quinta-feira, 29 de março de 2012

Dois gênios da filosofia política


Dois gênios da filosofia política

JB - por  Mauro Santayana - 29/03/2012

A morte de Millôr Fernandes e de Chico Anysio é mais do que a perda de dois grandes humoristas. Chico e Millôr, cada um em seu espaço, foram importantes filósofos políticos, distanciados dos grilhões acadêmicos, e argutos observadores da realidade brasileira.
 
Millôr não dispunha dos atributos do ator de Maranguape, capaz de usar duzentas máscaras diferentes, para expor os sentimentos e o ridículo da condição humana. Nele havia a profundidade de reflexão, ancorada em uma erudição tanto mais ampla quanto menos pomposa. Ambos fustigaram a mediocridade e fizeram o povo pensar.

E me permitam defender uma categoria de pessoas a que também pertenço: aquelas que encontraram o seu caminho fora das escolas formais. Millôr e Chico foram dispensados da moldagem do ensino tradicional, mas compensaram essa aparente dificuldade na formação dialética — e ética — do trabalho. Millôr um pouco antes, no início da adolescência, ao entrar para a equipe de O Cruzeiro, e Chico, poucos anos depois, ao se tornar locutor de uma emissora de rádio. 
 
Sendo um homem do espetáculo, e vivendo tantos e tão diferentes personagens, Chico Anysio teve a vida exposta, como um eterno caçador de experiências amorosas e pai incansável. Uma psicanálise de botequim poderia explicar a sua afetuosidade insaciável, que o fez marido de tantas e tão belas mulheres, como resultado do mundo de ficção em que vivia. Os atores sempre adicionam à alma, ainda que não desejem, parcelas de seus personagens, como transplantes da emoção dos autores. Millôr não era ator, mas, sim, um excepcional pensador. Essa foi a essencial diferença entre os dois.

Foram ácidos críticos da sociedade e aplicados defensores da verdadeira razão política.

Ambos foram ácidos críticos da sociedade e aplicados defensores da verdadeira razão política. Chico exercia a sua cáustica vigilância no aparente desprezo pelas personalidades públicas. Ninguém soube caricaturar com tanta acuidade o parlamentar corrupto, do que ele, ao encarnar o deputado Justo Veríssimo. Já na fase final do regime militar, os telefonemas de Salomé, de Passo Fundo, ao presidente João Batista Figueiredo, serviram, ao mesmo tempo, de crítica ao governo e de estímulo ao movimento de redemocratização em marcha.

Millôr ia muito mais fundo. Sua crítica não se limitava à política em senso estrito, aos governos e às instituições do Estado, mas atingia, em seu âmago, a sociedade contemporânea, com seus desavisos e submissão ao efêmero. Para isso, ele sempre se abasteceu dos clássicos gregos aos autores contemporâneos, passando, naturalmente, por Shakespeare, Goethe, Schiller, Molière, Racine e tantos outros. Ele era capaz de ir adiante das reflexões desses grandes autores, ao trabalhá-las em sua fulgurante inteligência. Ele usava a erudição para resumir a sua visão do mundo em frases curtas, certeiras, surpreendentes, definitivas. 
 
Não conheci pessoalmente Chico Anysio. Meu universo era outro. Não morando no Rio, fui privado de convívio maior com Millôr. Fazíamos parte, como tantos outros de nossos contemporâneos, do Círculo de Conceição de Mato Dentro que se reunia eventualmente no apartamento de José Aparecido, em Copacabana. Ambos fomos agraciados com o título de cidadãos de Conceição o que, para os que não conheceram Aparecido, nem a cidade na Serra do Espinhaço, pode não ter qualquer importância. A cidade de Aparecido, tão forte na história e no caráter de Minas, hoje, mais do que a Itabira de Drummond, não passa de uma foto esmaecida: mineradores estrangeiros a conspurcaram, ao dilacerar as serras que a cercam e esvaziar a cidade de sua identidade e de seu caráter ancestral.

