sábado, 12 de novembro de 2011

A USP, a autonomia universitária e a incompetência da gestão


Sinal de alerta

Qui, 10 de Novembro de 2011

Grave, muito grave, a reação do público diante da agressão policial aos estudantes da USP.

Por haverem ocupado o prédio da reitoria da USP, foram acusados, absurdamente, de vários crimes, entre os quais o de “formação de quadrilha”.

Sessenta e seis jovens foram trancafiados, durante horas, em um ônibus cercado por 400 policiais. A Polícia exigiu uma fiança no valor de um salário mínimo para pô-los em liberdade.

Quem for ao twitter verificará o grande número de mensagens que justificam a truculência policial.

Esta conduta é de suma gravidade, porque denuncia, por um lado, uma grande ignorância e, por outro, uma verdadeira escalada do reacionarismo da direita entre a juventude universitária.

Os indignados com a ação dos universitários desconhecem que, em toda sociedade democrática, a liberdade e a autonomia fazem parte da natureza da instituição. Qualquer intervenção externa, seja de governo, de igrejas, do poder econômico, perturba o ambiente necessário para que haja produção intelectual de qualidade. Por isso mesmo, o policiamento do “campus” deve ser feito unicamente por seguranças contratados pela própria universidade.

A ignorância é grave. Porém, ainda mais grave é a indisposição de tantos jovens contra os universitários presos, pois revela um desprezo pela democracia. Em algumas mensagens, podem se identificar até laivos de fascismo.

Chega-se ao ponto de justificar um tipo de detenção que atenta contra os direitos humanos, pois, como se sabe, os detidos foram trancados em um ônibus, sem alimentação, sem facilidades sanitárias e expostos a um calor insuportável.

Independentemente de ter havido um ou outro exagero – o que deverá ser apurado e devidamente punido -, a ocupação foi a única forma encontrada pelos jovens para denunciar à opinião pública irregularidades que estão sendo cometidas pelo reitor.

Desconhecem os indignados que, nesta democracia capenga, a imprensa não divulga nada que os poderosos não querem que seja do conhecimento da plebe ignara?

$?$!$?$!$?

O episódio é um alerta aos partidos democráticos: urge realizar uma grande campanha de politização da juventude universitária, a fim de evitar desencontros como o que a ocupação do campus da USP provocou.

Extraído de Correio da Cidadania

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Pela volta da Idade Média à USP


Escrito por Mário Maestri*

Segunda, 07 de Novembro de 2011

Na Idade Média, era uma enorme conquista quando uma cidade obtinha uma universidade. Comumente, com ela, vinha o direito a uma ampla autonomia quanto à autocracia do príncipe. Tratava-se de liberdade considerada indispensável para o novo templo do saber. Devido a isso, o campus universitário medieval possuía sua polícia própria e julgava seus alunos, funcionários, professores.

Aprendi isso no curso de História da UCL, na Bélgica, onde fui recebido de braços abertos, em 1974, fugido das ditaduras brasileira e chilena. No Brasil de então, não tinha nada daquilo. A polícia e o exército entravam, revistavam, espancavam, prendiam, torturavam e até matavam professores, funcionários e sobretudo alunos que não se rendiam ao tacão da ditadura cívico-militar.

Uma aluna sul-rio-grandense, mestranda em História da USP, escreveu-me um longo e-mail, pedindo-me quase desesperada solidariedade para com ela e seus colegas daquela universidade.

A carta da estudante registra a angústia de jovens que se assustam com a regressão dos espaços de liberdade conquistados quando da versão de redemocratização brasileira, onde os criminosos civis e militares de 1964-1985 seguiram em seus postos ou com suas pensões e aposentadorias, homenageados com nomes de praças, avenidas, ruas, ao morrerem. A aluna relata a degradação das condições de convivência, de trabalho e de estudo naquela instituição, a mais destacada do Brasil.

Lembra que há muito se instauram processos administrativos contra alunos, funcionários e professores, eventuais motivos de demissão e de expulsão, por expressarem em manifestos, panfletos, ocupações, suas idéias contra a política universitária dos governadores de São Paulo e dos dirigentes máximos daquela instituição.

