domingo, 28 de julho de 2013

Povos tradicionais têm papel crucial na conservação da biodiversidade


Povos tradicionais têm papel crucial na conservação da biodiversidade

22/07/2013
Por Elton Alisson

Agência FAPESPNa região do alto e do médio Rio Negro, no Amazonas, existem mais de 100 variedades de mandioca, cultivadas há gerações por mulheres das comunidades indígenas, que costumam fazer e compartilhar experiências de plantio, chegando a experimentar dezenas de variedades em seus pequenos roçados ao mesmo tempo.

Exemplo de conservação da agrobiodiversidade por populações tradicionais, o sistema agrícola do Rio Negro foi registrado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2010 como patrimônio imaterial do Brasil.

A partir da constatação de que essas práticas culturais geram uma diversidade de grande importância para a segurança alimentar, elaborou-se um projeto-piloto de colaboração entre a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e as organizações indígenas do médio e alto Rio Negro.

O projeto integrará uma iniciativa criada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com o objetivo de chegar a um programa que estimule a colaboração entre cientistas e detentores de conhecimentos tradicionais e locais.


A iniciativa foi anunciada por Maria Manuela Ligeti Carneiro da Cunha, professora emérita do Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, e professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP), na abertura da Reunião Regional da América Latina e Caribe da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços de Ecossistemas (IPBES, na sigla em inglês), ocorrida no dia 11 de julho na sede da FAPESP, em São Paulo.

“O projeto-piloto será um bom exemplo de como é possível a colaboração entre a ciência e os conhecimentos tradicionais e locais, capazes de dar grandes contribuições para a conservação da diversidade genética de plantas – um problema extremamente importante”, disse Carneiro da Cunha, coordenadora do projeto.

“A conservação in situ de variedades de plantas, por excelência, pode e deve ser feita pelas populações tradicionais. O Brasil, ao promulgar o tratado da FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura] sobre recursos fitogenéticos, se obrigou a estimular essa opção”, afirmou.

Carneiro da Cunha ressalvou que, diferentemente do que costuma se entender, os conhecimentos tradicionais não são um “tesouro”. Não são apenas dados que devem ser armazenados e disponibilizados para uso quando se desejar, como foi feito com a medicina ayurvédica, na Índia. De acordo com a antropóloga, a sabedoria tradicional é um processo vivo e em andamento, composto por formas de conhecer a natureza, além de métodos, modelos e “protocolos de pesquisa” que continuamente geram novos conhecimentos.

IPCC da biodiversidade

Criado oficialmente em abril de 2012, após quase dez anos de negociações internacionais, o IPBES tem por objetivo organizar o conhecimento sobre a biodiversidade no planeta para subsidiar decisões políticas em âmbito mundial, a exemplo do trabalho realizado nos últimos 25 anos pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) em relação ao clima do planeta.

Para isso, o organismo intergovernamental independente realizará uma série de reuniões com pesquisadores da América Latina e Caribe, África, Ásia e Europa nos próximos dois meses, produzindo diagnósticos regionais que comporão um relatório sobre a biodiversidade do planeta.

Os documentos conterão as particularidades dos países de cada região e deverão levar em conta, além do conhecimento científico, a contribuição do conhecimento acumulado durante séculos pelas populações tradicionais e povos indígenas dessas regiões para auxiliar nas ações de conservação de biodiversidade.

“Uma das ações mais importantes do IPBES deverá ser o envolvimento de populações locais e indígenas desde o início do programa, chamando-as para participar do planejamento dos estudos, da identificação de temas de interesse comuns a serem estudados e do compartilhamento dos resultados”, disse Carneiro da Cunha.

“O IPCC, que iniciou suas atividades em 1988, só começou a pedir a contribuição do conhecimento dos povos tradicionais e indígenas para o desenvolvimento de ações para diminuir os impactos das mudanças climáticas globais depois da publicação de seu quarto relatório, em 2007”, contou.

Importância do conhecimento tradicional

De acordo com Carneiro da Cunha, os povos tradicionais e indígenas são muito bem informados sobre o clima e a diversidade biológica locais – e, por isso, podem ajudar os cientistas a compreender melhor as mudanças climáticas e o problema da perda da biodiversidade.

Esses povos costumam habitar áreas mais vulneráveis a mudanças climáticas e ambientais e são muito dependentes dos recursos naturais encontrados nessas regiões. Acompanham com minúcia cada detalhe que constitui e afeta diretamente sua vida e são capazes de perceber com maior acurácia mudanças no clima, na produtividade agrícola ou na diminuição de número de espécies de plantas e animais, por exemplo, apontou a antropóloga.

“Esse conhecimento minucioso é de fundamental importância. Até porque uma das limitações que esses painéis como o IPCC e, agora, o IPBES enfrentam é identificar problemas e soluções para lidar com as mudanças climáticas globais em nível local. Isso é algo que só quem mora há muitas gerações nessas regiões é capaz de perceber”, disse.