Chico e Millôr, gênios vindos do povo, foram figuras emblemáticas dessa geração singular na história do país

Entre as minhas memórias de Millôr, há a de um encontro na terra de Aparecido, em que ele, Gerardo de Mello Mourão, Newton Rodrigues e eu mesmo — não me lembro se houve outros colaboradores — redigimos longo poema sobre o aniversário de José, naquele mesmo dia, e que se iniciava com a evocação da morte de Giordano Bruno na fogueira, em 17 de fevereiro de 1600. Os versos de Millôr foram os mais fortes, mais limpos e mais significativos, naquele “abc” em louvor do aniversariante.

As sucessivas gerações de homens brilhantes, que atravessaram o século 19 e fizeram a primeira metade do século 20, de Machado e Bilac, de Lima Barreto, de Belmonte e de J. Carlos; de Graciliano, José Lins, de Getúlio Vargas e de tantos homens de gênio foi sucedida por personalidades fortes da segunda metade do século passado, algumas das quais cruzaram o milênio. Chico e Millôr, gênios vindos do povo, em sua forma de ver o mundo e nele se integrar, foram figuras emblemáticas dessa geração singular na história do país.

Uma frase de Millôr, inscrita na escultura que adorna a porta do apartamento de José Aparecido no Rio, pode resumir a sua atitude diante da vida: “Se alguém achar o vento a favor contrário, entra com o que tem”.



segunda-feira, 19 de março de 2012

Os robôs vão substituir os jornalistas?


Os robôs vão substituir os jornalistas?

19/03/2012 - 07h00
por Evgeny Morozov*

Será que a tecnologia pode ser autônoma? Será que pode ter vida própria e operar independentemente da orientação humana? Do teólogo francês Jacques Ellul ao Unabomber, essa era uma visão amplamente aceita. Mas hoje a maioria dos historiadores e sociólogos da tecnologia descarta a ideia, classificando-a como ingênua e imprecisa.

Mas considere por um momento o mundo das finanças modernas, cada vez mais dependente de operações automatizadas, com sofisticados algoritmos que encontram e exploram irregularidades nos preços invisíveis para os operadores comuns.

A revista "Forbes", uma das mais veneráveis instituições do jornalismo financeiro, agora utiliza os serviços de uma companhia chamada Narrative Science para gerar artigos on-line automaticamente sobre o que esperar dos anúncios trimestrais de resultados de empresas. Basta inserir algumas estatísticas, e o software inteligente produz artigos altamente legíveis em questão de segundos. Ou, como define a "Forbes", "a Narrative Science, por meio de sua plataforma exclusiva de inteligência artificial, transforma dados em histórias e percepções".

Fonte da imagem: link na foto
Não deixe a ironia passar despercebida: plataformas automatizadas agora "escrevem" reportagens sobre empresas que ganham dinheiro com transações automatizadas. Essas reportagens terminam influenciando o sistema financeiro e ajudam os algoritmos a identificar transações ainda mais lucrativas. Em termos práticos, o que temos é jornalismo produzido por robôs e para robôs. O único lado positivo da história é que o dinheiro todo fica para os seres humanos.

A Narrative Science é uma das diversas companhias que estão desenvolvendo software automatizado para jornalismo. Essas empresas iniciantes trabalham primordialmente em nichos de mercado --esportes, finanças, imóveis-- nos quais as reportagens tendem a seguir padrões parecidos e giram em torno de estatísticas. Agora, começam a operar também no segmento de jornalismo político. A Narrative Service passou a oferecer artigos sobre como a campanha eleitoral norte-americana aparece nas mídias sociais e que questões e candidatos são mais e menos discutidos em um determinado Estado ou região. O sistema pode até incorporar ao artigo final citações dos tuítes mais populares e mais interessantes. Nada melhor que robôs para cobrir o Twitter.

É fácil perceber por que os clientes da Narrative Science --a companhia diz contar com 30 deles-- consideram seus serviços úteis. Primeiro, ela é muito mais barata do que pagar jornalistas humanos, que de vez em quando adoecem e sempre exigem respeito. Como o "New York Times" reportou em setembro passado, um dos parceiros da Narrative Science no setor de construção paga menos de US$ 10 por um artigo de 500 palavras, e não há funcionários para reclamar de péssimas condições de trabalho. Além disso, o artigo é "redigido" em apenas um segundo. Nem mesmo ChristoperHitchens conseguiria fechar nesse prazo.