Há cerca de dois meses, lembra a jovem, o senhor reitor lançou pelo retrete a autonomia universitária e escancarou o campus à Polícia Militar, sob a justificativa de reprimir a criminalidade.

Desde então, a Polícia Militar reina no campus – abordando, inquirindo, revistando funcionários, professores e sobretudo alunos. Certamente os principais objetos desses atos de intimidação foram os alunos e alunas mais agitados ou de cabelo, roupas, adereços e comportamentos tidos como estranhos!

Conhecemos o resultado da política liberticida do senhor reitor – em 27 de outubro, alunos foram revistados por policiais militares, como sempre, na frente da Biblioteca da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, onde se reúnem, tradicionalmente, os universitários suspeitos de pensarem em demasia!

A revista deu resultado. Três estudantes de Geografia foram encontrados com alguns baseados, motivos de pronta prisão e imediata resposta dos seus colegas, todos pertinentemente surrados, pois universitárias e universitários comumente magricelos, armados com canetas, livros e laptops pouco podem contra os parrudos PMs, com os seus tradicionais instrumento de trabalho – cassetetes, revólveres, escopetas, bombas dissuasivas...

A resposta previsível dos estudantes foi uma festa para a grande mídia conservadora, sobretudo televisiva. A ocupação do prédio da FFLCH e depois da Reitoria por estudantes encapuzados – ninguém quer ser objeto de processo e eventual expulsão – foi mostrada como a ação de bárbaros desordeiros no templo do conhecimento!

Isolada, sob o silêncio dos grandes e pequenos partidos, a garotada está sendo obrigada a retroceder. Até esta segunda-feira, tinham de entregar o prédio. Se não, vai conhecer pancadaria grande, prisões e os pertinentes processos. Não conseguem, nem mesmo, apresentar suas mais do que justas reivindicações: fins dos processos contra estudantes e servidores e a interdição do campus à Polícia Militar.

Por razões óbvias não registro o nome da autora da carta. Com minha total solidariedade ao movimento, faço uma derradeira reflexão. Se, na Idade Média, um senhor reitor atirasse pela janela do seu palácio a valiosa autonomia conquistada pela cidade, chamando a polícia para atuar livremente no campus, certamente seria destituído por seus pares e, possivelmente, mandado para a masmorra da Universidade, para refletir melhor sobre a subserviência ao príncipe! Coisas da Idade Média!


* Mário Maestri é doutor em Ciências Históricas pela UCL, Bélgica, e professor do programa de pós-graduação em História da Univesidade de Passo Fundo - UPF, RS.  E-mail: maestri(0)via-rs.net

Última atualização em Sexta, 11 de Novembro de 2011

Extraído de Correio da Cidadania
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Vagabundos, baderneiros, maconheiros, irresponsáveis... incompetentes?



Autor: Daniel Gorte-Dalmoro

Richard Dawkins questiona algures o que não seria da física e da ciência se Newton tivesse se dedicado integralmente a ela, ao invés de ter perdido tempo com discussões estéreis, como as sobre religião. Não lembro se ele faz a mesma pergunta sobre Einstein, Heisenberg e outros físicos e cientistas da primeira metade do século XX. De qualquer forma, chuto uma resposta à sua pergunta: se Newton tivesse se abstido das atividades extra-científicas, assim como os grandes cientistas da primeira metade do século XX, em geral bastante engajados politicamente, teria sido tão medíocre quanto a grande maioria dos pesquisadores da atualidade.


A intelligentsia acadêmica brasileira (para ficar na parte tida por pensante da sociedade) não é nenhum Richard Dawkins, mas bem gostaria de sê-lo: ter panca de inteligente e intelectual, morar na Inglaterra, dando aula para ou tendo como colegas pessoas com boa formação, convivendo com gente “civilizada”, enfim (salvo eventuais hordas bárbaras, como a de agosto). Claro, não precisa ser ateu – apenas pró-ciência e anti-comunista.

Novo protesto na USP, e lá vemos novamente as mesmas manifestações dos bons cientistas da universidade e dos homens de bem de nação, criticando os baderneiros que não querem estudar e atrapalham o bom andamento da ciência [tupiniquim].

