Filosofilmar
Cassiano Terra Rodrigues*
Sábado, 04 de Agosto de 2012
A história da relação entre filosofia e cinema pode ser
escrita de muitas maneiras. Posso dizer que prefiro “estória”, ainda que digam
os dicionários essa palavra não exista. O que farei doravante não é mais que
apresentar superficialmente algumas linhas de aproximação.
A relação sempre foi tensa. Os filósofos nem sempre se
deixaram levar pelo cinema, ou ao cinema, pacificamente. Talvez pela natureza
bastante antirracional e imóvel que a plateia assume na sala de cinema, como
se, ao entrar nela, entrasse na caverna de Platão. O cinema, ao contrário,
sempre levou a filosofia às telas. Arrisco dizer que o cinema sempre levou a
filosofia além de si.
Projeções de simulacros, representações falsas do real, ou
mesmo cópia da cópia imperfeita do mundo sensível, feita de imagens e
pseudo-conceitos, seja lá o que for, o cinema não é a arte mais apreciada pelos
filósofos, que comumente preferem a linearidade e a facilidade para a dedução
do texto escrito ou as artes feitas diretamente pela mão do homem. Não podemos
deixar de notar que a proximidade entre o cinema e o mito (ou alegoria)
fundador da filosofia faz pensar que à filosofia, em sua busca pelo conceito,
cabe o papel de desmistificar as imagens impuras do cinema. Ou então, que ao
cinema cabe a função meramente apaziguadora e, portanto, secundária, de aliviar
a mente após o sério e pesado exercício intelectual – assim era que
Wittgenstein se dizia fã dos filmes de Carmem Miranda ou de westerns.
Contemporâneo do nascimento da sétima arte, Bergson é o
inventor de uma ideia que Gilles Deleuze tornará bastante famosa: a
imagem-movimento, apresentada em seu livro Matéria e Memória, de 1896.
Mas é só no quarto capítulo de A Evolução Criadora, de 1907,
que a ligação com o cinema aparece. O capítulo se chama “O mecanismo
cinematográfico do pensamento e a ilusão mecanicista”, e nele Bergson afirma
categoricamente: “o mecanismo de nosso conhecimento vulgar é cinematográfico”.
Em outras palavras, o pensamento se move cinematograficamente, imagem em
movimento em ação. A maneira como nosso aparato cognitivo reproduz o devir, a
flexibilidade e a variedade da vida, é a mesma maneira como o cinematógrafo
reproduz o movimento a partir de fotografias estáticas – criando a ilusão do
movimento pela sucessão muito rápida das fotografias individuais. Nosso
aparelho cognitivo, incapaz de registrar os detalhes e particularidades
inumeráveis do devir, compõe artificialmente uma imagem geral em movimento,
abstraída de várias outras imagens de estados particulares. Nossa percepção,
nossa inteligência e nossa linguagem, assim, dão-nos ilusões, imitações
imperfeitas e infiéis do devir:
“Em vez de nos prender ao devir interior das coisas,
colocamo-nos fora delas para recompor o seu devir artificialmente. Temos visões
quase instantâneas da realidade que passa e, como elas são características
dessa realidade, basta-nos alinhá-las ao longo de um devir abstrato, uniforme,
invisível, situado no fundo do aparelho do conhecimento, para imitar o que há
de característico nesse mesmo devir. Percepção, intelecção, linguagem em geral
procedem assim. Quer se trate de pensar o devir ou de exprimi-lo, ou até de o
perceber, o que fazemos é apenas acionar uma espécie de cinematógrafo
interior.” (p. 333).
Para Bergson, pensar cinematograficamente não é bom. Na
verdade, a nossa única maneira de pensar capta mal o movimento do devir.
Justamente por proceder cinematograficamente, troca o movimento real por um
falso movimento, uma ilusão de movimento. Temos de aceitar essa nossa
imperfeição: nosso pensamento cinematográfico falsifica o real.