Segundo, a Narrative Science promete ser mais abrangente --e objetiva-- que qualquer repórter humano. Poucos jornalistas têm tempo para encontrar, processar e analisar milhões de tuítes, mas a Narrative Science é capaz de fazê-lo com facilidade e, o mais importante, de forma instantânea. O objetivo não é apenas reportar estatísticas sofisticadas mas também compreender o que esses números significam e informar sua importância ao leitor. A Narrative Science teria sido capaz de desvendar o caso Watergate? Provavelmente não. Mas a maioria das reportagens tem tramas bem menos complexas a desenvolver.

Os fundadores da Narrative Science afirmam que desejam simplesmente ajudar --e não exterminar-- o jornalismo. Pode bem ser que sejam sinceros. Os repórteres provavelmente odiarão a companhia, mas algumas editoras sempre preocupadas com custos certamente aceitarão sua colaboração de braços abertos. Em longo prazo, porém, o impacto cívico dessas tecnologias --que estão apenas em sua infância-- pode se provar mais problemático.

Acima de tudo, existe uma tendência clara na forma de desenvolvimento que a internet vem seguindo hoje --o esforço por personalizar as experiências on-line dos usuários. Tudo que clicamos, lemos, buscamos e assistimos on-line resulta, cada vez mais, de um esforço delicado de otimização, pelo qual nossos cliques, buscas, indicações, compras e interações anteriores determinam aquilo que surge nas telas de nossos navegadores e apps.

Até recentemente, muitos críticos da internet temiam que essa personalização da rede gerasse um mundo no qual leríamos apenas artigos que refletem nosso interesses existentes, sem que jamais tivéssemos de abandonar aquilo com que nos sentimos confortáveis. A mídia social, com sua sequência ininterrupta de links e minidebates, tornou obsoletas algumas dessaspreocupações. Mas a ascensão do "jornalismo automatizado" pode um dia apresentar um desafio novo e diferente, que os excelentes mecanismos de descoberta da mídia social ainda não são capazes de resolver: e se clicarmos no mesmo link, que em teoria conduz ao mesmo artigo, mas terminarmos lendo textos muito diferentes?

Como isso funcionaria? Imagine que meu histórico on-line sugira que eu tenho um diploma avançado e que passo muito tempo nos sites da "Economist" ou da "New York Review of Books"; como resultado, verei uma versão mais sofisticada, desafiadora e informativa da história, enquanto meu vizinho, leitor do "USA Today", recebe uma versão simplificada. Se for possível inferir que também estou interessado em notícias internacionais e em Justiça mundial, um artigo computadorizado sobre Angelina Jolie pode terminar mencionando seu novo filme sobre a guerra na Bósnia. Já o meu vizinho, obcecado por celebridades, poderia ler a mesma reportagem, mas acrescida de uma fofoca suculenta sobre Brad Pitt.

Produzir e alterar histórias instantaneamente, personalizadas de maneira a se enquadrar aos interesses e hábitos intelectuais de um dado leitor, é exatamente o que o jornalismo automatizado permite. E esse é o motivo para que nos preocupemos com a questão. Os anunciantes e as editoras adoram essa personalização, que pode convencer os usuários a passar mais tempo em seus sites. Mas as implicações sociais são bastante dúbias. No mínimo, existe o perigo de que algumas pessoas fiquem aprisionadas em um círculo vicioso de notícias, consumindo apenas junk food informativa e tendo pouca indicação de que existe um mundo diferente, e mais inteligente, ao seu alcance. E a natureza comunal da mídia social confirmaria a essas pessoas que na verdade não estão perdendo coisa alguma de importante. Naturalmente, isso também poderia ser o próximo passo na evolução das muito odiadas "fazendas deconteúdo", exemplificadas pela Demand Media.

Considerem o que pode acontecer se, como parece provável, grandes empresas de tecnologia ingressarem nesse segmento e começarem a ocupar o espaço aberto por pequenas empresas como a Narrative Science. A Amazon serve de exemplo. Seu leitor eletrônico Kindle permite que usuários procurem palavras desconhecidas em um dicionário eletrônico e que marquem suas frases favoritas em um texto. Isso poderia ser útil quando a Amazon decidir criar um serviço de notícias personalizadas completamente automático. Afinal, a Amazon já sabe que jornais leio, de que tipo de frase gosto, que palavras eu considero difíceis. E eu já tenho o aparelho deles, no qual poderia ler essas notícias --de graça!