Afinal, conforme ranqueamentos internacionais, da TopUniversities, para ser mais exato, a USP é a melhor universidade latino-americana, e a 169º do mundo. Não que eu ache que esses rankings sirvam para muita coisa, mas nossa intelligentsia certamente se guia por ela – publicações, prazos, congressos, papérs, bolsas, tudo é feito em função do que os gringos dizem que é bom.

É de se questionar, portanto, onde não estaria a USP, não tivesse todos os incômodos causados por esses alunos que fazem protestos, greves, ocupam prédios.

Bem... talvez estivesse fora do ranking das 200 melhores: dos nove cursos que aparecem entre os 200 melhores, nas diversas áreas, seis – filosofia, sociologia, história, lingüística, ciência política e geografia – são da FFLCH. E se esses alunos estavam fumando maconha e fazendo greve, é de se questionar, então, o que estavam fazendo os demais dos 198 programas de pós da USP. Assistindo tevê, lendo Folha e Veja?

Surpresa? Não deveria ser. A ciência pura pode até existir (não vou entrar nesta questão), mas o cientista puro, certamente não. Não por acaso, quando a Science publicou reportagem sobre a ciência no Brasil, quem ganhou destaque não foi a Fapesp e seus quase 800 milhões de reais – que não mereceu uma mísera linha –, e sim um cientista que faz bastante alarde político – ainda que questão de política científica, mas com uma visão bem menos tacanha de ciência que Brito Cruz, ou demais coronéis da ciência paulista –, Miguel Nicolelis.

Esta ocupação de prédios na USP poderia ser uma ótima oportunidade para esses pesquisadores fazerem uma auto-crítica (proposta ingênua, eu sei): ao invés de desqualificarem o outro, entrarem realmente no debate – não é obrigado a concordar com a atitude, contudo, é radicalmente diferente negar a política, exigindo logo a ordem e a autoridade –, e admitirem: pessoas, mesmo as diferentes, as chatas, as que usam vermelho, as que fedem, eventualmente podem ter mais assuntos e ser mais interessantes do que ratos e átomos.

Campinas, 06 de novembro de 2011.

Extraído de Luis Nassif Online

Original de Comportamento Geral

Mídia e Democracia - na Carta Maior


Mídia e Democracia

Conjunto de textos de alta importância reflexiva

Carta Maior
12 de novembro de 2011


sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Em busca de uma lógica Kadhafiana


Em busca de uma lógica Kadhafiana

por Silvia Ferabolli
*
04/11/2011

Considera-se um “sofisma” o emprego de argumentos falsos com aparência de verdadeiros. Um erro de pensamento, já que chega-se a uma conclusão válida baseada em premissas falsas. Entre os complexos mecanismos de construção de um sofisma pode-se destacar o “sofisma de implicação”, segundo o qual a autoridade de determinada fonte implica na veracidade de um enunciado. Também conhecido como “transferência de credibilidade”, tais sofismas são amplamente utilizados por veículos consagrados da mídia, especialistas e políticos que, a despeito de sua real credibilidade e competência, quase sempre enveredam pelo caminho da argumentação falaciosa – produzindo aquilo que Noam Chomsky iria chamar de manufacture of consent. Desde o início da “guerra ao terror”, tornou-se um habito trabalhar com conjuntos de sofismas que visam legitimar ações cada vez menos justificáveis em termos éticos e políticos. O problema das “armas de destruição em massa” nas mãos de um “tirano sanguinário” que representava uma “ameaça a paz mundial” foi a justificativa usada pelos norte-americanos para invadirem o Iraque e abortar o projeto em curso da construção do Estado-nação iraquiano. A remoção de Mouammar Kadhafi do poder na Libia, por outro lado, sustentou-se na justificativa de que essa era mais uma das conquistas da primavera árabe.

