Relatos de colegas de Wellington de Oliveira, reproduzidos pelo programa da Globo, confirmaram que o menino introspectivo e vulnerável costumava ser objeto de gozações e humilhações na escola. Grupos de alunas o cercavam, roçando seu corpo e simulando assediá-lo sexualmente, para o sádico divertimento de outros alunos e alunas que assistiam. Em uma ocasião pelo menos, colegas mais fortes o levantaram pelas pernas, enfiaram sua cabeça numa privada e acionaram a descarga, conforme os entrevistados admitiram. Contraditoriamente, uma das professoras que abandonou precipitadamente a sala de aula, deixando para trás seus alunos, declarou enfaticamente no programa da Globo que nunca houve “histórico de violência” na Escola Municipal Tasso da Silveira. O que era feito com Wellington não configura violência e violência repetida? Como são supervisionados os banheiros, os horários de recreio e as saídas das escolas, que se têm revelado momentos e espaços críticos para a integridade e a segurança de alunas e alunos mais indefesos?

4) Conforme as declarações de um dos irmãos de criação de Wellington, a mãe deles foi chamada à escola, alertada para o comportamento discrepante do aluno e aconselhada a procurar um psicólogo ou psiquiatra para avaliá-lo. Isso foi feito? Em nossa sociedade capitalista, sobretudo na fase neoliberal e privatizante que atravessa há cerca de duas décadas, existe serviço público na região capaz de assegurar esse atendimento, tratamento e acompanhamento? Por que esses aspectos da tragédia não são pesquisados, nem discutidos?

5) Por que não têm sido ouvidos juristas competentes sobre os aspectos penais envolvidos em atos de jovens esquizofrênicos, mesmo que esses atos sejam chocantes, brutais e injustificáveis como os que abalaram a escola do Realengo? Se Wellington tivesse sobrevivido, ele poderia ser levado a júri e condenado à prisão? É correto tratá-lo raivosamente como “criminoso” e “assassino” como qualquer jovem normal e imputável, esquecendo seu prolongado e negligenciado sofrimento mental? A dor merecida pelas vítimas de sua insanidade e a solidariedade com os familiares dos alunos mortos e feridos devem impedir a solidariedade com os familiares do autor dos disparos e a compaixão pelo jovem que premeditou e executou o massacre e acabou sendo vítima de seus próprios atos tresloucados?

A tragédia do Realengo precisa ser debatida de forma séria e multilateral se a intenção for evitar a repetição de ocorrências semelhantes e não apenas disputar índices de audiência.

É preciso insistir: tudo que é humano é inseparavelmente individual e social. Inclusive a loucura e suas consequências. O capitalismo contemporâneo incentiva, mais do que nunca, o individualismo, a competição, a insensibilidade. Exalta os vencedores e despreza os derrotados. Pode queixar-se de colher os frutos de seu darwinismo social?

Internem a Globo?

O locutor William Bonner anunciou ontem à noite (11/04) em tom dramático pelo Jornal Nacional, transmitido pela Rede Globo para todo o país, que o "homem" que assassinou "covardemente" alunas e alunos da escola carioca Tasso da Silveira mantinha contatos com um grupo "terrorista" supostamente islâmico, insinuando que esse grupo o poderia ter influenciado a planejar e executar o ataque sangrento à escola.

Era o que faltava. A Globo encontrou a linha ideal de investigação policial para tentar impedir qualquer discussão séria e abrangente sobre as causas que levaram à tragédia do Realengo e para deslocar as responsabilidades por essa tragédia da direita para a esquerda do espectro político. Nada de falar na esquizofrenia do jovem Wellington de Oliveira, nem na falta de apoio e tratamento que agravou sua enfermidade. Nada de recordar as perseguições e humilhações que sofreu quando era aluno da escola atacada. Nada de mencionar as informações sobre armas e massacres que podem ser acessadas facilmente na internet. Nada de aludir à cultura de individualismo, competição e insensibilidade disseminada pelo capitalismo contemporâneo. Nada de referir-se aos filmes, jogos e exemplos de truculência e crueldade que vêm dos Estados Unidos e das outras potências imperialistas. A grande questão passou a ser, para a Globo, os contatos de Wellington com um alegado grupo "terrorista", que pode nem ser real, mas criado pela imaginação doentia do jovem.

Acresce que para os monopólios capitalistas de informação como a Globo a palavra "terrorismo" abarca tanto os atos de terror propriamente ditos e as organizações que os praticam quanto à resistência armada de povos oprimidos, como o palestino. Em contrapartida, para esses monopólios da informação, Estados, exércitos e partidos como os de Israel e dos Estados Unidos, que bombardeiam e devastam outros países e assassinam seletivamente seus líderes, não praticam o terrorismo. Assim, ao tentar envolver um suposto grupo "terrorista" nos atos tresloucados do jovem Wellington, a Globo busca comprometer setores que a população costuma considerar de esquerda no massacre justificadamente repudiado.

No esforço para montar essa versão tendenciosa, a Globo não se constrangeu sequer com uma objeção de simples bom senso: por que algum grupo terrorista, de direita ou de esquerda, teria interesse em insuflar um ataque à modesta escola municipal de bairro periférico do Rio de Janeiro?

Para revestir de alguma credibilidade a insinuação, o Jornal Nacional ouviu o ministro da Justiça que se prestou a declarar que a Polícia Federal apoiará todas as linhas de investigação da Polícia Civil do Rio de Janeiro, inclusive a do alegado envolvimento de grupo "terrorista" com as maquinações do jovem Wellington de Oliveira. O que não consegue a poderosa Globo?

*Duarte Pacheco Pereira é jornalista, escritor e ex-dirigente da Ação Popular.

Extraído de Correio da Cidadania
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