Ou pense no Google. Não só a companhia conhece meus hábitos de consumo de informação melhor que ninguém --ainda mais depois da unificação de suas normas de privacidade--, como opera o Google News, um serviço sofisticado para agregar notícias, o que permite que a empresa acumule um conhecimento amplo sobre os assuntos correntes. E graças ao altamente popular serviço Google Translate, ela também sabe como montar sentenças legíveis.

Considerando tudo isso, a ideia de que uma maior automação poderia salvar o jornalismo parece míope. No entanto, inovadores como a Narrative Science não são culpados; se usadas de maneira estreita, suas tecnologias podem economizar custos e talvez permitir que alguns jornalistas --desde que mantenham seus empregos!-- desenvolvam projetos analíticos mais interessantes, em lugar de reescreverem a mesma matéria a cada semana.

A verdadeira ameaça vem de nossa recusa em investigar as consequências sociais e políticas de viver em um mundo no qual ler anonimamente se torna quase impossível. É um mundo que os anunciantes --e empresas como Google, Amazon e Facebook-- mal podem esperar que surja, mas também um mundo no qual o pensamento crítico, erudito e heterodoxo pode se tornar mais difícil de promover e preservar.


* Evgeny Morozov é pesquisador-visitante da Universidade Stanford e analista da New America Foundation. É autor de "The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom" (a ilusão da rede: o lado sombrio da liberdade na internet). Tem artigos publicados em jornais e revistas como "The New York Times", "The Wall Street Journal", " Financial Times" e "The Economist". Lançará em 2012 o livro "Silicon Democracy" (a democracia do silício). Escreve [na FSP] às segundas-feiras, a cada quatro semanas.

Tradução de Paulo Migliacci

Extraído de FSP

Miguel de Cervantes: filosofia política, legado e atualidade


Dom Quixote, por Pablo Picasso

O novo Estado moderno substituiu o livro do profeta pelo livro da constituição
A filosofia política de Cervantes


Por Nivaldo Cordeiro
4/10/2010

Qual a grande mensagem política do romance Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes? Em primeiro lugar, sua constatação que o homem vulgar estava se apossando do poder de Estado. Isso fica explícito no desejo realizado de Sancho Pança de assumir o governo de uma ínsula (esta palavra é uma referência ao primeiro Estado nacional moderno, a Sicília de Frederico II) e também no fato de o duque rebaixar-se a fazer troça do próprio poder, nivelando-se a Sancho Pança.

Essa visão de Miguel de Cervantes é o fundamento do clássico livro de Ortega y Gasset, A REBELIÃO DAS MASSAS, obra primorosa que deu as necessárias respostas aos acontecimentos do século XX. Ortega nada criou, apenas adaptou as observações cervantinas aos acontecimentos de seu tempo. A rebelião das massas é a outra face da moeda do desaparecimento das elites, que sempre foram as condutoras dos destinos políticos. A democracia moderna é a manifestação histórica acabada desse fenômeno político.

Em segundo lugar, Cervantes apontou o mouro como o inimigo da civilização européia. Aqui está também outro caráter visionário do romancista espanhol. Quando ele se refere ao mouro refere-se ao islã em geral. O mouro é o inimigo espiritual da civilização e o que há de mais mourisco no Estado moderno é que ele imita o modo de ser islâmico, elevando o Estado a uma condição divina. A Europa, ao abandonar o cristianismo, na verdade mourificou o Estado, transferindo para a lei positiva a autoridade da lei divina, o que não havia antes na civilização cristã. O Ocidente inovou por acrescentar a esse modo islâmico de cultivar o poder a função legislativa fundada na razão. O Islã ficou estagnado no século VII porque o legislador foi o próprio profeta, enquanto o Estado nacional moderno colocou na razão a fonte da lei, agora atualizada diariamente.