Segundo dados apresentados por Carneiro da Cunha e por Zakri Abdul Hamid, presidente do IBPES na abertura da reunião na FAPESP, há aproximadamente 30 mil espécies de plantas cultivadas no mundo, mas apenas 30 culturas são responsáveis por fornecer 95% dos alimentos consumidos pelos seres humanos; arroz, trigo, milho, milheto e sorgo respondem por 60%.

Isso porque, com a chamada “Revolução Verde”, ocorrida logo depois da Segunda Guerra Mundial, houve uma seleção das variedades mais produtivas e geneticamente uniformes, em detrimento de plantas mais adaptadas às especificidades de diferentes regiões do mundo. Diferenças de solo e clima foram corrigidas por insumos e defensivos agrícolas. Com isso, se espalhou uma grande homogeneidade de cultivares no mundo – levando à perda de muitas variedades locais.

“Houve um processo de erosão da diversidade genética das plantas cultivadas no mundo. Isso representa um enorme risco para a segurança alimentar porque as plantas são vulneráveis a ataques de pragas agrícolas, por exemplo, e cada uma das variedades locais de cultivares perdidas tinha desenvolvido defesas especiais para o tipo de ambiente em que eram cultivadas”, contou Carneiro da Cunha.

Um dos exemplos mais célebres dos impactos causados pela perda de diversidade agrícola, segundo a pesquisadora, foi a fome na Irlanda, que matou 1 milhão de pessoas no século XIX e causou o êxodo de milhares de irlandeses para os Estados Unidos.

Apenas duas das mais de mil variedades de batatas existentes na América do Sul haviam sido levadas para a Irlanda, no século XVI. Uma praga agrícola acabou com as plantações, levando à fome, uma vez que a batata já era o alimento básico na Irlanda e em outros países da Europa.

A partir daí, para evitar a ocorrência de problemas do mesmo tipo, vários países criaram bancos de germoplasma (unidades de conservação de material genético de plantas de uso imediato ou com potencial uso futuro). A medida por si só, no entanto, não basta, uma vez que as plantas coevoluem com os ambientes, que também mudam ao longo dos anos. Assim, é necessário complementar os bancos de germoplasma com ações de conservação in situ, ressaltou Carneiro da Cunha.

“É importante que se entenda que o conhecimento tradicional não é algo que simplesmente se transmitiu de geração para geração. Ele é vivo e os povos tradicionais e indígenas continuam a produzir novos conhecimentos”, ressaltou.

Entraves para aproximação

De acordo com a pesquisadora, apesar da importância da aproximação da ciência dos conhecimentos tradicionais e locais, o assunto só começou a ganhar relevância a partir da Convenção da Biodiversidade Biológica (CDB), estabelecida em 1992, durante a ECO-92.

A regulamentação do acesso ao conhecimento tradicional, previsto no artigo 8j da CDB, no entanto, ainda é um problema praticamente universal, afirmou a pesquisadora. “Peru e Filipinas já têm suas legislações. Mas ainda são poucos os países que editaram suas leis”, disse.

O Brasil ainda regula o acesso a recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados por meio de uma medida provisória e não se chegou ainda a um consenso para uma legislação nacional. “Não se pode ficar somente nessa atitude defensiva e acusar todo mundo de biopirataria, nessa ‘bioparanoia’ no país, que é um grande impedimento que teremos de superar”, avaliou.

É preciso estabelecer relações de confiança, afirmou a antropóloga, algo que só se consegue ao longo dos anos. Uma das formas ideais de se fazer isso, segundo ela, é quando a própria comunidade tradicional tem um problema para o qual está buscando solução e que também interessa aos cientistas.

Um exemplo disso ocorreu recentemente no âmbito do Conselho Ártico – organização intergovernamental que toma decisões estratégicas sobre o Polo Norte, reunindo oito países e 16 populações tradicionais, em sua maioria, pastores de renas.

Em parceria com as comunidades tradicionais transumantes (que deslocam periodicamente seus rebanhos de renas para regiões no Ártico, onde encontram melhores condições durante partes do ano), um grupo de pesquisadores dos países nórdicos, além da Rússia, Canadá e Estados Unidos, estudou os impactos das mudanças climáticas nos ecossistemas, na economia e na sociedade da região.

Feito em colaboração com a Agência Espacial Norte-Americana (Nasa, na sigla em inglês) e com diversas universidades e instituições de pesquisas, o estudo resultou em um relatório decisivo, intitulado Informe de Resiliência do Ártico (ARR, na sigla em inglês), divulgado em 2004.

“Essa talvez tenha sido a experiência mais bem-sucedida até agora de colaboração da ciência e dos conhecimentos tradicionais e locais”, avaliou Carneiro da Cunha. “É importante que os cientistas conheçam o que se faz nas comunidades tradicionais e, por sua vez, os povos tradicionais também conheçam o que se faz nos laboratórios científicos”, disse.