O juízo negativo sobre o cinema é repisado até por alguns de
seus entusiastas. Levando o cinema a sério, Walter Benjamin o compreendia no
contexto da perda da aura das obras de arte. “Aura” é uma noção benjaminiana
para designar o conjunto de características que fazem de uma obra de arte o que
ela é: o fato de ter sido feita por um artista, em dado momento histórico e
social definido, dá a uma obra de arte sua originalidade, sua unicidade e sua
historicidade. Uma cópia, por isso, não tem o mesmo valor. Já o cinema é
produzido industrialmente, e não por um único artista. A estética
cinematográfica dependeria completamente de suas condições industriais de
produção e reprodução: obras de arte (re)produzidas tecnicamente por máquinas,
como quaisquer outras mercadorias, fotografias e filmes não têm a aura de uma
pintura, uma escultura ou mesmo uma apresentação teatral. Por serem objetos de
consumo de massa, reprodutíveis ad infinitum, perderiam o caráter de fenômeno
histórico único e original das obras de arte tradicionais. Assim é que o
cinema, ainda mais que a fotografia, traduziria perfeitamente a desmistificação
e a reificação da realidade social moderna, jogando nas telas as imagens vivas
de um mundo em que tudo é comercializável, substituível e superficial. É nessa
chave que devemos entender o elogio benjaminiano a Chaplin: denunciador da
alienação da classe trabalhadora, Chaplin mostraria como ninguém o lado
negativo do nosso mundo, o mesmo mundo em que nasce o cinema. Uma marca
negativa de nascença da qual a correta utilização política o livraria, assim
como só uma revolução poderia transformar o mundo para melhor.
Benjamin, escrevendo na década de 1930, preocupava-se com a
ascensão do nazi-fascismo na Europa e com a utilização do cinema como
instrumento de propaganda política. Apesar de crítico, Benjamin não evita o
juízo sobre o papel secundário do cinema relativamente à política – o cinema
seria um meio, certamente privilegiado, de produção e transmissão de ideologia
política, mas ainda assim um meio. Sua principal tese quanto à natureza
estética do cinema é a da tactilidade da imagem. Em outras palavras, a imagem
cinematográfica é táctil, isto é, toca a percepção humana de uma maneira como
nenhuma outra arte o faz. Pela combinação de imagem e movimento, a construção
cinematográfica do espaço-tempo provoca um choque perceptivo no observador, a
tal ponto que o distrai completamente, absorvendo-o. A ilusão de realidade
assim atingida é incomparável. Outra aura parece surgir, uma nova fascinação
nasce da exposição aliada à reprodução em massa. Por isso mesmo o cinema
presta-se tão bem a usos políticos.
A conclusão de Benjamin é direta: se o fascismo utiliza o
cinema para estetizar a política e, com isso, produzir alienação em massa, por
que é que o comunismo não faz o mesmo? Ora, Benjamin não desaprova a utilização
instrumental do cinema, mas apenas a finalidade ideológica com a qual ele é
utilizado. Em lugar de usar filmes para espetacularizar desfiles militares, ele
defende a politização da estética. Ao contrário do fascismo, o comunismo
deveria se aproveitar da peculiar estética cinematográfica para conscientizar,
e não alienar as massas. Nada do que vemos na tela é real; podemos mudar ou não
o real, conforme a ficção projetada nos persuadir a uma ou outra forma de
conduta e pensamento.
Levou algum tempo para os filósofos abandonarem essa maneira
de ver o cinema. Edgar Morin, por exemplo, chegou mesmo a trabalhar em cinema e
ajudou a definir um gênero próprio de documentário, o cinéma-vérité, cujo marco
inicial é considerado ser Crônica de um Verão, de 1961, co-realizado por Morin
em parceria com Jean Rouch. Podemos citar mesmo Guy Debord, ou então Terrence
Malick, que também lecionou filosofia no Massachusetts Institute of Technology.
O orientador de Malick foi Stanley Cavell. Ele [Cavel] e Gilles Deleuze, na França,
podem ser considerados pioneiros filósofos a desenvolverem uma substancial
reflexão filosófica própria e específica sobre o cinema, sem inferiorizá-lo
frente a formas mais tradicionais de arte e pensamento. Tanto um como outro se
perguntam: o que é feito do pensamento no cinema? Qual a especificidade do
pensamento cinematográfico? E, com essas perguntas, apresentam uma tese muito
forte: cinema é pensamento, cinema é linguagem, sem nada dever a nenhum real
exterior ou quaisquer outras formas de pensamento e linguagem.
Não vou, aqui, desenvolver uma reflexão sobre as ideias de
Cavell e Deleuze sobre o cinema, inclusive porque me falta competência para
tal. Quero, antes, apresentar mui resumidamente as ideias de Jean Epstein
(1897-1953) e André Bazin (1918-1958). E isso pela simples razão de mostrar que
pensadores do cinema também filosofam e com muita propriedade. Afinal,
filosofar não é uma atividade peculiar a um profissional chamado filósofo (e,
segundo o meu juízo, a profissionalização da filosofia levou a uma sua
decadência atroz).