Contudo, o processo de derrubada do regime de Kadhafi custou a morte de centenas de pessoas, pois os tímidos levantes iniciais vistos por todo o país foram se radicalizando na medida em que eram influenciados pelo apoio da OTAN. O assassinato brutal de Kadhafi pelo Conselho Nacional de Transição (CNT) – devidamente apoiado pela OTAN – faz pensar que a inocência original de uma primavera libertária, criativa e laica, tenha encontrado o seu fim na Libia. A morte de Mohamed Bouazizi desencadeou um ciclo revolucionário que, pensava-se, colocaria um fim tanto nos regimes decrépitos da região quanto nas diversas formas de ingerência externa que o mundo árabe enfrenta desde o século XIX. A morte de Kadhafi parece ter posto um fim em tais utopias necessárias, inaugurando um novo capítulo de incertezas em relação à estabilidade política da região. O ódio a Kadhafi era uma das poucas coisas em comum que unia grupos rebeldes instalados sob o guarda-chuva do CNT e poucas ilusões existem de que haverá uma legitimação democrática dos nomes que no momento representam o poder no país. Tal poder busca, com a leniência internacional, descartar a história do homem cuja trajetória política se confunde com a do país que governou por mais de quarenta anos.

Kadhafi ascendeu ao poder na Libia com o golpe militar que depôs o rei Idris, em 1969. Nascido em uma tenda beduína, membro do clã semi-nômade al-Gadafa da costa central da Libia, Kadhafi tinha 14 anos quando Nasser nacionalizou o canal de Suez e, desde então, o pan-arabismo nasserista o acompanhou por muito tempo, fazendo-o acreditar nos ideais da nahda (renascimento) e da wahda (unidade) árabes. Nasser, enquanto um ídolo trágico, condenaria o jovem coronel a permanecer em sua sombra. Após a morte do presidente egípcio, em 1970, Kadhafi tentou se autoproclamar o novo líder pan-Árabe. Contudo, nem a Libia tinha os recursos de poder bruto de que dispunha o Egito na época e muito menos era Kadhafi um líder carismático do porte de Gamal Abdel Al-Nasser. Tendo suas ambições pan-árabes frustradas, Kadhafi focou suas energias em assuntos domésticos. Ainda nos anos 1970, assumiu o controle sobre a indústria petrolífera do país e passou a empregar parte significativa da renda do petróleo na melhoria do padrão da vida do povo líbio, um dos mais pobres do mundo na época.

De posse de seu “livro verde”, uma confusa compilação de seus pensamentos, mesclados com um socialismo utópico, Kadhafi fez da Líbia o laboratório ideal de suas reflexões político-existenciais. Desacreditando em partidos políticos, ele impôs, a partir de 1977, a ideia de um governo sem governo, comandado por um congresso geral composto por centenas de congressos locais: uma forma de governo baseada na democracia direta, com base em conselhos locais e comunas, também chamadas de Congressos Populares de Base. Tais instâncias dispensariam os intermediários na relação entre o povo e o Estado, oferecendo uma alternativa aos sistemas comunista e capitalista da época. De fato, o libyan way não passava de uma forma elegante de impor uma ditadura capitaneada por Kadhafi e um círculo restrito de homens de confiança em torno do líder.

Mantendo-se alinhado à filosofia que guiava suas ações em termos de política externa – uma mistura de pan-arabismo, anti-imperialismo e radicalismo islâmico – Kadhafi passou a alardear sua intenção de armar e treinar revolucionários para derrubar os governos da Tunísia, Egito e Argélia – se a unidade árabe não pudesse ser conseguida por meios pacíficos, então a utopia seria realizada pela força. O Egito, governado pelo moderado Anwar Sadat, foi aos poucos se tornando inimigo mortal da Líbia, culminando em uma curta guerra de dois meses entre os dois países e cuja intervenção de Yasser Arafat foi decisiva para o fim das hostilidades entre os irmãos árabes. Nessa época, o sangue de Kadhafi fervia pela revolução e ele se tornou um grande patrocinador de grupos políticos, com a recém-criada OLP, e também se utilizava dos serviços de terroristas famosos da época tal como Carlos o Chacal e Abu Nidal – esse último, membro de uma facção radical palestina, iria em 27 de dezembro de 1985 metralhar centenas de passageiros nos aeroportos de Roma e Viena. Dezenove pessoas foram mortas, cinco delas norte-americanas.