As armas do futuro, por Walter Benjamin


As armas do futuro, por Walter Benjamin

Por Racismo Ambiental (RA), 28/07/2013 12:18 (in Folha/Uol)

Em texto de 1925, inédito em português, Walter Benjamin fala de armas químicas, como o gás lacrimogêneo, e prevê sua vulgarização. Editado pelo jornal “Vossische Zeitung” sem sua assinatura, o artigo foi catalogado pelo filósofo entre suas obras publicadas e sairá no Brasil no livro “O Capitalismo como Religião”, da Boitempo.  Tradução: Nélio Schneider.


As designações anteriores(1) serão tão populares na próxima guerra quanto “trincheira”, “submarino”, “Berta Gorda”(2) e “tanque” foram na passada. Para os vocábulos químicos difíceis de pronunciar serão adotadas em poucos dias cômodas abreviações. E essas expressões, promovidas em poucas horas a uma atualidade jamais imaginada, superarão em popularidade o vocabulário de todos os relatórios dos fronts escritos de 1914 a 1918.

Elas dizem respeito a cada pessoa diretamente. A guerra vindoura terá um front espectral. Um front que será deslocado fantasmagoricamente ora para esta, ora para aquela metrópole, para suas ruas, diante da porta de cada uma de suas casas. Ademais, essa guerra, a guerra do gás que vem dos ares, representará um risco literalmente “de tirar o fôlego”, em que esse termo assumirá um sentido até agora desconhecido. Porque sua peculiaridade estratégica mais incisiva reside nisto: ser a forma mais pura e radical de guerra ofensiva. Não há defesa eficiente contra os ataques com gás pelo ar. Até mesmo as medidas privadas de proteção, as máscaras antigás, falham na maioria dos casos.

Por conseguinte, o ritmo do conflito bélico vindouro será ditado pela tentativa não só de defender-se mas também de suplantar os terrores provocados pelo inimigo por terrores dez vezes maiores. Em consequência, é irrelevante quando teóricos mais bem intencionados acenam com a perspectiva “humana” do gás lacrimogêneo, e até procuram criar simpatia pela guerra com o gás, comparando-a com a guerra aérea com materiais explosivos.

Outros já têm a visão mais aguçada, quando colocam de antemão e em primeiro plano, como motivo para o ataque com gás (cuja importância crescente já foi ensinada pela guerra passada), o seguinte: a finalidade última das ações da frota aérea deve ser destruir a vontade de resistência inimiga. Alguns poucos “raids” [ataques] devem infundir na população dos centros inimigos um terror inconsciente tal que malogre qualquer apelo à organização da resistência. O terror deve ser algo similar à psicose.

Uma imagem que nada tem das utopias de Wells e Júlio Verne: nas ruas de Berlim, espalha-se sob o belo e radiante céu primaveril um cheiro parecido com o das violetas. Isso dura alguns minutos. Logo em seguida, o ar se tornará sufocante. Quem não lograr escapar da sua esfera de ação nos minutos seguintes não conseguirá mais reconhecer nada, perderá momentaneamente a visão.

E, se ainda não for bem-sucedido na fuga ou se nenhum transporte o recolher, morrerá sufocado. Tudo isso poderá suceder um dia sem que se veja no céu qualquer aeronave nem se perceba o ronco de uma hélice. O céu poderá estar claro e o sol brilhando, mas invisível e inaudível, a uma altitude de 5.000 metros, paira um esquadrão aéreo respingando cloroacetofenona, gás lacrimogêneo, o “mais humano” dos novos recursos que, como se sabe, já teve certa importância nos ataques com gás da última guerra.

Não há meio confiável que permita perceber a presença dos esquadrões entre cinco e seis quilômetros acima da superfície da Terra. Ao menos publicamente não se conhece nenhum. É que a “ouverture” abafada que há anos está sendo executada nos laboratórios químicos e técnicos só chega aos ouvidos do público em forma de dissonâncias isoladas.

Esporadicamente fica-se sabendo de coisas, como da invenção de um receptor acústico muito sensível, capaz de registrar o ronco de hélices a grandes distâncias. E alguns meses depois ouve-se falar da invenção de uma aeronave silenciosa.

Alguns fatos que o correspondente de guerra norte-americano William G. Shepherd divulga no “Liberty” sobre a “aplicabilidade” do parque aeronáutico francês na guerra são ilustrativos.

A França possui hoje pelo menos 2.500 aeronaves no serviço ativo à paz; há mais na reserva. A tonelagem total das forças aéreas francesas, dependendo da altitude de voo, comporta entre 600 e 3.000 toneladas. Shepherd põe Londres como alvo. O centro de Londres, sede de todos os institutos vitais do Império Britânico, cobre quatro milhas quadradas inglesas. Para se tornar inabitável por vários meses, essa área exige a aplicação de 120 toneladas de sulfeto de dicloroetila, o gás mostarda.

Considerando que sobre esse território podem voar ao mesmo tempo -dentro da mesma camada atmosférica, naturalmente- no máximo 250 aviadores, cada um deles carregando pelo menos 250 quilos, e que esse esquadrão despeje uma tonelada por minuto, o coração do império mundial britânico -sempre de acordo com a abordagem de Shepherd- terá parado de bater após dois minutos.

