sábado, 12 de novembro de 2011

A USP, a autonomia universitária e a incompetência da gestão


Sinal de alerta

Qui, 10 de Novembro de 2011

Grave, muito grave, a reação do público diante da agressão policial aos estudantes da USP.

Por haverem ocupado o prédio da reitoria da USP, foram acusados, absurdamente, de vários crimes, entre os quais o de “formação de quadrilha”.

Sessenta e seis jovens foram trancafiados, durante horas, em um ônibus cercado por 400 policiais. A Polícia exigiu uma fiança no valor de um salário mínimo para pô-los em liberdade.

Quem for ao twitter verificará o grande número de mensagens que justificam a truculência policial.

Esta conduta é de suma gravidade, porque denuncia, por um lado, uma grande ignorância e, por outro, uma verdadeira escalada do reacionarismo da direita entre a juventude universitária.

Os indignados com a ação dos universitários desconhecem que, em toda sociedade democrática, a liberdade e a autonomia fazem parte da natureza da instituição. Qualquer intervenção externa, seja de governo, de igrejas, do poder econômico, perturba o ambiente necessário para que haja produção intelectual de qualidade. Por isso mesmo, o policiamento do “campus” deve ser feito unicamente por seguranças contratados pela própria universidade.

A ignorância é grave. Porém, ainda mais grave é a indisposição de tantos jovens contra os universitários presos, pois revela um desprezo pela democracia. Em algumas mensagens, podem se identificar até laivos de fascismo.

Chega-se ao ponto de justificar um tipo de detenção que atenta contra os direitos humanos, pois, como se sabe, os detidos foram trancados em um ônibus, sem alimentação, sem facilidades sanitárias e expostos a um calor insuportável.

Independentemente de ter havido um ou outro exagero – o que deverá ser apurado e devidamente punido -, a ocupação foi a única forma encontrada pelos jovens para denunciar à opinião pública irregularidades que estão sendo cometidas pelo reitor.

Desconhecem os indignados que, nesta democracia capenga, a imprensa não divulga nada que os poderosos não querem que seja do conhecimento da plebe ignara?

$?$!$?$!$?

O episódio é um alerta aos partidos democráticos: urge realizar uma grande campanha de politização da juventude universitária, a fim de evitar desencontros como o que a ocupação do campus da USP provocou.

Extraído de Correio da Cidadania

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Pela volta da Idade Média à USP


Escrito por Mário Maestri*

Segunda, 07 de Novembro de 2011

Na Idade Média, era uma enorme conquista quando uma cidade obtinha uma universidade. Comumente, com ela, vinha o direito a uma ampla autonomia quanto à autocracia do príncipe. Tratava-se de liberdade considerada indispensável para o novo templo do saber. Devido a isso, o campus universitário medieval possuía sua polícia própria e julgava seus alunos, funcionários, professores.

Aprendi isso no curso de História da UCL, na Bélgica, onde fui recebido de braços abertos, em 1974, fugido das ditaduras brasileira e chilena. No Brasil de então, não tinha nada daquilo. A polícia e o exército entravam, revistavam, espancavam, prendiam, torturavam e até matavam professores, funcionários e sobretudo alunos que não se rendiam ao tacão da ditadura cívico-militar.

Uma aluna sul-rio-grandense, mestranda em História da USP, escreveu-me um longo e-mail, pedindo-me quase desesperada solidariedade para com ela e seus colegas daquela universidade.

A carta da estudante registra a angústia de jovens que se assustam com a regressão dos espaços de liberdade conquistados quando da versão de redemocratização brasileira, onde os criminosos civis e militares de 1964-1985 seguiram em seus postos ou com suas pensões e aposentadorias, homenageados com nomes de praças, avenidas, ruas, ao morrerem. A aluna relata a degradação das condições de convivência, de trabalho e de estudo naquela instituição, a mais destacada do Brasil.

Lembra que há muito se instauram processos administrativos contra alunos, funcionários e professores, eventuais motivos de demissão e de expulsão, por expressarem em manifestos, panfletos, ocupações, suas idéias contra a política universitária dos governadores de São Paulo e dos dirigentes máximos daquela instituição.

Há cerca de dois meses, lembra a jovem, o senhor reitor lançou pelo retrete a autonomia universitária e escancarou o campus à Polícia Militar, sob a justificativa de reprimir a criminalidade.

Desde então, a Polícia Militar reina no campus – abordando, inquirindo, revistando funcionários, professores e sobretudo alunos. Certamente os principais objetos desses atos de intimidação foram os alunos e alunas mais agitados ou de cabelo, roupas, adereços e comportamentos tidos como estranhos!

Conhecemos o resultado da política liberticida do senhor reitor – em 27 de outubro, alunos foram revistados por policiais militares, como sempre, na frente da Biblioteca da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, onde se reúnem, tradicionalmente, os universitários suspeitos de pensarem em demasia!

A revista deu resultado. Três estudantes de Geografia foram encontrados com alguns baseados, motivos de pronta prisão e imediata resposta dos seus colegas, todos pertinentemente surrados, pois universitárias e universitários comumente magricelos, armados com canetas, livros e laptops pouco podem contra os parrudos PMs, com os seus tradicionais instrumento de trabalho – cassetetes, revólveres, escopetas, bombas dissuasivas...

A resposta previsível dos estudantes foi uma festa para a grande mídia conservadora, sobretudo televisiva. A ocupação do prédio da FFLCH e depois da Reitoria por estudantes encapuzados – ninguém quer ser objeto de processo e eventual expulsão – foi mostrada como a ação de bárbaros desordeiros no templo do conhecimento!

Isolada, sob o silêncio dos grandes e pequenos partidos, a garotada está sendo obrigada a retroceder. Até esta segunda-feira, tinham de entregar o prédio. Se não, vai conhecer pancadaria grande, prisões e os pertinentes processos. Não conseguem, nem mesmo, apresentar suas mais do que justas reivindicações: fins dos processos contra estudantes e servidores e a interdição do campus à Polícia Militar.

Por razões óbvias não registro o nome da autora da carta. Com minha total solidariedade ao movimento, faço uma derradeira reflexão. Se, na Idade Média, um senhor reitor atirasse pela janela do seu palácio a valiosa autonomia conquistada pela cidade, chamando a polícia para atuar livremente no campus, certamente seria destituído por seus pares e, possivelmente, mandado para a masmorra da Universidade, para refletir melhor sobre a subserviência ao príncipe! Coisas da Idade Média!


* Mário Maestri é doutor em Ciências Históricas pela UCL, Bélgica, e professor do programa de pós-graduação em História da Univesidade de Passo Fundo - UPF, RS.  E-mail: maestri(0)via-rs.net

Última atualização em Sexta, 11 de Novembro de 2011

Extraído de Correio da Cidadania
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Vagabundos, baderneiros, maconheiros, irresponsáveis... incompetentes?



Autor: Daniel Gorte-Dalmoro

Richard Dawkins questiona algures o que não seria da física e da ciência se Newton tivesse se dedicado integralmente a ela, ao invés de ter perdido tempo com discussões estéreis, como as sobre religião. Não lembro se ele faz a mesma pergunta sobre Einstein, Heisenberg e outros físicos e cientistas da primeira metade do século XX. De qualquer forma, chuto uma resposta à sua pergunta: se Newton tivesse se abstido das atividades extra-científicas, assim como os grandes cientistas da primeira metade do século XX, em geral bastante engajados politicamente, teria sido tão medíocre quanto a grande maioria dos pesquisadores da atualidade.


A intelligentsia acadêmica brasileira (para ficar na parte tida por pensante da sociedade) não é nenhum Richard Dawkins, mas bem gostaria de sê-lo: ter panca de inteligente e intelectual, morar na Inglaterra, dando aula para ou tendo como colegas pessoas com boa formação, convivendo com gente “civilizada”, enfim (salvo eventuais hordas bárbaras, como a de agosto). Claro, não precisa ser ateu – apenas pró-ciência e anti-comunista.