Para Jean Epstein, a máquina cinematográfica tem uma
inteligência própria, ela é um verdadeiro “filósofo-robô cinematográfico”: “O
cinematógrafo é um desses robôs intelectuais, ainda parciais, que, com a ajuda
de dois sentidos foto e eletro-mecânicos e de uma memória registradora
fotoquímica, elabora representações, quer dizer, um pensamento, no qual
reconhecemos os quadros primordiais da razão” (p. 48). Diferentemente de Walter
Benjamin, que entendia a câmera como mero aparelho técnico capaz de aumentar a
percepção humana, de ver o que o olho humano naturalmente não vê, Epstein chama
atenção a que o cinema coloca em questão o próprio conhecimento. Não se trata
apenas de servir de auxílio aos sentidos humanos; o cinema constrói percepções
inéditas, novas representações, faz-nos ver o invisível, dá-nos a conhecer o
que de outra maneira seria incognoscível. Mais: unindo o olho inconsciente e
automaticamente passivo da câmera ao olho consciente e subjetivamente ativo do
cineasta, o cinema dá corpo vivo à contradição.
Para Epstein, o cinema cria um mundo em que os tradicionais
dualismos filosóficos tornam-se obsoletos (sensível/inteligível,
pensamento/coisas, real/irreal, sonho/vigília etc.) e, assim, vai além da
filosofia (“Le cinéma et les au-delà de Descartes” é título de um de seus
artigos). Ligando espaços e tempos de maneira nova e como só ele pode fazer, o
cinema desbanca uma concepção linear da história e, assim, faz nascer um novo
pensamento visual, capaz de traduzir de maneira inédita a complexidade do
mundo. Não à toa Deleuze dirá que Epstein, ao fazer a defesa do caráter
diabólico do cinema (Le cinéma du diable, outro de seus escritos), consegue ver
continuidade e mistura onde antes a filosofia só via dualismo e separação.
A filosofia do cinema dá um salto qualitativo com Jean
Epstein. Com André Bazin, ela afirma definitivamente sua autonomia. E, se com
Epstein temos que o cinema cria uma realidade própria, por outros meios
incognoscível, com Bazin voltamos ao questionamento das relações entre o cinema
e nossa realidade por meio do questionamento da realidade do cinema. Ao tentar
responder sem rodeios o que é o cinema, Bazin inicia a mais filosófica das
investigações cinematográficas: a ontologia do cinema.
O ponto de partida de Bazin é a fotografia. Em “Ontologia da
imagem fotográfica”, de 1945, ele escreve:
“A originalidade da fotografia em relação à pintura reside,
pois, na sua objetividade essencial. Tanto é que o conjunto de lentes que
constitui o olho fotográfico em substituição ao olho humano denomina-se
precisamente ‘objetiva’. Pela primeira vez, entre o objeto inicial e a sua
representação nada se interpõe, a não ser um outro objeto. Pela primeira vez,
uma imagem do mundo exterior se forma, automaticamente, sem a intervenção
criadora do homem, segundo um rigoroso determinismo. A personalidade do
fotógrafo entra em jogo somente pela escolha, pela orientação, pela pedagogia
do fenômeno; por mais visível que seja na obra acabada, já não figura nela como
a do pintor. Todas as artes se fundam sobre a presença do homem; unicamente na
fotografia é que fruímos da sua ausência. (...). Nesta perspectiva, o cinema
vem a ser a consecução no tempo da objetividade fotográfica. O filme não se contenta
mais em conservar para nós o objeto lacrado no instante (...). Pela primeira
vez, a imagem das coisas é também a imagem da duração delas, como que uma múmia
da mutação” (pp. 13-14).
Parafraseando a tese de Bergson, Bazin confere a ela valor
positivo. Para Bazin, o cinema revela o real e esse real revelado não é isento
de mística, não é absolutamente objetivo. O cinema não faz somente cópia do
real. O cinema não se deixa reduzir a registro documental do real, ainda que
seja útil a arquivos históricos. O cinema revela o real ao participar de seu
ser, de seu devir, repercutindo nele, ricocheteando nele de certa maneira,
tocando “a carne e o sangue da realidade”, de maneira a nos impor uma tomada de
consciência.