Logicamente, o comportamento político de Kadhafi fez dele um inimigo natural dos Estados Unidos. Em 1981, a Sexta Frota americana abateu dois caças líbios sobre o Golfo de Sirte, o primeiro de uma série de confrontos entre os Estados Unidos e os Estados árabes (desunidos) e que culminaria com a ocupação propriamente dita do Iraque em 2003. Em 1986, o presidente Ronald Reagan mandou bombardear alvos em Trípoli e Benghazi, objetivando claramente o assassinato daquele a quem batizou de “o cachorro louco do Oriente Médio”. Em 1988, entretanto, Kadhafi decidiu emular o presidente soviético Mikail Gorbachev iniciando um perestroika pessoal que o conduziria ao terceiro e último momento de sua trajetória. Kadhafi se deu conta de que os anos em que havia confrontado diretamente os Estados Unidos estavam cobrando um preço bastante elevado. Igualmente, o socialismo pueril que havia tentado implementar, baseado em seu “livro verde” levou a Líbia a tamanha escassez de produtos básicos que até sabonetes e pilhas tinham que ser obtidos no mercado negro. Entretanto, nesse mesmo ano Kadhafi foi acusado de ordenar o atentado contra um jumbo da PanAm que explodiu sobre a localidade escocesa de Lockerbie, matando mais de duas centenas de passageiros, a maioria norte-americanos. Tal evento colocou em xeque a nova estratégia do coronel cuja imagem de patrocinador do terrorismo internacional se fortaleceu com tal episódio. Pressionado pela Grã-Bretanha e pelos Estados Unidos, os quais exigiam que Kadhafi entregasse para julgamento os dois principais suspeitos pelo atentado contra a PanAm, Abdelbaset al-Megrahi e Al-Amin Khalifa Fahima, membros do serviço de inteligência líbio, Kadafi se viu emparedado politicamente, já que entregar os suspeitos seria uma traição à Líbia e àqueles que os tinham como heróis nacionais. Por outro lado, o não cumprimento dessas exigências aumentaria o embargo imposto pela ONU, prejudicando os seus esforços para levantar a economia Líbia que estava em uma difícil situação. Além disso, havia uma grande insatisfação popular que motivou uma série de rebeliões pelo país, bem como uma tentativa de assassinato, em 1993, da qual Kadhafi escapou por muito pouco. Seria somente em 1999, após longas discussões sobre termos e condições, que Kadhafi entregaria os dois suspeitos para serem julgados na Holanda e, posteriormente, indenizaria as famílias das vitimas. O cumprimento de tais demandas (entrega dos suspeitos para julgamento internacional e pagamento de bilhões de dólares em indenizações) garantiu o levantamento de praticamente todas as sanções econômicas que a Libia enfrentava. Firme em sua marcha em direção ao estabelecimento e solidificação de boas relações com o ocidente, Kadhafi abriu seus poços de petróleo para a exploração de empresas ocidentais em 2006. Comenta-se que, no ano seguinte, Kadhafi financiaria em grande parte a campanha de Nicolas Sarkozy para presidente, fato negado veementemente pelo atual presidente francês.

Na verdade, na primeira década do terceiro milênio, principalmente após o surgimento de novos e assustadores vilões tais como Osama Bin Laden, Kadhafi parecia um velho bicho papão que já não assustava mais ninguém. Ao contrário, suas roupas de um colorido berrante o faziam cada vez mais uma figura folclórica como aquele parente excêntrico que rouba a atenção nos eventos de família, mas que todos julgam inofensivo e até simpático. Durante esse período, ele desfrutou de uma inédita aceitação entre os principais líderes mundiais, tais como Barack Obama, Sarkozy e Berlusconi. Em um de seus últimos e grandiosos momentos, em 2009, Kadhafi visitou Roma e em seguida o premiê italiano Silvio Berlusconi também foi a Trípoli, em visita oficial. O governo líbio, que já era acionista da montadora italiana Fiat e do banco Unicredit, assinou uma série de acordos comerciais com a Itália. Os dois líderes também declararam o fim das mágoas relativas à ocupação colonial da Itália na Líbia (1911-1943).