Novo protesto na USP, e lá vemos novamente as mesmas manifestações dos bons cientistas da universidade e dos homens de bem de nação, criticando os baderneiros que não querem estudar e atrapalham o bom andamento da ciência [tupiniquim].

Afinal, conforme ranqueamentos internacionais, da TopUniversities, para ser mais exato, a USP é a melhor universidade latino-americana, e a 169º do mundo. Não que eu ache que esses rankings sirvam para muita coisa, mas nossa intelligentsia certamente se guia por ela – publicações, prazos, congressos, papérs, bolsas, tudo é feito em função do que os gringos dizem que é bom.

É de se questionar, portanto, onde não estaria a USP, não tivesse todos os incômodos causados por esses alunos que fazem protestos, greves, ocupam prédios.

Bem... talvez estivesse fora do ranking das 200 melhores: dos nove cursos que aparecem entre os 200 melhores, nas diversas áreas, seis – filosofia, sociologia, história, lingüística, ciência política e geografia – são da FFLCH. E se esses alunos estavam fumando maconha e fazendo greve, é de se questionar, então, o que estavam fazendo os demais dos 198 programas de pós da USP. Assistindo tevê, lendo Folha e Veja?

Surpresa? Não deveria ser. A ciência pura pode até existir (não vou entrar nesta questão), mas o cientista puro, certamente não. Não por acaso, quando a Science publicou reportagem sobre a ciência no Brasil, quem ganhou destaque não foi a Fapesp e seus quase 800 milhões de reais – que não mereceu uma mísera linha –, e sim um cientista que faz bastante alarde político – ainda que questão de política científica, mas com uma visão bem menos tacanha de ciência que Brito Cruz, ou demais coronéis da ciência paulista –, Miguel Nicolelis.

Esta ocupação de prédios na USP poderia ser uma ótima oportunidade para esses pesquisadores fazerem uma auto-crítica (proposta ingênua, eu sei): ao invés de desqualificarem o outro, entrarem realmente no debate – não é obrigado a concordar com a atitude, contudo, é radicalmente diferente negar a política, exigindo logo a ordem e a autoridade –, e admitirem: pessoas, mesmo as diferentes, as chatas, as que usam vermelho, as que fedem, eventualmente podem ter mais assuntos e ser mais interessantes do que ratos e átomos.

Campinas, 06 de novembro de 2011.

Extraído de Luis Nassif Online

Original de Comportamento Geral

Mídia e Democracia - na Carta Maior


Mídia e Democracia

Conjunto de textos de alta importância reflexiva

Carta Maior
12 de novembro de 2011


sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Em busca de uma lógica Kadhafiana


Em busca de uma lógica Kadhafiana

por Silvia Ferabolli
*
04/11/2011

Considera-se um “sofisma” o emprego de argumentos falsos com aparência de verdadeiros. Um erro de pensamento, já que chega-se a uma conclusão válida baseada em premissas falsas. Entre os complexos mecanismos de construção de um sofisma pode-se destacar o “sofisma de implicação”, segundo o qual a autoridade de determinada fonte implica na veracidade de um enunciado. Também conhecido como “transferência de credibilidade”, tais sofismas são amplamente utilizados por veículos consagrados da mídia, especialistas e políticos que, a despeito de sua real credibilidade e competência, quase sempre enveredam pelo caminho da argumentação falaciosa – produzindo aquilo que Noam Chomsky iria chamar de manufacture of consent. Desde o início da “guerra ao terror”, tornou-se um habito trabalhar com conjuntos de sofismas que visam legitimar ações cada vez menos justificáveis em termos éticos e políticos. O problema das “armas de destruição em massa” nas mãos de um “tirano sanguinário” que representava uma “ameaça a paz mundial” foi a justificativa usada pelos norte-americanos para invadirem o Iraque e abortar o projeto em curso da construção do Estado-nação iraquiano. A remoção de Mouammar Kadhafi do poder na Libia, por outro lado, sustentou-se na justificativa de que essa era mais uma das conquistas da primavera árabe.

Contudo, o processo de derrubada do regime de Kadhafi custou a morte de centenas de pessoas, pois os tímidos levantes iniciais vistos por todo o país foram se radicalizando na medida em que eram influenciados pelo apoio da OTAN. O assassinato brutal de Kadhafi pelo Conselho Nacional de Transição (CNT) – devidamente apoiado pela OTAN – faz pensar que a inocência original de uma primavera libertária, criativa e laica, tenha encontrado o seu fim na Libia. A morte de Mohamed Bouazizi desencadeou um ciclo revolucionário que, pensava-se, colocaria um fim tanto nos regimes decrépitos da região quanto nas diversas formas de ingerência externa que o mundo árabe enfrenta desde o século XIX. A morte de Kadhafi parece ter posto um fim em tais utopias necessárias, inaugurando um novo capítulo de incertezas em relação à estabilidade política da região. O ódio a Kadhafi era uma das poucas coisas em comum que unia grupos rebeldes instalados sob o guarda-chuva do CNT e poucas ilusões existem de que haverá uma legitimação democrática dos nomes que no momento representam o poder no país. Tal poder busca, com a leniência internacional, descartar a história do homem cuja trajetória política se confunde com a do país que governou por mais de quarenta anos.

Kadhafi ascendeu ao poder na Libia com o golpe militar que depôs o rei Idris, em 1969. Nascido em uma tenda beduína, membro do clã semi-nômade al-Gadafa da costa central da Libia, Kadhafi tinha 14 anos quando Nasser nacionalizou o canal de Suez e, desde então, o pan-arabismo nasserista o acompanhou por muito tempo, fazendo-o acreditar nos ideais da nahda (renascimento) e da wahda (unidade) árabes. Nasser, enquanto um ídolo trágico, condenaria o jovem coronel a permanecer em sua sombra. Após a morte do presidente egípcio, em 1970, Kadhafi tentou se autoproclamar o novo líder pan-Árabe. Contudo, nem a Libia tinha os recursos de poder bruto de que dispunha o Egito na época e muito menos era Kadhafi um líder carismático do porte de Gamal Abdel Al-Nasser. Tendo suas ambições pan-árabes frustradas, Kadhafi focou suas energias em assuntos domésticos. Ainda nos anos 1970, assumiu o controle sobre a indústria petrolífera do país e passou a empregar parte significativa da renda do petróleo na melhoria do padrão da vida do povo líbio, um dos mais pobres do mundo na época.

De posse de seu “livro verde”, uma confusa compilação de seus pensamentos, mesclados com um socialismo utópico, Kadhafi fez da Líbia o laboratório ideal de suas reflexões político-existenciais. Desacreditando em partidos políticos, ele impôs, a partir de 1977, a ideia de um governo sem governo, comandado por um congresso geral composto por centenas de congressos locais: uma forma de governo baseada na democracia direta, com base em conselhos locais e comunas, também chamadas de Congressos Populares de Base. Tais instâncias dispensariam os intermediários na relação entre o povo e o Estado, oferecendo uma alternativa aos sistemas comunista e capitalista da época. De fato, o libyan way não passava de uma forma elegante de impor uma ditadura capitaneada por Kadhafi e um círculo restrito de homens de confiança em torno do líder.