O modelo e o exemplo de Bazin é o cinema italiano do
pós-guerra, especificamente o neo-realismo, ou, como ele prefere, alguns filmes
dos diretores neo-realistas, por ele analisados magistralmente em “O realismo
cinematográfico e a escola italiana da Liberação”. Em 1959, em entrevista para
a revista Cahiers du Cinéma, Roberto Rossellini fez uma declaração que ficou
famosa: “As coisas estão aí, por que manipulá-las?” É justamente esse ponto que
interessa a Bazin. O cinema de Rossellini, De Santis, Visconti e De Sica
implica uma tomada de consciência do real que produz a “imagem-fato”. Numa
carta ao editor da revista Cinema Nuovo, publicada com o título “Defesa de
Rossellini”, Bazin afirma que a diferença entre o artista realista tradicional
(Émile Zola, por exemplo) e o neo-realista (Rossellini, especificamente) está
em que o primeiro analisa a realidade e, de acordo com sua moral, reconstrói
essa realidade por meio de uma síntese expressa em suas obras; o segundo,
diferentemente, filtra a realidade por meio de sua consciência. O que o diretor
neo-realista exprime em seus filmes, assim, é um recorte de real escolhido
conscientemente. Mas essa escolha não é moral, ou estética, é ontológica, “no
sentido de que a imagem da realidade que nos é restituída permanece global, da
mesma maneira, se quiserem uma metáfora, que uma fotografia em preto-e-branco
não é a imagem da realidade decomposta e recomposta ‘sem a cor’, mas uma
verdadeira marca do real” (p. 352). Ora, o que Bazin afinal afirma é que a
imagem do cinema neo-realista é um signo do real, do tipo que foca nossa
atenção fatos particulares e, com isso, metonimicamente significa o real (um
signo indicial, se usarmos a terminologia de Peirce).
Eis o ponto: é justamente essa visada específica, que
recorta dos fatos o que interessa ao olhar do diretor, mas sem deformá-los, que
acarreta uma tomada de consciência. Chegamos a construir o sentido ao vermos
passar na tela um fragmento de real após o outro, junto com outros – eis porque
Bazin prefere o plano-sequência à montagem, a concatenação das imagens-fatos ao
corte que produz o conflito. Há, na tela, um ganho, um a-mais de realidade. O
filme ganha sentido justamente porque não pretende dar sentido ao que já se
basta a si mesmo. E em cada caso, esse ganho é algo diferente: “a beleza
plástica das imagens, o sentimento social, a poesia, o cômico etc.” (p. 354).
Bazin desculpa-se por falar em metáforas, “não sou
filósofo”, diz ele. A importância filosófica de suas reflexões não pode, porém,
ser posta em dúvida. O cinema é ser em ato, sua realidade se faz durante e a
cada seu aparecimento – nenhuma aparência é desqualificada em nome de uma
essência superior e oculta. Mais uma vez, caem por terra os dualismos
tradicionais, borram-se as distinções entre obra e modelo e mostram-se porosas
e pouco resistentes as fronteiras entre real e irreal. Eis uma costura
Epstein-Bazin: “O cinema é a realidade 24 quadros por segundo”, dirá Godard.
Que diriam Epstein e Bazin das telas de LCD, dos pixels, das
imagens eletrônicas? Sua capacidade de auto-organização, que emula a de
organismos biológicos vivos a partir de matrizes matemáticas, parece confirmar
o que os dois autores diziam sobre a realidade cinematográfica. Parece que o
cinema consegue mostrar algo que a filosofia muito tentou e pouco conseguiu
demonstrar, ao menos desde que a filosofia é filosofia.
Referências
As duas obras de Bergson citadas podem ser baixadas, em
francês, do sítio virtual
http://classiques.uqac.ca/classiques/bergson_henri/bergson_henri.html, da
Universidade do Québec em Chicoutimi.
Do mesmo sítio virtual, é possível baixar Le Cinéma du
Diable, “Le monde fluide de l’écran” e L’intelligence d’une machine, de Jean
Epstein: http://classiques.uqac.ca/classiques/epstein_jean/epstein_jean.html
André Bazin, em português, pode ser lido aqui:
http://pt.scribd.com/doc/7095758/Bazin-Andre-O-Cinema-Ensaios
* Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia da PUC-SP.
Contato: cassianoterra@uol.com.br
Fonte: Correio da Cidadania
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