Povos tradicionais têm papel crucial na conservação da biodiversidade
22/07/2013
Por
Elton Alisson
Agência
FAPESP – Na região do alto e do médio Rio Negro, no Amazonas,
existem mais de 100 variedades de mandioca, cultivadas há gerações por mulheres
das comunidades indígenas, que costumam fazer e compartilhar experiências de
plantio, chegando a experimentar dezenas de variedades em seus pequenos roçados
ao mesmo tempo.
Exemplo de conservação da
agrobiodiversidade por populações tradicionais, o sistema agrícola do Rio Negro
foi registrado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan) em 2010 como patrimônio imaterial do Brasil.
A partir da constatação de que essas práticas
culturais geram uma diversidade de grande importância para a segurança
alimentar, elaborou-se um projeto-piloto de colaboração entre a Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e as organizações indígenas do médio
e alto Rio Negro.
O projeto integrará uma iniciativa
criada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) por meio do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com o
objetivo de chegar a um programa que estimule a colaboração entre cientistas e
detentores de conhecimentos tradicionais e locais.
A iniciativa foi anunciada por Maria Manuela Ligeti Carneiro da Cunha, professora emérita do Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, e professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP), na abertura da Reunião Regional da América Latina e Caribe da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços de Ecossistemas (IPBES, na sigla em inglês), ocorrida no dia 11 de julho na sede da FAPESP, em São Paulo.
“O projeto-piloto será um bom exemplo
de como é possível a colaboração entre a ciência e os conhecimentos
tradicionais e locais, capazes de dar grandes contribuições para a conservação
da diversidade genética de plantas – um problema extremamente importante”,
disse Carneiro da Cunha, coordenadora do projeto.
“A conservação in situ de variedades de plantas, por excelência, pode e deve ser
feita pelas populações tradicionais. O Brasil, ao promulgar o tratado da FAO [Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura] sobre recursos fitogenéticos, se obrigou a estimular
essa opção”, afirmou.
Carneiro da Cunha ressalvou que,
diferentemente do que costuma se entender, os conhecimentos tradicionais não são
um “tesouro”. Não são apenas dados que devem ser armazenados e disponibilizados
para uso quando se desejar, como foi feito com a medicina ayurvédica, na Índia.
De acordo com a antropóloga, a sabedoria tradicional é um processo vivo e em
andamento, composto por formas de conhecer a natureza, além de métodos, modelos
e “protocolos de pesquisa” que continuamente geram novos conhecimentos.
IPCC
da biodiversidade
Criado oficialmente em abril de 2012,
após quase dez anos de negociações internacionais, o IPBES tem por objetivo
organizar o conhecimento sobre a biodiversidade no planeta para subsidiar decisões
políticas em âmbito mundial, a exemplo do trabalho realizado nos últimos 25
anos pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla
em inglês) em relação ao clima do planeta.
Para isso, o organismo
intergovernamental independente realizará uma série de reuniões com
pesquisadores da América Latina e Caribe, África, Ásia e Europa nos próximos
dois meses, produzindo diagnósticos regionais que comporão um relatório sobre a
biodiversidade do planeta.
Os documentos conterão as
particularidades dos países de cada região e deverão levar em conta, além do
conhecimento científico, a contribuição do conhecimento acumulado durante séculos
pelas populações tradicionais e povos indígenas dessas regiões para auxiliar
nas ações de conservação de biodiversidade.
“Uma das ações mais importantes do
IPBES deverá ser o envolvimento de populações locais e indígenas desde o início
do programa, chamando-as para participar do planejamento dos estudos, da
identificação de temas de interesse comuns a serem estudados e do compartilhamento
dos resultados”, disse Carneiro da Cunha.
“O IPCC, que iniciou suas atividades em
1988, só começou a pedir a contribuição do conhecimento dos povos tradicionais
e indígenas para o desenvolvimento de ações para diminuir os impactos das mudanças
climáticas globais depois da publicação de seu quarto relatório, em 2007”,
contou.
Importância
do conhecimento tradicional
De acordo com Carneiro da Cunha, os
povos tradicionais e indígenas são muito bem informados sobre o clima e a
diversidade biológica locais – e, por isso, podem ajudar os cientistas a
compreender melhor as mudanças climáticas e o problema da perda da
biodiversidade.
Esses povos costumam habitar áreas mais
vulneráveis a mudanças climáticas e ambientais e são muito dependentes dos
recursos naturais encontrados nessas regiões. Acompanham com minúcia cada
detalhe que constitui e afeta diretamente sua vida e são capazes de perceber
com maior acurácia mudanças no clima, na produtividade agrícola ou na diminuição
de número de espécies de plantas e animais, por exemplo, apontou a antropóloga.
“Esse conhecimento minucioso é de
fundamental importância. Até porque uma das limitações que esses painéis como o
IPCC e, agora, o IPBES enfrentam é identificar problemas e soluções para lidar
com as mudanças climáticas globais em nível local. Isso é algo que só quem mora
há muitas gerações nessas regiões é capaz de perceber”, disse.