Mantendo-se alinhado à filosofia que guiava suas ações em termos de política externa – uma mistura de pan-arabismo, anti-imperialismo e radicalismo islâmico – Kadhafi passou a alardear sua intenção de armar e treinar revolucionários para derrubar os governos da Tunísia, Egito e Argélia – se a unidade árabe não pudesse ser conseguida por meios pacíficos, então a utopia seria realizada pela força. O Egito, governado pelo moderado Anwar Sadat, foi aos poucos se tornando inimigo mortal da Líbia, culminando em uma curta guerra de dois meses entre os dois países e cuja intervenção de Yasser Arafat foi decisiva para o fim das hostilidades entre os irmãos árabes. Nessa época, o sangue de Kadhafi fervia pela revolução e ele se tornou um grande patrocinador de grupos políticos, com a recém-criada OLP, e também se utilizava dos serviços de terroristas famosos da época tal como Carlos o Chacal e Abu Nidal – esse último, membro de uma facção radical palestina, iria em 27 de dezembro de 1985 metralhar centenas de passageiros nos aeroportos de Roma e Viena. Dezenove pessoas foram mortas, cinco delas norte-americanas.

Logicamente, o comportamento político de Kadhafi fez dele um inimigo natural dos Estados Unidos. Em 1981, a Sexta Frota americana abateu dois caças líbios sobre o Golfo de Sirte, o primeiro de uma série de confrontos entre os Estados Unidos e os Estados árabes (desunidos) e que culminaria com a ocupação propriamente dita do Iraque em 2003. Em 1986, o presidente Ronald Reagan mandou bombardear alvos em Trípoli e Benghazi, objetivando claramente o assassinato daquele a quem batizou de “o cachorro louco do Oriente Médio”. Em 1988, entretanto, Kadhafi decidiu emular o presidente soviético Mikail Gorbachev iniciando um perestroika pessoal que o conduziria ao terceiro e último momento de sua trajetória. Kadhafi se deu conta de que os anos em que havia confrontado diretamente os Estados Unidos estavam cobrando um preço bastante elevado. Igualmente, o socialismo pueril que havia tentado implementar, baseado em seu “livro verde” levou a Líbia a tamanha escassez de produtos básicos que até sabonetes e pilhas tinham que ser obtidos no mercado negro. Entretanto, nesse mesmo ano Kadhafi foi acusado de ordenar o atentado contra um jumbo da PanAm que explodiu sobre a localidade escocesa de Lockerbie, matando mais de duas centenas de passageiros, a maioria norte-americanos. Tal evento colocou em xeque a nova estratégia do coronel cuja imagem de patrocinador do terrorismo internacional se fortaleceu com tal episódio. Pressionado pela Grã-Bretanha e pelos Estados Unidos, os quais exigiam que Kadhafi entregasse para julgamento os dois principais suspeitos pelo atentado contra a PanAm, Abdelbaset al-Megrahi e Al-Amin Khalifa Fahima, membros do serviço de inteligência líbio, Kadafi se viu emparedado politicamente, já que entregar os suspeitos seria uma traição à Líbia e àqueles que os tinham como heróis nacionais. Por outro lado, o não cumprimento dessas exigências aumentaria o embargo imposto pela ONU, prejudicando os seus esforços para levantar a economia Líbia que estava em uma difícil situação. Além disso, havia uma grande insatisfação popular que motivou uma série de rebeliões pelo país, bem como uma tentativa de assassinato, em 1993, da qual Kadhafi escapou por muito pouco. Seria somente em 1999, após longas discussões sobre termos e condições, que Kadhafi entregaria os dois suspeitos para serem julgados na Holanda e, posteriormente, indenizaria as famílias das vitimas. O cumprimento de tais demandas (entrega dos suspeitos para julgamento internacional e pagamento de bilhões de dólares em indenizações) garantiu o levantamento de praticamente todas as sanções econômicas que a Libia enfrentava. Firme em sua marcha em direção ao estabelecimento e solidificação de boas relações com o ocidente, Kadhafi abriu seus poços de petróleo para a exploração de empresas ocidentais em 2006. Comenta-se que, no ano seguinte, Kadhafi financiaria em grande parte a campanha de Nicolas Sarkozy para presidente, fato negado veementemente pelo atual presidente francês.

Na verdade, na primeira década do terceiro milênio, principalmente após o surgimento de novos e assustadores vilões tais como Osama Bin Laden, Kadhafi parecia um velho bicho papão que já não assustava mais ninguém. Ao contrário, suas roupas de um colorido berrante o faziam cada vez mais uma figura folclórica como aquele parente excêntrico que rouba a atenção nos eventos de família, mas que todos julgam inofensivo e até simpático. Durante esse período, ele desfrutou de uma inédita aceitação entre os principais líderes mundiais, tais como Barack Obama, Sarkozy e Berlusconi. Em um de seus últimos e grandiosos momentos, em 2009, Kadhafi visitou Roma e em seguida o premiê italiano Silvio Berlusconi também foi a Trípoli, em visita oficial. O governo líbio, que já era acionista da montadora italiana Fiat e do banco Unicredit, assinou uma série de acordos comerciais com a Itália. Os dois líderes também declararam o fim das mágoas relativas à ocupação colonial da Itália na Líbia (1911-1943).

Entretanto, a posição de Kadhafi nunca esteve tão tranquila quanto o aperto de mãos e os sorrisos franceses, americanos e italianos poderia lhe fazer supor. Os bons ventos duraram até o início da primavera árabe quando as revoltas que varreram parte do mundo árabe também chegaram á Libia. Os tímidos protestos iniciais que pareciam a Kadhafi fácil de conter, logo viraram uma guerra civil, especialmente após aviões franceses começarem a bombardear o território líbio. Imediatamente, os mesmos líderes que há pouco apertavam a mão de Kadhafi, começaram a apoiar os rebeldes contra o regime “desumano e sanguinário” do “ditador”. Não demorou muito para que a OTAN entrasse no jogo e o resultado final todos sabem qual foi: mais um governante árabe exposto ao ridículo e ao escárnio em capas de jornais, revistas e imagens televisivas repetidas ad nauseam e que nada mais fazem do que aumentar a sensação de vulnerabilidade dos povos da região. Infelizmente, a autonomia na região irá depender da manipulação de agentes externos que continuarão a fabricar bandidos e mocinhos de acordo com as suas conveniências. É justo lembrar que na Arábia Saudita também eclodiram revoltas, contudo, tais eventos misteriosamente sumiram dos noticiários internacionais e apenas um bom entendimento do conceito de poder associado à ideologia hegemônica de Gramsci pode explicar o porquê da lógica de apoiar revoltas populares em um país e não no outro – de derrubar alguns ditadores e manter outros de pé.

Na verdade, Kadhafi é hoje retratado no discurso de líderes políticos ocidentais e na imprensa mundial como um ditador sanguinário que durante as décadas de seu governo nada mais fez do que imaginar maldades e atrocidades contra seu povo. Fazendo uso da proposta de Jutta Weldes de buscar relações entre a cultura popular, a ficção científica e a politica mundial, pode-se lembrar outro personagem político que recebeu a mesma alcunha alguns séculos atrás: Vlad III, Príncipe da Valáquia (1431-1476) ou, simplesmente, Drácula. O catálogo de horrores atribuídos a Drácula, e que inspiraram o clássico de Bram Stoker, não fez dele um político muito pior do que os de seu tempo, pois a priori ele estava governando de acordo com os padrões de sua época, a Renascença, sempre marcada por extraordinária desumanidade. Como bem lembram McNally & Florescu em In Search of Dracula: The History of Dracula and Vampires (1995): “A era de Drácula foi a do rei aranha Luís XI; Ludovico Sforza o Mouro; o papa Bórgia, Alexandre VI; seu filho César; e Sigismundo Malatesta”. Todos governantes brutais que nada deixavam a desejar no quesito crueldade. A era de Kadhafi foi a de George W. Bush, Pol Pot e Slobodan Milosevic. Uma era de extremos marcada por genocídios, violações de direitos humanos, ocupação e destruição de países. Por fim, é preciso ressaltar que no folclore romeno, Drácula não é definido como um governante louco e tirano. Na verdade, os camponeses tinham orgulho dos feitos militares de seu líder e muitos, ainda hoje, estufam o peito ao dizerem-se descendentes de soldados que lutaram no exército de Drácula. Sabe-se que, na Libia de hoje, muitos ainda choram a morte de Kadhafi e temem pelo futuro que os espera sem a outrora onipresente figura do seu “líder da revolução”.