INÉRCIA

O aspecto problemático dessas exposições é que a fantasia humana se recusa a acompanhá-las, e justamente a monstruosidade do destino ameaçador se torna um pretexto para a inércia mental. Sua tentativa de convencimento sempre resulta em que uma guerra dessas ou é de todo “impossível” ou seria de extrema brevidade. Na verdade, essa guerra só terminaria num breve instante se a respectiva base dos esquadrões aeronáuticos fosse conhecida dos combatentes.

Não é esse o caso. Pois essa base de modo algum precisa situar-se em terra. Em algum lugar do oceano, as aeronaves podem alçar voo de navios porta-aviões, que mudam constantemente sua localização sobre as águas.

Com o que se parecem os gases venenosos, cuja aplicação pressupõe a suspensão de todos os movimentos humanos? Conhecemos 17 até agora, dos quais o gás mostarda e a lewisita são os mais importantes.

As máscaras antigases não oferecem proteção contra eles. O gás mostarda corrói a carne e, quando não acarreta diretamente a morte, produz queimaduras cuja cura demanda três meses. Esse gás permanece virulento durante meses em objetos que entraram em contato com ele. Nas regiões que alguma vez foram alvo de um ataque com gás mostarda, meses depois, cada pisada no solo, cada maçaneta de porta e cada faca de pão ainda podem provocar a morte.

O gás mostarda, a exemplo de muitos outros gases venenosos, torna todos os víveres incomestíveis e envenena a água. Os estrategistas imaginam assim a utilização desse recurso: certos distritos taticamente importantes devem ser cercados com barreiras de gás mostarda ou então de difenilamina cloroarsina.

Dentro dessas barreiras tudo perece e nada consegue passar por elas. Desse modo, casas, cidades, campos podem ser preparados de tal forma que, durante meses, nenhuma vida animal ou vegetal é capaz de medrar neles. Nem é preciso dizer que, no caso da guerra com gás, cai por terra a diferenciação entre população civil e população combatente e, desse modo, um dos fundamentos mais sólidos do direito dos povos.

A lewisita é um veneno à base de arsênico que penetra imediatamente no sangue, matando de forma irremediável e súbita tudo o que atinge. Durante meses todas as áreas atingidas por ataques com esse gás ficam empestadas de cadáveres. Naturalmente não existe proteção contra ele em tais regiões: porões subterrâneos, que protegem quando muito de bombas explosivas, trazem a morte certa no caso de ataques com gás, porque o gás, pesado, tende para os lugares mais baixos.

Ora, como se sabe, o Comitê Central da Liga das Nações instituiu uma Comissão para o Estudo da Guerra Química e Bacteriológica. Dessa comissão participaram autoridades internacionais. Seu relatório não foi tratado com a devida consideração. A grande política ainda prioriza problemas de armamentismo e desarmamento cuja relevância se desfaz no ar frente aos fatos referentes aos preparativos para a guerra química.

A persistência com que, na execução do Tratado de Versalhes pela Alemanha, foram questionados ridículos requisitos militares não tem só um aspecto desagradável mas sobretudo algo de sumamente perigoso. Porque ela desvia a atenção pública do único problema atual do militarismo internacional.

-

WALTER BENJAMIN (1892-1940), filósofo e crítico literário alemão, autor de “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”.

NÉLIO SCHNEIDER, 52, tradutor do alemão especialista na área de ciências humanas, assina a versão em português de novo livro de ensaios de Walter Benjamin, a sair pela Boitempo, “O Capitalismo como Religião”.

Notas

1. Cloroacetofenona, difenilamina cloroarsina e sulfeto de dicloroetila são os nomes dos compostos químicos usados como armas; eles integravam o subtítulo original do artigo de Benjamin, daí a menção às “designações anteriores”.
2. “Dicke Berta”, em alemão, era o apelido de um morteiro de 42 centímetros, desenvolvido pela firma alemã Krupp para a Primeira Guerra Mundial. (N.T.)

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.


terça-feira, 2 de julho de 2013

Marilena Chauí: O inferno urbano e a política do favor, tutela e cooptação


Marilena Chauí: O inferno urbano e a política do favor, tutela e cooptação 
          publicado em 27 de junho de 2013 às 15:30
As manifestações de junho de 2013 na cidade de São Paulo
          por Marilena Chaui, na revista Teoria e Debate

Observações preliminares

O que segue não são reflexões sobre todas as manifestações ocorridas no país, mas focalizam principalmente as ocorridas na cidade de São Paulo, embora algumas palavras de ordem e algumas atitudes tenham sido comuns às manifestações de outras cidades (a forma da convocação, a questão da tarifa do transporte coletivo como ponto de partida, a desconfiança com relação à institucionalidade política como ponto de chegada) bem como o tratamento dado a elas pelos meios de comunicação (condenação inicial e celebração final, com criminalização dos “vândalos”) permitam algumas considerações mais gerais a título de conclusão.