O direito natural moderno, em tudo oposto ao direito natural clássico, humanizou o poder legislativo no pior sentido da expressão. Nesse passo consiste o pacto faustico da modernidade: a elevação do homem a um condição divina. O jusnaturalismo moderno teria que desaguar necessariamente no positivismo jurídico mais cru, perdendo-se completamente o nexo entre a fonte transcendente da lei e a legislação positiva. O novo Estado moderno deificou-se e substituiu o livro do profeta pelo livro da constituição. Nem na antiguidade se permitiu tamanha blasfêmia. Os romanos, por exemplo, sabiam que os augúrios eram algo separado das decisões de Estado.

O famoso discurso de Dom Quixote pela liberdade, ao sair dos domínios do duque, equivale à fuga de Moisés para Canaã. Não é apenas a liberdade diante da ordem maligna, é a própria fuga do jugo do Faraó, em busca de uma pátria sem Estado, fora dos domínios do reino desse mundo. Cervantes anteviu o que estava por vir ao publicar seus livros. A deificação do Estado levaria mesmo à destruição da liberdade, marcha na qual o Ocidente tem empreendido desde os tempos da renascença.

A combinação da deificação da lei positiva fundada na razão com a emergência do homem-massa ao poder, a chegada dos piores ao poder, leva a periódicos delírios fausticos ditatoriais e a guerras de extermínio impiedosas. Homens moralmente inferiores tomando decisões insensatas, capazes de serem postas em prática pelos recursos permitidos pelas técnicas modernas. A motivação é que os homens modernos estão firmemente convencidos de que a humanidade é passível de aperfeiçoamento pela lei estatal, ignorando a antropologia cristã. Daí as usinas de fabricação de leis que se tornaram os legislativos modernos. Legislar é aperfeiçoar o homem, coisa que o cristianismo, desde o início, tomou como coisa blasfema e perigosa.

Uma terceira contribuição de Miguel de Cervantes foi demonstrar que essa tentativa de perfectibilismo e de deificação do Estado levava ao mergulho na Segunda Realidade, desconectada do real. O instrumento de mergulho na Segunda Realidade é a lei positiva desconectada da lei natural e da lei divina. A coisa toda se torna um delírio de poder totalitário, capaz dos maiores e mais horrendos crimes. Vimos isso no comunismo e no nazismo, mas vimos também, em graus variados, em todos os Estados modernos. Aqui mesmo no Brasil tivemos esses delírios, a começar pelo massacre criminoso perpetrado em Canudos pelos positivistas que fundaram a República. Canudos é o crime original da nossa modernidade.

O filósofo que levou às últimas conseqüências a tese da criação da Segunda Realidade foi Eric Voegelin e foi ele quem deu a explicação definitiva do nazismo como fenômeno político dessa Segunda Realidade medonha.

Cervantes é atualíssimo. Compreender seu Dom Quixote é um antídoto para os perigos dos tempos. Retirar todas as conseqüências da obra é criar um bote salva-vidas contra os grandes perigos que estão à espreita nesse início de século e de milênio. Mas é também retornar ao cristianismo ortodoxo, algo que apavora os modernos ateus e agnósticos. Não deixa de ser irônico que estes abandonaram o cristianismo e abraçaram o profeta Maomé sem nem mesmo o saber. Eles não lêem Miguel de Cervantes.

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Qual é a filosofia política estampada por Cervantes no Dom Quixote?
O legado de Cervantes


Por Nivaldo Cordeiro
21/7/2010

Se é imensa a contribuição de Miguel de Cervantes à filosofia política, ao destrinchar o mecanismo da Segunda Realidade revolucionária, típica dos tempos modernos, penso que esta contribuição específica se restringe mais ao campo da psicologia coletiva do que propriamente ao âmbito da política. É certo que esse mecanismo psicológico terá o poder de descrever tudo o que se passou desde o século XVI e seu poder explicativo se prolonga até os nossos dias. É impossível compreender os acontecimentos, nacionais e mundiais, sem ter à mão a genial descoberta cervantina.