O Coronel Kadhafi foi, sem dúvida, um ator político controverso, amado e odiado por muitos. Sua morte se constituiu em uma traição do ocidente àquele que mais se empenhou em agradá-lo nos últimos anos, mostrando que as motivações internacionais são sempre obscuras e muito mais complexas do que o discurso oficial deixa transparecer. Existem interesses políticos e econômicos na Líbia que justificaram esse imenso esforço de guerra. Resta saber como será a relação entre o CNT e o povo líbio daqui por diante. Contudo, um governo que inicia com um parricídio festejado e legitimado pelas instâncias que o deveriam condenar, pouca coisa pode oferecer de bom. Espero, sinceramente, estar enganada.

* Sílvia Ferabolli
é Doutoranda em Política Internacional pela Universidade de Londres, Reino Unido (silviaferabolli@terra.com.br).

Recebido de Mundorama



segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Propaganda também discrimina os homens


Bündchen também discrimina os homens

por Fausto Rodrigues de Lima (Folha)
05 de Outubro de 2011 14:56


(Folha de S.Paulo) Fausto Rodrigues de Lima, promotor de Justiça do Distrito Federal e coautor do livro "Violência Doméstica - A Intervenção Criminal e Multidisciplinar", escreve sobre a polêmica campanha publicitária "Hope ensina". No artigo, o promotor destaca o aspecto discriminatório aos homens presente na campanha. Leia trechos selecionados:

"Para gastar todo o dinheiro do marido e conseguir sua compreensão, a mulher brasileira precisa lhe conceder sexo. O ensinamento de uma campanha da lingerie Hope, protagonizada por Gisele Bündchen, causou justa indignação a ponto de a Secretaria de Políticas para as Mulheres pedir sua suspensão."

"Essa e outras manifestações sexistas escamoteiam faceta pouca explorada: o homem também é discriminado. Ora, para a campanha referida, o marido ideal precisa ser o provedor; caso contrário, não pode ter uma mulher linda e disponível para o sexo. Como um cão no cio, necessita de sexo a todo momento e a todo custo. Não deve se importar com a satisfação da parceira; basta que ela finja prazer."

"Nós, homens do século 21, somos seres pensantes. Não queremos prover ninguém, almejamos unir esforços. Se por acaso nossa renda for insuficiente ou nula, que nos respeitem. Gostamos, sim, de sexo, mas não pensamos nisso 24 horas por dia. Nos interessa o futebol mas também o balé, a música, a arte, a poesia. E choramos, sim."

"Por isso, pedimos ao Conar que suspenda a propaganda da Hope e outras ridículas, não só por ofenderem nossas mães, filhas e esposas, mas por nos agredirem profundamente enquanto homens."

Leia na íntegra: Bündchen também discrimina os homens, por Fausto Rodrigues deLima (Folha de S.Paulo - 05/10/2011)


A Líbia que Georges Bourdoukan conheceu... ou... As nações que querem se emancipar que pensem nisso


A Líbia que eu conheci

Escrito por Georges Bourdoukan
Sexta, 28 de Outubro de 2011


Parte 1

Nelson Mandela assim que foi libertado foi agradecer a Kadafi o seu apoio ao povo sul-africano contra o regime do apartheid.

Estive na Líbia em setembro de 1979, por ocasião do décimo aniversario da Revolução que levou Kadafi ao poder.

Me acompanharam na ocasião o cinegrafista Luis Manse e o operador de Nagra Nelson Belo, Belo (por onde andarão?).

Estávamos ali pelo Globo Repórter, do qual eu era o diretor em São Paulo.

Primeira surpresa. O hotel, para onde o governo nos enviou, estava totalmente ocupado por diplomatas.

Perguntei ao embaixador do Brasil a razão dessa concentração.

A resposta me surpreendeu ainda mais.

Na Líbia de Kadafi, os aluguéis estavam proibidos.

Aos líbios que não tivessem casa, era só solicitar que o governo imediatamente providenciava a construção de uma.

O país era um imenso canteiro de obras.

E mais: Uma lei em vigor, A LEI DO COLCHÃO, determinava que, qualquer cidadão líbio que soubesse da existência de casa alugada, era só atirar um colchão no quintal que a casa passava a ser sua.

Inúmeras embaixadas sofreram com essa lei já que foram ocupadas por líbios.

O próprio embaixador me contou na ocasião que a embaixada brasileira não ficou imune a essa lei.

Um motorista líbio que ali trabalhava informou a um amigo que ainda não tinha casa, que a embaixada do Brasil era alugada.

Imediatamente esse amigo atirou um colchão e reivindicou a propriedade (uma mansão que pertencia a um italiano que retornou à Itália apos a subida ao poder de Kadafi).

O governo líbio precisou intervir para evitar maiores dissabores.

O Brasil acabou ganhando a embaixada e o líbio uma casa nova.

Isto tudo aconteceu na década de 70, quando a Líbia era uma potência riquíssima, com apenas 3 milhões de habitantes, em quase 1.800.000 quilômetros quadrados.

Os líbios, por lei, eram proibidos de trabalhar como empregados de estrangeiros.

O líbio que não quisesse trabalhar recebia o equivalente, valores de hoje, a cerca de 7 mil dólares por mês.

E mais: médico, hospital e remédios era tudo de graça.

Ninguém pagava escola e o líbio que quisesse aperfeiçoar seus estudos fora do país ganhava uma substancial bolsa.

Conheci muitos desses líbios na França, Itália, Espanha e Alemanha, e outros países onde estive como jornalista.

Parte 2
A bela Tripoli antes da invasão dos Estados Unidos e da OTAN

Estamos em Trípoli, ano 1979.

Esta noite quase não consegui pegar no sono.

No hotel onde estava hospedado, alem dos diplomatas e alguns jornalistas, estavam também delegações de países africanos de língua portuguesa.
Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, etc.

E foram eles que não me deixaram pegar no sono já que, sabendo que eu teria um encontro com Kadafi no dia seguinte, queriam que eu lhe pedisse mais explicações sobre o socialismo Líbio.

Disseram que nunca haviam visto algo igual. Nem mesmo em livros.

Ficaram admirados com a Lei do Colchão (veja post abaixo), com a assistência médica, remédios e educação, tudo gratuito.

E pelo fato de ninguém ser obrigado a trabalhar na Líbia e mesmo assim receber uma remuneração “ fantástica” no dizer de um angolano.

Prometi que tentaria obter uma resposta, desde que, de fato, eu conseguisse falar com Kadafi, por saber que ele era imprevisível e não poucas vezes deixou jornalistas aguardando ad infinitum.

Antes, preciso esclarecer que as portas dos apartamentos dos hotéis não possuíam fechaduras.

Por isso todos podiam entrar no apartamento de todos razão pela qual nossos apartamentos eram sempre “visitados”.

Perguntei ao gerente do hotel a razão da falta de fechaduras.

Respondeu que na Líbia não havia ladrões como na “época da colonização italiana e por isso as fechaduras eram prescindíveis”.

Mas um diplomata me esclareceu que a falta de fechaduras era para que os “fiscais” do governo pudessem entrar a qualquer hora do dia ou da noite para ver se não havia mulheres “convidadas” nos apartamentos.

“Porque, prosseguiu o diplomata, os líbios até hoje falam que durante a colonização italiana e o reinado de Idris, os hotéis serviam apenas para orgias”.

No dia seguinte me preparo para o encontro com Kadafi.

Manse, com a sua câmera e Belo com seu gravador Nagra me aguardavam ao lado do elevador.

Com cara de sono, reclamaram que seus apartamentos foram “penetrados” umas três vezes de madrugada e foi um susto só.