O estopim das manifestações paulistanas foi o aumento da tarifa do transporte público e a ação contestatória da esquerda com o Movimento Passe Livre (MPL), cuja existência data de 2005 e é composto por militantes de partidos de esquerda. Em sua reivindicação especifica, o movimento foi vitorioso sob dois aspectos: 1. conseguiu a redução da tarifa; 2. definiu a questão do transporte público no plano dos direitos dos cidadãos e, portanto, afirmou o núcleo da prática democrática, qual seja, a criação e defesa de direitos por intermédio da explicitação (e não do ocultamento) dos conflitos sociais e políticos.

O inferno urbano

Não foram poucos os que, pelos meios de comunicação, exprimiram sua perplexidade diante das manifestações de junho de 2013: de onde vieram e por que vieram se os grandes problemas que sempre atormentaram o país (desemprego, inflação, violência urbana e no campo) estão com soluções bem encaminhadas e reina a estabilidade política? As perguntas são justas, mas a perplexidade, não, desde que  voltemos nosso olhar para um ponto que foi sempre o foco dos movimentos populares: a situação da vida urbana nas grandes metrópoles brasileiras.

Quais os traços mais marcantes da cidade de São Paulo nos últimos anos e que, sob certos aspectos, podem ser generalizados para as demais? Resumidamente, podemos dizer que são os seguintes:

– explosão do uso do automóvel individual: a mobilidade urbana se tornou quase impossível, ao mesmo tempo em que a cidade se estrutura com um sistema viário destinado aos carros individuais em detrimento do transporte coletivo, mas nem mesmo esse sistema é capaz de resolver o problema;

– explosão imobiliária com os grandes condomínios (verticais e horizontais) e shopping centers, que produzem uma densidade demográfica praticamente incontrolável além de não contar com uma redes de água, eletricidade e esgoto, os problemas sendo evidentes, por exemplo, na ocasião de chuvas;

– aumento da exclusão social e da desigualdade com a expulsão dos moradores das regiões favorecidas pelas grandes especulações imobiliárias e o conseqüente aumento das periferias carentes e de sua crescente distância com relação aos locais de trabalho, educação e serviços de saúde. (No caso de São Paulo, como aponta Hermínia Maricatto, deu-se a ocupação das regiões de mananciais, pondo em risco a saúde de toda a população); em resumo: degradação da vida cotidiana das camadas mais pobres da cidade;

– o transporte coletivo indecente, indigno e mortífero.  No caso de São Paulo, sabe-se que o programa do metrô previa a entrega de 450 k de vias até 1990; de fato, até 2013, o governo estadual apresenta 90 k. Além disso, a frota de trens metroviários não foi ampliada, está envelhecida e mal conservada; além da insuficiência quantitativa para atender a demanda, há atrasos constantes por quebra de trens e dos instrumentos de controle das operações. O mesmo pode ser dito dos trens da CPTU, que também são de responsabilidade do governo estadual.

No caso do transporte por ônibus, sob responsabilidade municipal, um cartel domina completamente o setor sem prestar contas a ninguém: os ônibus são feitos com carrocerias destinadas a caminhões, portanto, feitos para transportar coisas e não pessoas; as frotas estão envelhecidas e quantitativamente defasadas com relação às necessidades da população, sobretudo as das periferias da cidade; as linhas são extremamente longas porque isso as torna mais lucrativas, de maneira que os passageiros são obrigados a trajetos absurdos, gastando horas para ir ao trabalho, às escolas, aos serviços de saúde e voltar para casa; não há linhas conectando pontos do centro da cidade nem linhas inter-bairros, de maneira que o uso do automóvel individual se torna quase inevitável para trajetos menores.

Em resumo: definidas e orientadas pelos imperativos dos interesses privados, as montadoras de veículos, empreiteiras da construção civil e empresas de transporte coletivo dominam a cidade sem assumir qualquer responsabilidade pública, impondo o que chamo de inferno urbano.

2. As manifestações paulistanas

A tradição de lutas

Recordando: A cidade de São Paulo (como várias das grandes cidades brasileiras) tem uma tradição histórica de revoltas populares contra as péssimas condições do transporte coletivo, isto é, a tradição do quebra-quebra quando, desesperados e enfurecidos, os cidadãos quebram e incendeiam ônibus e trens (à maneira do que faziam os operários no início da Segunda Revolução Industrial, quando usavam os tamancos de madeira – em francês, os sabots – para quebrar as máquinas – donde a palavra francesa sabotage, sabotagem). Entretanto, não foi este o caminho tomado pelas manifestações atuais e valeria a pena indagar por que. Talvez porque, vindo da esquerda, o MPL politiza explicitamente a contestação, em vez de politiza-la simbolicamente, como faz o quebra-quebra.