Entretanto, a posição de Kadhafi nunca esteve tão tranquila quanto o aperto de mãos e os sorrisos franceses, americanos e italianos poderia lhe fazer supor. Os bons ventos duraram até o início da primavera árabe quando as revoltas que varreram parte do mundo árabe também chegaram á Libia. Os tímidos protestos iniciais que pareciam a Kadhafi fácil de conter, logo viraram uma guerra civil, especialmente após aviões franceses começarem a bombardear o território líbio. Imediatamente, os mesmos líderes que há pouco apertavam a mão de Kadhafi, começaram a apoiar os rebeldes contra o regime “desumano e sanguinário” do “ditador”. Não demorou muito para que a OTAN entrasse no jogo e o resultado final todos sabem qual foi: mais um governante árabe exposto ao ridículo e ao escárnio em capas de jornais, revistas e imagens televisivas repetidas ad nauseam e que nada mais fazem do que aumentar a sensação de vulnerabilidade dos povos da região. Infelizmente, a autonomia na região irá depender da manipulação de agentes externos que continuarão a fabricar bandidos e mocinhos de acordo com as suas conveniências. É justo lembrar que na Arábia Saudita também eclodiram revoltas, contudo, tais eventos misteriosamente sumiram dos noticiários internacionais e apenas um bom entendimento do conceito de poder associado à ideologia hegemônica de Gramsci pode explicar o porquê da lógica de apoiar revoltas populares em um país e não no outro – de derrubar alguns ditadores e manter outros de pé.

Na verdade, Kadhafi é hoje retratado no discurso de líderes políticos ocidentais e na imprensa mundial como um ditador sanguinário que durante as décadas de seu governo nada mais fez do que imaginar maldades e atrocidades contra seu povo. Fazendo uso da proposta de Jutta Weldes de buscar relações entre a cultura popular, a ficção científica e a politica mundial, pode-se lembrar outro personagem político que recebeu a mesma alcunha alguns séculos atrás: Vlad III, Príncipe da Valáquia (1431-1476) ou, simplesmente, Drácula. O catálogo de horrores atribuídos a Drácula, e que inspiraram o clássico de Bram Stoker, não fez dele um político muito pior do que os de seu tempo, pois a priori ele estava governando de acordo com os padrões de sua época, a Renascença, sempre marcada por extraordinária desumanidade. Como bem lembram McNally & Florescu em In Search of Dracula: The History of Dracula and Vampires (1995): “A era de Drácula foi a do rei aranha Luís XI; Ludovico Sforza o Mouro; o papa Bórgia, Alexandre VI; seu filho César; e Sigismundo Malatesta”. Todos governantes brutais que nada deixavam a desejar no quesito crueldade. A era de Kadhafi foi a de George W. Bush, Pol Pot e Slobodan Milosevic. Uma era de extremos marcada por genocídios, violações de direitos humanos, ocupação e destruição de países. Por fim, é preciso ressaltar que no folclore romeno, Drácula não é definido como um governante louco e tirano. Na verdade, os camponeses tinham orgulho dos feitos militares de seu líder e muitos, ainda hoje, estufam o peito ao dizerem-se descendentes de soldados que lutaram no exército de Drácula. Sabe-se que, na Libia de hoje, muitos ainda choram a morte de Kadhafi e temem pelo futuro que os espera sem a outrora onipresente figura do seu “líder da revolução”.

O Coronel Kadhafi foi, sem dúvida, um ator político controverso, amado e odiado por muitos. Sua morte se constituiu em uma traição do ocidente àquele que mais se empenhou em agradá-lo nos últimos anos, mostrando que as motivações internacionais são sempre obscuras e muito mais complexas do que o discurso oficial deixa transparecer. Existem interesses políticos e econômicos na Líbia que justificaram esse imenso esforço de guerra. Resta saber como será a relação entre o CNT e o povo líbio daqui por diante. Contudo, um governo que inicia com um parricídio festejado e legitimado pelas instâncias que o deveriam condenar, pouca coisa pode oferecer de bom. Espero, sinceramente, estar enganada.

* Sílvia Ferabolli
é Doutoranda em Política Internacional pela Universidade de Londres, Reino Unido (silviaferabolli@terra.com.br).

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