O carro enviado pelo governo nos esperava na entrada, mas Manse queria tomar mais um cafezinho.

Entrei no carro e aguardei.

Cinco minutos depois Luis Manse, com sua inseparável câmera, chegava sozinho.

Perguntei pelo Belo, ele disse que o imaginava comigo.

Perguntei ao nosso acompanhante se ele havia visto o nosso companheiro.

Imediatamente ele foi à portaria perguntar.

Um rapaz simpático respondeu que tinha visto Belo acompanhado por dois policiais uniformizados a caminho da praça que ficava a uns cinqüenta metros do hotel.

Fiquei preocupado, imaginando o pior.

Jornalista acompanhado por policiais no Brasil nunca era um bom augúrio.


Parte 3
Kadafi ao lado de seu eterno ídolo, o presidente Násser do Egito

Belo e os dois policiais estão parados ao lado de um reluzente carro Mercedes Benz novinho em folha.

Perguntei o que estava acontecendo.

Um dos policiais me disse que o meu companheiro não parava de apontar a chave do carro na ignição. E que eles não sabiam a razão, pois Belo não falava o árabe e nem eles o “brasileiro”.

Então era por isso que eles saíram juntos do hotel.

Nada preocupante.

Belo me explicou e eu traduzi para o policial que ele, ao ver a chave na ignição, ficou preocupado de alguém roubar o carro.

Os dois policiais começaram a rir e disseram tratar-se de um carro abandonado.

Era um costume no país.

Quem não gostasse do carro bastava abandoná-lo com a chave dentro. O interessado podia levá-lo.

Essa era a Líbia da época.

Muita fartura, nenhuma miséria e a abundância ao alcance de todos.

Alias isso podia se observar nas pessoas.

Os mais velhos, que viveram sob o domínio dos colonialistas e durante a monarquia, eram pessoas alquebradas, corpo seco.

As crianças e os jovens eram saudáveis e alegres.

Só para se ter uma idéia da Líbia sob Kadafi, tudo custava mais ou menos o equivalente a 3 dólares.

Havia supermercados gigantescos, mas nada era vendido a varejo.

Quem quisesse arroz, por exemplo, pagava 3 dólares pelo saco de 50 quilos.

Tudo era nessa base.

Fomos visitar o parque industrial de Trípoli e eu pedi para conhecer uma tecelagem.

Perguntei como era a relação com os clientes e um técnico alemão que ali se encontrava para montar o maquinário, começou a rir.

“Os líbios são loucos”, me disse. E completou: “eles não vendem nada aqui por metro, somente a peça inteira. E para qualquer um que entrar na fábrica e pedir”.

Perguntei o preço da peça: 3 dólares a peça de 50 metros...

Mas se você, por exemplo, quisesse comprar uma gravata, qualquer uma, o preço mínimo era o equivalente a 200 dólares.

Um cachimbo, 300 dólares.

Ou seja, todo produto que lembrasse os colonizadores e, de acordo com eles, representasse ou sugerisse consumo supérfluo, era altamente taxado.

Bebida alcoólica, nem pensar. Dava prisão sumária.

E foi o que aconteceu com dois jornalistas argentinos, cuja “esperteza” os remeteu ao porto e ali compraram de um cargueiro uma garrafa de uísque.

Um dos funcionários do hotel sentiu o bafo e os denunciou.

É verdade que eles não foram presos, porque eram convidados do governo.

Mas não puderam entrevistar ninguém, muito menos o Kadafi...

E nós só soubemos disso porque o embaixador do Brasil, uma figura simpaticíssima, uma noite nos convidou para a Embaixada e, ali, nos ofereceu um uísque de não sei quantos anos (guardado a sete chaves num cofre), que Manse e Belo acharam delicioso.

Claro que eu também bebi um gole, apesar de detestar uísque.

Seja de que marca for, de que ano for.

Sempre me lembrou o gosto de iodo.

Evidentemente não faria uma desfeita ao embaixador tão solícito.

Não estalei a língua porque aí seria demais.

Antes de nos despedirmos, o embaixador nos ofereceu um litro de leite para cada um, pois segundo ele o leite disfarçaria o nosso hálito.

Na porta, perguntei ao embaixador se ele poderia nos dar um depoimento.

“O Kadafi é um Gênio”, respondeu.

Surpreso, perguntei.

O senhor considera o Kadafi um Gênio?

Sim! Um Gênio!

Parte 4
Kadafi libertou as mulheres alistando-as nas Forças Armadas

Então o senhor considera Kadafi um Gênio?

Sim! Respondeu o embaixador. Um Gênio! E amanhã o senhor vai ter uma prova disso.

Não entendi.

Amanhã vai haver um desfile em comemoração ao décimo aniversario da Revolução. Assista e veja se não tenho razão.

O dia seguinte amanheceu glorioso. E eu já estava preocupado.

Se o país vai parar para comemorar o décimo aniversário da Revolução, será que Kadafi vai encontrar tempo para a entrevista?

A população lotava a praça e as ruas onde seriam realizados os desfiles.

Um fato me chamou a atenção.

Havia milhares de meninas adolescentes com uniformes militares prontas para o desfile.

Sorriam um sorriso que somente as adolescentes possuem.

Impressionante a sua alegria.

Foi assim que Kadafi libertou as mulheres, que antes não podiam atravessar a porta de casa e nem tirar as vestimentas que cobriam seu corpo de cima abaixo, me confidenciou o embaixador.

É ou não um gênio?

Essas adolescentes saem de casa bem cedinho usando o uniforme militar e retornam para suas casas no fim do dia. Elas só não dormem no quartel.

E têm autorização para não tirar o uniforme.

Depois do serviço militar elas jamais voltam a se vestir como anteriormente.

Então é por isso que as mulheres líbias se vestem como as ocidentais?

Mas vez ou outra deparamos com mulheres com roupas tradicionais.

Terminado o desfile, um membro do governo me diz que Kadafi nos receberia não mais em Trípoli, mas em Benghazi, a bela cidade mediterrânea.

E que nos buscariam de madrugada pra viajarmos os 600 quilômetros que separam as duas cidades.

Fico sabendo nesse dia que a energia elétrica que ilumina o país é de graça.

Ninguém recebe a conta de luz, seja em casa ou no comércio.

E quem tiver aptidão para empresário, pode buscar os recursos necessários no banco estatal e não paga nenhum centavo de juros.

A divisão da riqueza do país com sua população, em nome do islamismo, criou um sério problema para os demais países muçulmanos, principalmente Arábia Saudita.

E desde então, Kadafi nunca poupou os dirigentes sauditas que acusou de terem se apossado de um país que jamais lhes pertenceu e de serem “infiéis que conspurcavam o verdadeiro islamismo”.

“Trocaram o Profeta pelo petróleo”.

Pela primeira vez usava-se o Alcorão contra aqueles que se diziam seus defensores.

Os sauditas, acuados, só conseguiam dizer que ele era “comunista”.

Kadafi respondia que ele apenas seguia o Alcorão ao pé da letra.

Várias revoltas começaram a eclodir na Arábia Saudita e países do Golfo.

Estados Unidos e mídia associada começaram a arregaçar as mangas.

Era preciso defender a vassala Arábia Saudita e transformar Kadafi num pária.

Na volta ao hotel, dou de cara com revolucionários da África do Sul. Estavam na Líbia em busca de fundos para lutar contra o apartheid.

Parte 5
A bela Benghazi, antes da invasão dos EUA-OTAN

Vamos falar francamente.

Eu estava me esforçando para realizar um programa que dificilmente seria exibido.

Naquela época o Globo Repórter registrava uma audiência enorme, entre 50 e 65, com pico de 72.

Alem do mais, vivíamos sob o tacão da ditadura.

Mas já que estávamos lá, vamos tocar o barco e ver no que vai dar.

À noite, no hotel, alguém abre a porta e me pergunta se posso conversar um pouco.