Segundo dados apresentados por Carneiro
da Cunha e por Zakri Abdul Hamid, presidente do IBPES na abertura da reunião na
FAPESP, há aproximadamente 30 mil espécies de plantas cultivadas no mundo, mas
apenas 30 culturas são responsáveis por fornecer 95% dos alimentos consumidos
pelos seres humanos; arroz, trigo, milho, milheto e sorgo respondem por 60%.
Isso porque, com a chamada “Revolução
Verde”, ocorrida logo depois da Segunda Guerra Mundial, houve uma seleção das
variedades mais produtivas e geneticamente uniformes, em detrimento de plantas
mais adaptadas às especificidades de diferentes regiões do mundo. Diferenças de
solo e clima foram corrigidas por insumos e defensivos agrícolas. Com isso, se
espalhou uma grande homogeneidade de cultivares no mundo – levando à perda de
muitas variedades locais.
“Houve um processo de erosão da
diversidade genética das plantas cultivadas no mundo. Isso representa um enorme
risco para a segurança alimentar porque as plantas são vulneráveis a ataques de
pragas agrícolas, por exemplo, e cada uma das variedades locais de cultivares
perdidas tinha desenvolvido defesas especiais para o tipo de ambiente em que
eram cultivadas”, contou Carneiro da Cunha.
Um dos exemplos mais célebres dos
impactos causados pela perda de diversidade agrícola, segundo a pesquisadora,
foi a fome na Irlanda, que matou 1 milhão de pessoas no século XIX e causou o êxodo
de milhares de irlandeses para os Estados Unidos.
Apenas duas das mais de mil variedades
de batatas existentes na América do Sul haviam sido levadas para a Irlanda, no
século XVI. Uma praga agrícola acabou com as plantações, levando à fome, uma
vez que a batata já era o alimento básico na Irlanda e em outros países da
Europa.
A partir daí, para evitar a ocorrência
de problemas do mesmo tipo, vários países criaram bancos de germoplasma
(unidades de conservação de material genético de plantas de uso imediato ou com
potencial uso futuro). A medida por si só, no entanto, não basta, uma vez que
as plantas coevoluem com os ambientes, que também mudam ao longo dos anos.
Assim, é necessário complementar os bancos de germoplasma com ações de conservação
in situ, ressaltou Carneiro da Cunha.
“É importante que se entenda que o
conhecimento tradicional não é algo que simplesmente se transmitiu de geração
para geração. Ele é vivo e os povos tradicionais e indígenas continuam a
produzir novos conhecimentos”, ressaltou.
Entraves
para aproximação
De acordo com a pesquisadora, apesar da
importância da aproximação da ciência dos conhecimentos tradicionais e locais,
o assunto só começou a ganhar relevância a partir da Convenção da
Biodiversidade Biológica (CDB), estabelecida em 1992, durante a ECO-92.
A regulamentação do acesso ao
conhecimento tradicional, previsto no artigo 8j da CDB, no entanto, ainda é um
problema praticamente universal, afirmou a pesquisadora. “Peru e Filipinas já têm
suas legislações. Mas ainda são poucos os países que editaram suas leis”,
disse.
O Brasil ainda regula o acesso a
recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados por meio de uma
medida provisória e não se chegou ainda a um consenso para uma legislação
nacional. “Não se pode ficar somente nessa atitude defensiva e acusar todo
mundo de biopirataria, nessa ‘bioparanoia’ no país, que é um grande impedimento
que teremos de superar”, avaliou.
É preciso estabelecer relações de
confiança, afirmou a antropóloga, algo que só se consegue ao longo dos anos.
Uma das formas ideais de se fazer isso, segundo ela, é quando a própria
comunidade tradicional tem um problema para o qual está buscando solução e que
também interessa aos cientistas.
Um exemplo disso ocorreu recentemente
no âmbito do Conselho Ártico – organização intergovernamental que toma decisões
estratégicas sobre o Polo Norte, reunindo oito países e 16 populações
tradicionais, em sua maioria, pastores de renas.
Em parceria com as comunidades
tradicionais transumantes (que deslocam periodicamente seus rebanhos de renas
para regiões no Ártico, onde encontram melhores condições durante partes do
ano), um grupo de pesquisadores dos países nórdicos, além da Rússia, Canadá e
Estados Unidos, estudou os impactos das mudanças climáticas nos ecossistemas,
na economia e na sociedade da região.
Feito em colaboração com a Agência
Espacial Norte-Americana (Nasa, na sigla em inglês) e com diversas
universidades e instituições de pesquisas, o estudo resultou em um relatório
decisivo, intitulado Informe de Resiliência
do Ártico (ARR, na sigla em inglês), divulgado em 2004.
“Essa talvez tenha sido a experiência
mais bem-sucedida até agora de colaboração da ciência e dos conhecimentos
tradicionais e locais”, avaliou Carneiro da Cunha. “É importante que os
cientistas conheçam o que se faz nas comunidades tradicionais e, por sua vez,
os povos tradicionais também conheçam o que se faz nos laboratórios científicos”,
disse.
Nenhum comentário:
Postar um comentário