Recordando: Nas décadas de 1970 a 1990, as organizações de classe (sindicatos, associações, entidades) e os movimentos sociais e populares tiveram um papel político decisivo na implantação da democracia no Brasil pelos seguintes motivos:

1. introdução da idéia de direitos sociais, econômicos e culturais para além dos direitos civis liberais;

2. afirmação da capacidade auto-organizativa da sociedade;

3. introdução da prática da democracia participativa como condição da democracia representativa a ser efetivada pelos partidos políticos. Numa palavra: sindicatos, associações, entidades, movimentos sociais e movimentos populares eram políticos, valorizavam a política, propunham mudanças políticas e rumaram para a criação de partidos políticos como mediadores institucionais de suas demandas.

Isso quase desapareceu da cena histórica como efeito do neoliberalismo, que produziu:

1. fragmentação, terceirização e precarização do trabalho (tanto industrial como de serviços) dispersando a classe trabalhadora, que se vê diante do risco da perda de seus referenciais de identidade e de luta;

2. refluxo dos movimentos sociais e populares e sua substituição pelas ONGs, cuja lógica é distinta daquela que rege os movimentos sociais;

3. surgimento de uma nova classe trabalhadora heterogênea, fragmentada, ainda desorganizada e que por isso ainda não tem suas próprias formas de luta e não se apresenta no espaço público e que por isso mesmo é atraída e devorada por ideologias individualistas como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a ideologia do “empreendedorismo” (da classe média), que estimulam a competição, o isolamento e o conflito inter-pessoal, quebrando formas anteriores de sociabilidade solidária e de luta coletiva.

Erguendo-se contra os efeitos do inferno urbano, as manifestações guardaram da tradição dos movimentos sociais e populares a organização horizontal, sem distinção hierárquica entre dirigentes e dirigidos. Mas, diversamente dos movimentos sociais e populares,  tiveram uma forma de convocação que as transformou num movimento de massa, com milhares de manifestantes nas ruas.

O pensamento mágico

A convocação foi feita por meio das redes sociais. Apesar da celebração  desse tipo de convocação, que derruba o monopólio dos meios de comunicação de massa, entretanto é preciso mencionar alguns problemas postos pelo uso dessas redes, que possui algumas características que o aproximam dos procedimentos da midia:

a. é indiferenciada: poderia ser para um show da Madonna, para uma maratona esportiva, etc. e calhou ser por causa da tarifa do transporte público;

b. tem a forma de um evento, ou seja, é pontual, sem passado, sem futuro e sem saldo organizativo porque, embora tenha partido de um movimento social (o MPL), à medida que cresceu passou á recusa gradativa da estrutura de um movimento social para se tornar um espetáculo de massa. (Dois exemplos confirmam isso: a ocupação de Wall Street pelos jovens de Nova York e que, antes de se dissolver, se tornou um ponto de atração turística para os que visitavam a cidade; e o caso do Egito, mais triste, pois com o fato das manifestações permanecerem como eventos e não se tornarem uma forma de auto-organização política da sociedade, deram ocasião para que os poderes existentes passassem de uma ditadura para outra);

c. assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários e, portanto, não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, deste ponto de vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa.

A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a idéia de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação;

d. a recusa das mediações institucionais indica que estamos diante de uma ação própria da sociedade de massa, portanto,  indiferente à determinação de classe social; ou seja, no caso presente, ao se apresentar como uma ação da juventude, o movimento  assume a aparência de que o  universo dos manifestantes é homogêneo ou de massa, ainda que, efetivamente, seja heterogêneo do ponto de vista econômico, social e político, bastando lembrar que as manifestações das periferias não foram apenas de “juventude” nem de classe média, mas de jovens, adultos, crianças e idosos da classe trabalhadora.

No ponto de chegada, as manifestações introduziram o tema da corrupção política e a recusa dos partidos políticos. Sabemos que o MPL é  constituído por militantes de vários partidos de esquerda e, para assegurar a unidade do movimento, evitou a referência aos partidos de origem.

Por isso foi às ruas sem definir-se como expressão de partidos políticos e, em São Paulo, quando, na comemoração da vitória, os militantes partidários compareceram às ruas foram execrados, espancados, e expulsos como oportunistas – sofreram repressão violenta por parte da massa. Ou seja, alguns manifestantes praticaram sobre outros a violência que condenaram na polícia.

A crítica às instituições políticas não é infundada, mas possui base concreta:

a. no plano conjuntural: o inferno urbano é, efetivamente, responsabilidade dos partidos políticos governantes;

b. no plano estrutural: no Brasil, sociedade autoritária e excludente, os partidos políticos tendem a ser clubes privados de oligarquias locais, que usam o público para seus interesses privados; a qualidade dos legislativos nos três níveis é a mais baixa possível e a corrupção é estrutural; como consequência,  a relação de representação não se concretiza porque vigoram relações de favor, clientela, tutela e cooptação;

c. a crítica ao PT:  de ter abandonado a relação com aquilo que determinou seu nascimento e crescimento, isto é, o campo das lutas sociais auto-organizadas e ter-se transformado numa máquina burocrática e eleitoral (como têm dito e escrito muitos militantes ao longo dos últimos 20 anos).