Era o chefe da delegação de Guiné-Bissau e estava empolgado. Nunca imaginara conhecer um país como a Líbia.

Perguntou como foi o meu encontro com Kadafi.

Respondi que o encontro seria no dia seguinte em Benghazi.

Enquanto conversávamos, um “fiscal” do governo, entra no quarto e nos cumprimenta sorridente.

Dá uma olhada rápida e com aquele sorriso de comissária de bordo, nos agradece e vai embora.

Mal passaram 10 minutos e a porta novamente é aberta. Um jornalista do Rio de Janeiro, meu vizinho de quarto entra desesperado.

- Uma coca cola pelo amor de Deus. Meu reino por uma coca-cola. Vou descer até saguão, alguém precisa me informar onde consigo comprar coca cola nesse país de birutas.

E nem esperou o elevador. Desceu pela escada mesmo.

- Maluco esse seu vizinho, me confidenciou o guine-bissauense( é assim mesmo que se diz?). E alem do mais ainda ofendeu Shakespeare.

Em seguida ele me revela que conheceu muitos revolucionários de países diferentes que se encontravam na Líbia em busca de recursos.

Inclusive sul-africanos.

- Entregaram uma carta de Nelson Mandela para o Kadafi pedindo para ele não esquecer seus irmãos africanos, respondeu feliz, dando a entender que eles foram atendidos.

Novamente o “fiscal” com sorriso de comissária de bordo entra. Desta vez para nos convidar a assistir no salão do hotel a um filme sobre os “horrores” da herança colonialista.

Na verdade não era um filme, mas um documentário de 15 minutos e se a idéia era para que a platéia se indignasse, o efeito foi o contrário.

O documentário mostrava a noite em Trípoli. Garotas seminuas andando nas ruas em busca de clientes, “inferninhos”, cabarés, bebidas alcoólicas, muitas bebidas, e por aí vai.

E o pior, terminada a exibição vários aplausos da platéia, principalmente de jornalistas, pedindo a volta dos colonizadores...

Isso sim é que era época boa, exclamou o jornalista carioca, agora ao lado de um colega mineiro que completou: “eta paizinho que nem coca-cola tem”.

Quatro da manhã somos acordados. Do aeroporto de Trípoli seguimos para Benghazi, onde finalmente vamos entrevistar Kadafi.

Parte 6

“Sobreviverei ao meu verdugo” - Omar Moukhtar o herói nacional da Líbia, preso e arrebentado pelos colonialistas italianos

Quando desembarcamos em Benghazi, a belíssima Benghazi, tamareiras enfeitavam suas praias.

Estavam ali como os coqueiros nas praias do nordeste.

Era colher e comer tâmaras dulcíssimas.

Um jornalista suíço que chegara a Benghazi uma semana antes, me confidenciou que não deveria perder um casamento. Qualquer um, disse.

Estava realmente deslumbrado com a festa e o que o deixou mais impressionado, é que os noivos, depois da cerimônia, recebem um envelope do governo com o equivalente a 50 mil dólares de presente.

Bem, essa era a Líbia que pouca gente conhecia e a mídia ocidental não fazia nenhuma questão de mostrá-la.

E não poderia, pois como explicar a seus leitores que havia ascendido ao poder um jovem coronel que não utilizou a riqueza em benefício próprio?

Pelo contrário.

Havia dividido a riqueza com a população do país.

Que não queria ver ninguém sem teto, sem fome, sem educação e sem muitas outras coisas mais.

Eu, naturalmente, iria sem dúvida nortear a minha entrevista a partir desses pontos.

Mas antes da entrevista, fomos a três festas com músicos árabes de diversos países.

E haja doce.

E haja suco.

E nem um “uisquinho”, lamentavam alguns jornalistas que, sinceramente, acho que estavam no país sem saber porque e para que.

As festas corriam em tendas beduínas, algo que Kadafi sempre prezou.

Finalmente cara a cara com Kadafi.

Em sua tenda.

Aparentava cansaço.

Alguns dos assuntos discutidos:

1 - Socialismo líbio;
2 - Educação;
3 - Reforma agrária;
4 - Moradia
5 - Alinhamento
6 - Arabismo
7 - Socialismo chinês, soviético, cubano;
8 - Apoio aos movimentos revolucionários;
9 - Che Guevara;
10 - Estados Unidos;
11 - Brasil;
12 - liberação feminina
13 - Reencarnação de Omar Moukhtar.


A entrevista, que seria de 40 minutos, durou mais de duas horas e creio que passaríamos a noite conversando se ele não fosse a toda hora solicitado.

Naturalmente a Globo achou melhor não colocar o programa no ar, pois poderia melindrar a ditadura.

Foi feita uma proposta para que um programa de 15 minutos fosse ao ar no Fantástico.

Foi realizada a reedição, mas o programa teria sido proibido pelos censores oficiais da ditadura (civil-militar-midiática).

Tudo culpa da ditadura.

Será?

Oh, céus! Oh, terra! Quando nos livraremos desse sistema putrefato?


A Líbia que eu conheci – Final

Qual foi o grande erro de Kadafi?

Eu não tenho a menor dúvida.

Foi acreditar nos euro-estadunidenses e desistir de sua bomba atômica.

Os pacifistas que me perdoem.

Aqui não se trata de incentivar a produção de ogivas nucleares, mas de persuasão.

O Brasil que tome jeito e comece a produzir a sua.

Caso contrário, a própria mídia brasileira, associada ao Império, fará de tudo para que o país seja invadido e ocupado.

Kadafi não ficou rico, como os produtores de petróleo do Golfo.

Dividiu a riqueza do país com a população.

Apoiou todos os movimentos revolucionários de esquerda do mundo.

Inclusive os brasileiros.

Em nenhum momento esqueceu a população negra da África.

E da África do Sul, onde, em agradecimento, um neto de Nelson Mandela chama-se Kadafi.

Quando Nelson Mandela tornou-se o primeiro presidente da África do Sul em 1994, o então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, fez de tudo para que Mandela parasse com os agradecimentos quase diários a Kadafi pelo seu apoio à luta dos revolucionários africanos.

"Os que se irritam com nossa amizade com o presidente Kadafi podem pular na piscina", respondeu Mandela.

O presidente de Uganda Yoweri Museveni afirmou que "quaisquer que sejam as falhas de Kadafi, ele é um verdadeiro nacionalista. Prefiro nacionalistas do que marionetes de interesses estrangeiros".

E disse mais:

" Kadafi deu contribuições importantes para a Líbia, para a África e para o Terceiro Mundo. Devemos lembrar ainda que, como parte desta forma independente de pensar, ele expulsou bases militares britânicas e americanas da Líbia após tomar o poder".

Alem disso, o ex-líder líbio também teve papel importante na formação da União Africana (UA).

A principal coordenadora da guerra contra a Líbia, Hillary Clinton, andou pela África pregando abertamente o assassinato de Muammar Kadafi.

Como não teve sucesso, começou a recrutar mercenários.

Alias foram esses mercenários, inclusive os esquadrões da morte colombianos, que lutaram na Líbia. E eles não foram dizimados graças à Organização Terrorista do Atlântico Norte (OTAN) e EUA.

Quem puder pesquisar, quando Kadafi nacionalizou as empresas petrolíferas e os bancos, a mídia Ocidental referia-se a ele como Che Guevara Árabe.

Antes de ser deposto e linchado pelos mercenários a mando dos terroristas OTAN e EUA, a Líbia possuía o maior índice de desenvolvimento humano da África, e até hoje maior que o do Brasil.

E o que pouca gente sabe, em 2007 inaugurou o maior sistema de irrigação do mundo.

Transformou o deserto (95% da Líbia) em fazendas produtoras de alimentos.

Alias, assim que subiu ao poder os líbios que quiseram produzir alimentos receberam terra, equipamentos, sementes e 50 mil dólares para sobreviver até a safra.