Bem que se diga que a questão da loucura estava na ordem do dia no Renascimento. Erasmo explorou o tema em obra genial (ELOGIO À LOUCURA). Shakespeare terá em vários personagens a manifestação de loucura. Mas apenas Cervantes transformará a observação no prognóstico dos tempos que virão. Ortega y Gasset, em ensaio genial (IDEAS Y CREENCIAS), irá associar a modernidade à razão (físico-matemática assim como às de Estado, desconhecida esta na Idade Média), em substituição à fé em Deus dos tempos medievais. Não há dúvida de que a loucura coletiva será filha dessa hipertrofia da razão, elevada à condição de deusa por ocasião da Revolução Francesa.

Qual é a filosofia política estampada por Cervantes no Dom Quixote? Penso que em três momentos temos o tema abordado de forma saliente. O primeiro é quando, no capítulo XXII do Primeiro Livro, o Cavaleiro da Triste Figura liberta os condenados às galés. Ali estava a escória da sociedade, os criminosos mais perigosos. Eram doze e esse número não ao acaso equivale ao número dos apóstolos de Cristo. A modernidade escravizou de forma mais vil a fé cristã. A moral cristã passa a ser tida como o comportamento anti-social por excelência, contra a qual se insurgem todas as revoluções, a começar pela protestante. Ao largo da questão religiosa, todavia, convém ter em conta a biografia do próprio Cervantes, várias vezes jogado nos cárceres imundos do Estado espanhol por crimes que não cometeu.

Quixote pergunta a Sancho, ao ver os condenados conduzidos por soldados: “Como gente forzada? Es posible que El Rey haga fuerza a ninguna gente?” Quixote fica inconformado com a situação de que gente pudesse ser levada contra sua própria vontade e dá seu brado de liberdade: “...aquí encaja la ejecución de mi oficio: desfazer fuerzas e socorrer y acudir a los miserables”. Ato contínuo, partiu para libertar os prisioneiros.

Sem dúvida estamos aqui diante da perspectiva radicalmente cristã do direito, contrária à ordem estatal da modernidade. Cervantes anteviu o que viria nos séculos posteriores: hoje as multidões estão sendo encarceradas em proporções nunca vistas. Não custa lembrar que o Estado da Flórida, nos EUA, já chegou ao limite de ter dentro das prisões 5% de sua população masculina adulta. Os negros, tomados individualmente, já são 15% dos homens adultos feitos prisioneiros. É a hora do cavaleiro andante passear pelas terras do Tio Sam.

Outro momento importante da obra no tocante à ciência política está no capítulo LX do Segundo Livro, quando Dom Quixote e Sancho Pança são feitos prisioneiros do bando de Roque Guinart. O cavaleiro constatou que, mesmo numa sociedade constituída por delinqüentes, a justiça distributiva, nos termos aristotélicos ou do direito romano (geométrica, “dar a cada um o que é seu”), precisa prevalecer, sob pena de se dissolver o núcleo social. Não é privilégio de uma sociedade política institucionalmente organizada praticar tal distribuição do direito, que é “natural”. O direito depende da força, mas não tem nela sua fonte. A reflexão cervantina serve para nos alertar da necessidade e dos limites da ação dos operadores do direito. Em resumo, do Estado e seu direito não depende a liberdade enquanto tal.

Por último, depois de viver as aventuras na corte do duque, Dom Quixote parte e profere as magníficas palavras, uma ode à liberdade (capítulo LVIII do Segundo Livro): “La liberdad, Sancho, es uno de los más preciosos dones que los hombres dieron los céus; com ella no poeden igualarse los tesoros que encierra la terra ni el mar encubre; por la liberdad así como por la honra se puede y debe aventurar la vida; y, por lo contrario, el cautiverio es el mayor mal que pode venir a los hombres.”

A mania moderna de ligar a liberdade ao poder de Estado pode ser, e parece de fato, sua grande armadilha. Quanto mais se clama pela lei do Estado, mais se reduz a liberdade e mais o gigante, como os moinhos de vento, torna-se o seu contrário e leva toda a gente presa como remadores cativos às galés, nas nossas modernas prisões.

Retirar o encanto do ente estatal agigantado será a grande obra de Cervantes, o seu legado. É preciso novamente meditar sobre as páginas imortais do Cavaleiro do Triste Figura. Se olharmos bem veremos que o Estado moderno, ao contrário daquele idealizado por Santo Agostinho, compele os homens ao mal e torna os vícios práticas forçadas, por curso legal.