Isso, porém, embora explique a recusa, não significa que esta tenha sido motivada pela clara compreensão do problema por parte dos manifestantes. De fato, a maioria deles não exprime em suas falas uma análise das causas desse modo de funcionamento dos partidos políticos, qual seja, a estrutura autoritária da sociedade brasileira, de um lado, e, de outro, o sistema político-partidário montado pelos casuímos da ditadura. Em lugar de lutar por uma reforma política, boa parte dos manifestantes recusa a legitimidade do partido político como instituição republicana e democrática.

Assim, sob este aspecto, apesar do uso das redes sociais e da crítica aos meios de comunicação, a maioria dos manifestantes aderiu à mensagem ideológica difundida anos a fio pelos meios de comunicação de que os partidos são corruptos por essência.

Como se sabe, essa posição dos meios de comunicação tem a finalidade de lhes conferir o monopólio das funções do espaço público, como se não fossem empresas  capitalistas movidas por interesses privados.

Dessa maneira, a recusa dos meios de comunicação e as críticas a eles endereçadas pelos manifestantes não impediram que grande parte deles aderisse à perspectiva da classe média conservadora difundida pela mídia a respeito da ética.

De fato, a maioria dos manifestantes, reproduzindo a linguagem midiática, falou de ética na política (ou seja, a transposição dos valores do espaço privado para o espaço público), quando, na verdade, se trataria de afirmar a ética da política (isto é, valores propriamente públicos), ética que não depende das virtudes morais das pessoas privadas dos políticos e sim da qualidade das instituições públicas enquanto instituições republicanas.

A ética da política, no nosso caso, depende de uma profunda reforma política que crie instituições democráticas republicanas e destrua de uma vez por todas a estrutura deixada pela ditadura, que força os partidos políticos a coalizões absurdas se quiserem governar, coalizões que comprometem o sentido e a finalidade de seus programas e abrem as comportas para a corrupção.

Em lugar da ideologia conservadora e midiática de que, por definição e por essência, a política é corrupta, trata-se de promover uma prática inovadora capaz de criar instituições públicas que impeçam a corrupção, garantam a participação, a representação e o controle dos interesses públicos e dos direitos pelos cidadãos. Numa palavra, uma invenção democrática.

Ora, ao entrar em cena o pensamento mágico, os manifestantes deixam de lado que, até que uma nova forma da política seja criada num futuro distante quando, talvez, a política se realizará sem partidos, por enquanto, numa república democrática (ao contrário de uma ditadura) ninguém governa sem um partido, pois é este que cria e prepara quadros para as funções governamentais para concretização dos objetivos e das metas dos governantes eleitos.

Bastaria que os manifestantes se informassem sobre o governo Collor para entender isso: Collor partiu das mesmas afirmações feitas por uma parte dos manifestantes (partido político é coisa de “marajá” e é corrupto) e se apresentou como um homem sem partido. Resultado: a) não teve quadros para montar o governo, nem diretrizes e metas coerentes e b) deu feição autocrática ao governo, isto é, “o governo sou eu”. Deu no que deu.

Além disso, parte dos manifestantes está adotando a posição ideológica típica da classe média, que aspira por governos sem mediações institucionais e, portanto, ditatoriais. Eis porque surge a afirmação de muitos manifestantes, enrolados na bandeira nacional, de que “meu partido é meu país”, ignorando, talvez, que essa foi uma das afirmações fundamentais do nazismo contra os partidos políticos.

Assim, em lugar de inventar uma nova política, de ir rumo a uma invenção democrática, o pensamento mágico de grande parte dos manifestantes se ergueu contra a política, reduzida à figura da corrupção. Historicamente, sabemos onde isso foi dar.

E por isso não nos devem surpreender, ainda que devam nos alarmar, as imagens de jovens militantes de partidos e movimentos sociais de esquerda espancados e ensangüentados durante a manifestação de comemoração da vitória do MPL.

Já vimos essas imagens na Itália dos anos 1920, na Alemanha dos anos 1930 e no Brasil dos anos 1960-1970.

Conclusão provisória

Do ponto de vista simbólico, as manifestações possuem um sentido importante que contrabalança os problemas aqui mencionados.

Não se trata, como se ouviu dizer nos meios de comunicação, que finalmente os jovens abandonaram a “bolha” do condomínio e do shopping center e decidiram ocupar as ruas (já podemos prever o número de novelas e mini-séries que usarão essa idéia para incrementar o programa High School Brasil, da Rede Globo).

Simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas afirmações explícitas contra a política, os manifestantes realizaram um evento político: disseram não ao que aí está, contestando as ações dos poderes executivos municipais, estaduais e federal, assim como as do poder legislativo nos três níveis.

Praticando a tradição do humor corrosivo que percorre as ruas, modificaram o sentido corriqueiro das palavras e do discurso conservador por meio da inversão das significações e da irreverência, indicaram uma nova possibilidade de práxis política, uma brecha para repensar o poder, como escreveu um filósofo político sobre os acontecimentos de maio de 1968 na Europa.

Justamente porque uma nova possibilidade política está aberta, algumas observações merecem ser feitas para que fiquemos alertas aos riscos de apropriação e destruição dessa possibilidade pela direita conservadora e reacionária.