Foi uma Reforma Agrária total e irrestrita.

Ele também pressionou pela criação dos Estados Unidos da África (EUA) para rivalizar com os EUA e união européia.

Ele lutou por uma África una: “Queremos militares africanos para defender a África. Queremos uma moeda única. Queremos um só passaporte africano".

Lamentavelmente esqueceu a Bomba Atômica. E pagou por isso.

As nações que querem se emancipar que pensem nisso.

__________

E abaixo você ouve os presidentes Hugo Chaves, Evo Morales, Rafael Correa e Fernando Lugo... cantando Hasta Siempre, em homenagem a Che Guevara. Eles também que se cuidem.
O video foi postado originalmente por Regina Schmitz no Facebook.

Youtube



Georges Bourdoukan é jornalista e escritor.

Blog: blogdobourdoukan
Última atualização em Sexta, 28 de Outubro de 2011


Extraído de Correio da Cidadania

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Por que me tornei professor?


Por que me tornei professor?


Já por volta dos dez anos, apaixonado pelas aulas de Língua Portuguesa e de Redação, pelos encantos da palavra escrita, pelo gosto e pelo cheiro de uma boa história, anunciava a quem interessado estivesse que desejava ser Jornalista. Jamais mudei de ideia - ao contrário, com o passar dos anos, a convicção só fez aumentar.

No terceiro ano da Graduação - em Jornalismo, obviamente -, comecei a trabalhar como estagiário no Sindicato dos Professores de São Paulo, o querido SINPRO-SP. Continuei por lá depois de formado - e até hoje, agora como colaborador, mantemos a parceria. É um prazer, um orgulho. São quase vinte anos de aprendizados vivos e intensos (sim, os companheiros do Sindicato são para mim referências intelectuais e éticas, exemplos de figuras humanas e de mestres, no sentido mais profundo das palavras).  Acompanhei e acompanho muito de perto as lutas, os sonhos, as angústias, as ações políticas, as mensagens cidadãs, as vitórias e as derrotas daqueles companheiros que sobretudo estabelecem a Educação como um direito de todos - e um caminho para a conquista da liberdade e da autonomia crítica. Foi inevitável e irresistível (ainda bem, muito obrigado!) - por conta deles, tornei-me também professor.

Afinal, respeitadas as singularidades, o ser Jornalista e o ser Professor estabelecem estreitas relações: é preciso ser curioso, humilde, democrático, alimentar pelos saberes profunda devoção e respeito, apurar, pesquisar, procurar sempre, organizar e sistematizar, saber ouvir. E estar disposto a aprender sempre, a compartilhar informações e conhecimentos - seja com o público (leitor, ouvinte, telespectador, internauta, seja com os alunos em sala de aula). Nos dois casos, é fundamental estar atento às coisas do mundo, rechaçando preconceitos e intolerâncias, truculências e autoritarismos, valorizando argumentos e ideias e lutando pelo "bom, pelo justo e pelo melhor do mundo", como diria a militante comunista Olga Benário.

Foi assim, por ser Jornalista apaixonado, que me tornei um apaixonado Professor. E, entre aulas particulares, aulas na Graduação e na Pós, lá se vão quase quinze anos de atividade docente. Não é fácil - o avanço do espetáculo e do consumo, o individualismo e o "umbiguismo" exacerbados, a consolidação de um conhecimento instrumentalizado, o falso mantra que diz que as novas tecnologias resolvem todos os nossos problemas, a mercantilização das relações humanas e profissionais, o desmanche político da carreira, o esgarçamento do tecido social e a perda de referências e valores que definem a humanidade e o ideal de civilização colocam muitas vezes o papel do professor em um encruzilhada e fazem da profissão uma atividade social infelizmente cada vez menos valorizada.

É preciso resistir. A cada dia. Todos os dias. Porque, como lembram as palavras libertárias do mestre Paulo Freire, no livro "Pedagogia da Autonomia", e transformadas em homenagem pelo Instituto Paulo Freire neste ano, "sou professor a favor da decência e contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura da direita ou da esquerda. Sou professor a favor da luta constante contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura".   



quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O casamento entre democracia e capitalismo acabou


Zizek: o casamento entre democracia e capitalismo acabou

O filósofo e escritor esloveno Slavoj Zizek visitou a acampamento do movimento Ocupar Wall Street, no parque Zuccotti, em Nova York e falou aos manifestantes. “Estamos testemunhando como o sistema está se autodestruindo. Quando criticarem o capitalismo, não se deixem chantagear pelos que vos acusam de ser contra a democracia. O casamento entre a democracia e o capitalismo acabou".
Leia a íntegra do pronunciamento de Zizek.


Slavoj Zizek
Data: 11/10/2011 / Copyleft

Durante o crash financeiro de 2008, foi destruída mais propriedade privada, ganha com dificuldades, do que se todos nós aqui estivéssemos a destruí-la dia e noite durante semanas. Dizem que somos sonhadores, mas os verdadeiros sonhadores são aqueles que pensam que as coisas podem continuar indefinidamente da mesma forma.

Não somos sonhadores. Somos o despertar de um sonho que está se transformando num pesadelo. Não estamos destruindo coisa alguma. Estamos apenas testemunhando como o sistema está se autodestruindo.

Todos conhecemos a cena clássica do desenho animado: o coiote chega à beira do precipício, e continua a andar, ignorando o fato de que não há nada por baixo dele. Somente quando olha para baixo e toma consciência de que não há nada, cai. É isto que estamos fazendo aqui.

Estamos a dizer aos rapazes de Wall Street: “hey, olhem para baixo!”

Em abril de 2011, o governo chinês proibiu, na TV, nos filmes e em romances, todas as histórias que falassem em realidade alternativa ou viagens no tempo. É um bom sinal para a China. Significa que as pessoas ainda sonham com alternativas, e por isso é preciso proibir este sonho. Aqui, não pensamos em proibições. Porque o sistema dominante tem oprimido até a nossa capacidade de sonhar.

Vejam os filmes a que assistimos o tempo todo. É fácil imaginar o fim do mundo, um asteróide destruir toda a vida e assim por diante. Mas não se pode imaginar o fim do capitalismo. O que estamos, então, a fazer aqui?

Deixem-me contar uma piada maravilhosa dos velhos tempos comunistas. Um fulano da Alemanha Oriental foi mandado para trabalhar na Sibéria. Ele sabia que o seu correio seria lido pelos censores, por isso disse aos amigos: “Vamos estabelecer um código. Se receberem uma carta minha escrita em tinta azul, será verdade o que estiver escrito; se estiver escrita em tinta vermelha, será falso”. Passado um mês, os amigos recebem uma primeira carta toda escrita em tinta azul. Dizia: “Tudo é maravilhoso aqui, as lojas estão cheias de boa comida, os cinemas exibem bons filmes do ocidente, os apartamentos são grandes e luxuosos, a única coisa que não se consegue comprar é tinta vermelha.”

É assim que vivemos – temos todas as liberdades que queremos, mas falta-nos a tinta vermelha, a linguagem para articular a nossa ausência de liberdade. A forma como nos ensinam a falar sobre a guerra, a liberdade, o terrorismo e assim por diante, falsifica a liberdade. E é isso que estamos a fazer aqui: dando tinta vermelha a todos nós.

Existe um perigo. Não nos apaixonemos por nós mesmos. É bom estar aqui, mas lembrem-se, os carnavais são baratos. O que importa é o dia seguinte, quando voltamos à vida normal. Haverá então novas oportunidades? Não quero que se lembrem destes dias assim: “Meu deus, como éramos jovens e foi lindo”.