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Romance de Cervantes está completando quatrocentos anos
Atualidade do Dom Quixote


Por Nivaldo Cordeiro
22/6/2010

Decidi oferecer, no Instituto Internacional de Ciências Sociais, aqui em São Paulo, um curso sobre o livro de Miguel de Cervantes, Dom Quixote. O romance, que inaugurou o gênero, está completando quatrocentos anos. O primeiro dos dois livros que compõem a obra foi publicado em 1605 e o segundo em 1615. Com alguma justiça podemos dizer que o ano em curso é aquele que deve celebrar a efeméride.

Mas por que estudar o velho livro? Não é apenas a beleza estilística, o humor, a criatividade do autor que atraem na obra imorredoura. Cervantes deixou no livro um feito inigualável para a filosofia política: a compreensão da Segunda Realidade, aquela que presidirá o chamado mundo moderno. O conceito de Segunda Realidade foi muito explorado por grandes romancistas do final do século XIX e primeira metade do Século XX, com destaque para Roberto Musil e Thomas Mann. Mesmo Dostoievsky utiliza-o na sua narrativa para explicitar o real que se desenrolou na alma dos homens do seu tempo. Dom Quixote está no cerne da obra de filósofos como Eric Voegelin e Leo Strauss. Ele é também o alicerce de toda a obra filosófica de Ortega y Gasset.

Na verdade, todos os grandes romancistas, aqueles fazem a crônica das entranhas da humanidade, não podem deixar de recorrer à descoberta imorredoura de Miguel de Cervantes. O mundo como idéia (entre nós Bruno Tolentino nos legou obra imortal sob o mesmo prisma, em poesia) é o objeto de quem quer entender o que se passa. Isso é a modernidade, isso é o homem moderno. E é toda a loucura da jornada que nós próprios fazemos em nossa geração.

A modernidade é essa construção social do homem que busca, a só tempo, a perfeição em vida, pelo uso da lei estatal, e a afirmação do homem como ente descolado de qualquer elemento transcendente, dono de seu próprio destino, senhor do mundo. Todas as grandes obras de arte, de uma maneira ou de outra, relatam esse fenômeno, que contrasta com a mente dos homens que antecederam as grandes revoluções européias.

Esse é o tema principal do curso, que consistirá também de uma leitura pública da obra, apoiada pelos elementos biográficos de Cervantes. Tudo que de relevante foi escrito sobre o autor e a obra, desde Unamuno e Ortega y Gasset, passando por Harold Bloom e Mario Vargas Llosa, orientará a leitura.

Dom Quixote não se esgota, todavia, nesse plano da filosofia política. Ele é também um livro de iniciação, que relata a agonia do autor em busca do elemento transcendente. Esse é um dos aspectos fundamentais da obra e aqui o uso da psicologia junguiana é um guia útil para a descrição de pontos obscuros e complexos dos relatos. Dom Quixote tem vários planos de narrativas e, sem se perder, envereda por histórias singulares aparentemente desconectadas do fluxo principal.

Na edição comemorativa do Quarto Centenário Mario Vargas Llosa escreveu um prefácio, no qual teve a brilhante intuição de dizer que o Dom Quixote é um romance para o século XXI. Tem toda razão, mas o peruano não soube bem dizer o porquê dessa atualidade. Digo-lhe, caro leitor: é que o mundo é mais moderno do que jamais foi, mais louco, mais perigoso. Só o gigantismo da pena mágica de Cervantes para nos conduzir na compreensão das maluquices atuais e nos fazer retornar ao real. Nisso consiste sua atualidade; essa é a razão de eu propor o tema para o curso.

De te fabula narratur! Dom Quixote é um enigma e um destino, uma alegoria da verdade que se esconde sob a máscara da Segunda Realidade. Ninguém que queira encontrar-se a si mesmo pode prescindir de um mergulho sério e sistemático na história do fidalgo herói da Mancha.

* Nivaldo Cordeiro é economista e mestre em Administração de Empresas pela EAESP-FGV. Empresário residente em São Paulo.