Comecemos por uma obviedade: como as manifestações são de massa (de juventude, como propala a mídia) e não aparecem em sua determinação de classe social, que, entretanto, é clara na composição social das manifestações das periferias paulistanas, é preciso lembrar que uma parte dos manifestantes não vive nas periferias das cidades, não experimenta a violência do cotidiano experimentada pela outra parte dos manifestantes.

Com isso, podemos fazer algumas indagações.

Por exemplo: os jovens manifestantes de classe média que vivem nos condomínios têm idéia de que suas famílias também são responsáveis pelo inferno urbano (o aumento da densidade demográfica dos bairros e a expulsão dos moradores populares para as periferias distantes e carentes)? Os jovens manifestantes de classe média que, no dia em que fizeram 18 anos, ganharam de presente um automóvel (ou estão na expectativa do presente quando completarem essa idade), têm idéia de que também são responsáveis pelo inferno urbano? Não é paradoxal, então, que se ponham a lutar contra aquilo que é resultado de sua própria ação (isto é, de suas famílias), mas atribuindo tudo isso à política corrupta, como é típico da classe média?

Essas indagações não são gratuitas nem expressão de má-vontade a respeito das manifestações de 2013. Elas têm um motivo político e um lastro histórico.

Motivo político: assinalamos anteriormente o risco de apropriação das manifestações rumo ao conservadorismo e ao autoritarismo. Só será possível evitar esse risco se os jovens manifestantes levarem em conta algumas perguntas:

1. estão dispostos a lutar contra as ações que causam o inferno urbano e, portanto, enfrentar pra valer o poder do capital de montadoras, empreiteiras e cartéis de transporte que, como todo sabem não se relacionam  pacificamente (para dizer o mínimo) com demandas sociais?

2. estão dispostos a abandonar a suposição de que a política se faz magicamente sem mediações institucionais?

3. estão dispostos a se engajar na luta pela reforma política, a fim de inventar uma nova política, libertária, democrática, republicana, participativa?

4. estão dispostos a não reduzir sua participação a um evento pontual e efêmero e a não se deixar seduzir pela imagem que deles querem produzir os meios de comunicação?

Lastro histórico: quando Luiza Erundina, partindo das demandas dos movimentos populares e dos compromissos com a justiça social, propôs a Tarifa Zero para o transporte público de São Paulo, ela explicou à sociedade que a tarifa precisava ser subsidiada pela Prefeitura e que ela não faria o subsídio implicar em cortes nos orçamentos de educação, saúde, moradia e assistência social, isto é, dos programas sociais prioritários de seu governo.

Antes de propor a Tarifa Zero, ela aumentou em 500% a frota da CMTC (explicação para os jovens: CMTC era a antiga empresa municipal de transporte) e forçou os empresários privados a renovar sua frota.

Depois disso, em inúmeras audiências públicas, ela apresentou todos os dados e planilhas da CMTC e obrigou os empresários das companhias privadas de transporte coletivo a fazer o mesmo, de maneira que a sociedade ficou plenamente informada quanto aos recursos que seriam necessários para o subsídio.

Ela propôs, então, que o subsídio viesse de uma mudança tributária: o IPTU progressivo, isto é, o imposto predial seria aumentado para os imóveis dos mais ricos, que contribuiriam para o subsídio juntamente com outros recursos da Prefeitura.

Na medida que os mais ricos, como pessoas privadas, têm serviçais domésticos que usam o transporte público, e, como empresários, têm funcionários usuários desse mesmo transporte, uma forma de realizar a transferência de renda, que é base da justiça social, seria exatamente fazer com que uma parte do subsídio viesse do novo IPTU.

Os jovens manifestantes de hoje desconhecem o que se passou: comerciantes fecharam ruas inteiras, empresários ameaçaram lockout das empresas, nos “bairros nobres” foram feitas  manifestações contra o “totalitarismo comunista” da prefeita e os poderosos da cidade “negociaram” com os vereadores a não aprovação do projeto de lei.

A Tarifa Zero não foi implantada. Discutida na forma de democracia participativa, apresentada com lisura e ética política, sem qualquer mancha possível de corrupção, a proposta foi rejeitada.

Esse lastro histórico mostra o limite do pensamento mágico, pois não basta ausência de corrupção, como imaginam os manifestantes, para que tudo aconteça imediatamente da melhor maneira e como se deseja.

Cabe uma última observação: se não levarem em consideração a divisão social das classes, isto é, os conflitos de interesses e de poderes econômico-sociais na sociedade, os manifestantes não compreenderão o campo econômico-político no qual estão se movendo quando imaginam estar agindo fora da política e contra ela.

Entre os vários riscos dessa imaginação, convém lembrar aos manifestantes que se situam à esquerda que, se não tiverem autonomia política e se não a defenderem com muita garra, poderão, no Brasil, colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E a mídia, penhorada, agradecerá pelos altos índices de audiência.

Fonte: Viomundo