Lembrem-se que a nossa mensagem principal é: temos de pensar em alternativas. A regra quebrou-se. Não vivemos no melhor mundo possível, mas há um longo caminho pela frente – estamos confrontados com questões realmente difíceis. Sabemos o que não queremos. Mas o que queremos? Que organização social pode substituir o capitalismo? Que tipo de novos líderes queremos?

Lembrem-se, o problema não é a corrupção ou a ganância, o problema é o sistema. Tenham cuidado, não só com os inimigos, mas também com os falsos amigos que já estão trabalhando para diluir este processo, do mesmo modo que quando se toma café sem cafeína, cerveja sem álcool, sorvete sem gordura.

Vão tentar transformar isso num protesto moral sem coração, um processo descafeinado. Mas o motivo de estarmos aqui é que já estamos fartos de um mundo onde se reciclam latas de coca-cola ou se toma um cappuccino italiano no Starbucks, para depois dar 1% às crianças que passam fome e fazer-nos sentir bem com isso. Depois de fazer outsourcing ao trabalho e à tortura, depois de as agências matrimoniais fazerem outsourcing da nossa vida amorosa, permitimos que até o nosso envolvimento político seja alvo de outsourcing. Queremos ele de volta.

Não somos comunistas, se o comunismo significa o sistema que entrou em colapso em 1990. Lembrem-se que hoje os comunistas são os capitalistas mais eficientes e implacáveis. Na China de hoje, temos um capitalismo que é ainda mais dinâmico do que o vosso capitalismo americano. Mas ele não precisa de democracia. O que significa que, quando criticarem o capitalismo, não se deixem chantagear pelos que vos acusam de ser contra a democracia. O casamento entre a democracia e o capitalismo acabou.

A mudança é possível. O que é que consideramos possível hoje? Basta seguir os meios de comunicação. Por um lado, na tecnologia e na sexualidade tudo parece ser possível. É possível viajar para a lua, tornar-se imortal através da biogenética. Pode-se ter sexo com animais ou qualquer outra coisa. Mas olhem para os terrenos da sociedade e da economia. Nestes, quase tudo é considerado impossível. Querem aumentar um pouco os impostos aos ricos? Eles dizem que é impossível. Perdemos competitividade. Querem mais dinheiro para a saúde? Eles dizem que é impossível, isso significaria um Estado totalitário. Algo tem de estar errado num mundo onde vos prometem ser imortais, mas em que não se pode gastar um pouco mais com cuidados de saúde.

Talvez devêssemos definir as nossas prioridades nesta questão. Não queremos um padrão de vida mais alto – queremos um melhor padrão de vida. O único sentido em que somos comunistas é que nos preocupamos com os bens comuns. Os bens comuns da natureza, os bens comuns do que é privatizado pela propriedade intelectual, os bens comuns da biogenética. Por isto e só por isto devemos lutar.

O comunismo falhou totalmente, mas o problema dos bens comuns permanece. Eles dizem-nos que não somos americanos, mas temos de lembrar uma coisa aos fundamentalistas conservadores, que afirmam que eles é que são realmente americanos. O que é o cristianismo? É o Espírito Santo. O que é o Espírito Santo? É uma comunidade igualitária de crentes que estão ligados pelo amor um pelo outro, e que só têm a sua própria liberdade e responsabilidade para este amor. Neste sentido, o Espírito Santo está aqui, agora, e lá em Wall Street estão os pagãos que adoram ídolos blasfemos.

Por isso, do que precisamos é de paciência. A única coisa que eu temo é que algum dia vamos todos voltar para casa, e vamos voltar a encontrar-nos uma vez por ano, para beber cerveja e recordar nostalgicamente como foi bom o tempo que passamos aqui. Prometam que não vai ser assim. Sabem que muitas vezes as pessoas desejam uma coisa, mas realmente não a querem. Não tenham medo de realmente querer o que desejam. Muito obrigado

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

Extraído de Carta Maior

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Quem tem medo da Filosofia?


Quem tem medo da Filosofia?

Resposta ao novo ataque da revista Veja a lei de obrigatoriedade de filosofia e sociologia no ensino médio.

Diego Felipe de Souza Queiroz*
6 Oct 2011

Em uma edição recente, a revista Veja veio mais uma vez atacar a Lei de obrigatoriedade de filosofia e sociologia nas escolas de ensino médio. A revista, que em edição anterior(1) já tinha desferido um ataque à mesma Lei, traz em suas páginas mais um texto neste sentido. O ataque vem por meio de um texto pequeno e rasteiro, inserido junto a uma série de artigos sobre os “absurdos” da justiça(2). O tamanho do texto e sua simplicidade não o torna menos perigoso, já que o mesmo se enquadra no tipo de texto destinado a transmitir opiniões de maneira rápida e fluida, objetivando ganhar a adesão do leitor justamente por se tratar de um material “leve” e de fácil entendimento.

Contaminado por essa pretensão de escrever um texto fluido e de fácil entendimento (sem me perder na tendência publicitária opinativa típica do que vemos por aí, na mídia empresarial brasileira) escrevo aqui uma resposta à revista Veja.

Revista Veja n° 2236, Páginas 92 e 93
O que apresenta: Texto contra a Lei de obrigatoriedade das disciplinas Filosofia e Sociologia no ensino médio. Fundamentado em uma visão tecnicista de sociedade que propõe que os brasileiros devem ser preparados para uma ação funcional na sociedade, sem muita preocupação com sua formação crítica que já na LDB(3) é apontada como necessária para que os sujeitos possam exercer plenamente sua cidadania.

O Absurdo: O texto utiliza-se de dados de avaliações internacionais que demonstram que a educação brasileira é ruim em relação às disciplinas de Matemática e Português, para atacar o ensino das disciplinas Filosofia e Sociologia. E fazem isso de tal modo como se o ensino dessas disciplinas, da área de Humanas, fosse de alguma forma atrapalhar o ensino de Matemática e Português nas escolas. Argumento falho, já que aprender Sociologia e Filosofia - de forma nenhuma – traz prejuízo ao estudo de Português e Matemática. Muito pelo contrário, são duas disciplinas que trabalham com a produção de textos e com a argumentação; o que, inevitavelmente, contribui com a capacidade de escrever e de ler dos estudantes. Em relação à Matemática, podemos imaginar o que diria Pitágoras ao redator desta matéria. Logo ele, o filósofo conhecido como “pai da Matemática”!

Por fim, há uma raivosa acusação de que as disciplinas são plataformas de pregação ideológica de esquerda. Grande erro! Pois pensar desta maneira é ir contra qualquer entendimento sério das disciplinas, que sempre foram consideradas fundamentais para a formação de indivíduos autônomos e críticos: sujeitos questionadores capazes de se contraporem a qualquer doutrinamento, seja ele de esquerda ou de direita.

O que a revista teme: Em um momento em que a discussão sobre a melhoria da educação no país torna-se cada vez mais forte; em que a luta dos trabalhadores da educação espalham-se por todo território nacional (exemplos: as recentes greves da educação nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Ceará e também a greve nacional do Colégio Pedro II), o modelo tecnicista de educação - implantado por diferentes governos neoliberais no país e exaltado há décadas pela a elite nacional e seus veículos de pregação ideológica - se fragiliza. E o poder constituído treme diante da possibilidade de qualquer mudança na área da educação, mesmo que ela seja de consciência. Afinal que sujeito autônomo, crítico e minimamente informado poderia levar a sério revistas como a Veja e suas matérias absurdas como esta de ataque raivoso contra a Lei obrigatoriedade das disciplinas de filosofia e sociologia?

* Diego Felipe é Bacharel e licenciado em Filosofia pela UERJ; Docente da Rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro.

(1) Edição 2158
(2) Na mesma parte da revista temos um artigo intitulado “Palmadazinha nas crianças” que apresenta a visão da revista contra a Lei número 7672 que proíbe castigo físico a crianças.
(3) Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades:
  • I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;
  • II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;
  • III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;
  • IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina.


charge por Diego Felipe